quarta-feira, maio 31, 2006

Feiras do Livro - recomenda-se

Abrasivas de João Pedro Mésseder, Deriva, 12 euros - Pavilhão da Centralivros.

O Aquário de João Pedro Mésseder e de Gémeo Luís (Prémio Nacional de Ilustração 2005), Deriva, 12 euros - Pavilhão Centralivros.

Os Ciclos do Bambu de Xavier Queipo, Deriva, 12 euros - Pavilhão da Centralivros.

Gente que Dói, de Vítor Pinto Basto, Deriva, 10 euros - Pavilhão Centralivros.

Gastar Palavras de Paulo Kellerman, Deriva, 10 euros - Pavilhão da Centralivros. Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco da APE/Câmara de Famalicão 2005.

Apresentações de Paulo Kellerman:

dia 2 de Junho (sexta), 21:30h, Café Literário - Feira do Livro do Porto. Apresentação da jornalista Filipa Leal.

dia 3 de Junho (sábado), 15:30h, Livraria Centésima Página - Braga.

dia 4 de Junho (domingo), 15:30, Foyer - Feira do Livro de Lisboa. Apresentação de Jorge Listopad, Henrique Fialho e Luís Souta.

E outros livros:

Ex, de Patrick Raynal (Bretanha), A Estranha Estrela, de Xabier López López (Galiza), Ser ou Nâo, de Xurxo Borrazás (Galiza), As Rolas de Bakunine, de Antón Riveiro Coello (Galiza), Armai-vos uns aos Outros, de Sérgio Almeida (Portugal), Bebendo o Mar, de Xavier Queipo (Galiza), Erros e Tánatos, de Gonzalo Navaza (Galiza), Odeio as Manhãs, de Jean-Marc Rouillan (França), Tempos de Fuga, de Ramón Caride (Galiza).

terça-feira, maio 30, 2006

Ministério das Finanças prepara a criação de uma organização terrorista em Portugal? Por Rui Pereira

As notícias chegadas do País Basco no último, digamos assim, mês e meio, são muito animadoras para o Ministério das Finanças português. Pelo conteúdo de declarações em comícios e actos públicos, o líder independentista pirenaico, Arnaldo Otegi, já foi detido várias vezes, levado a tribunal especial anti-terrorista outras tantas e, para poder voltar a casa, teve de pagar ao Estado espanhol fianças de quase 400 mil euros, uns 80 mil contitos para o erário público.

Trata-se, sob a alcunha de "fiança judicial", da fórmula espanhola para o chamado "imposto revolucionário" que a ETA tinha criado nos idos de 1960 e poucos. Em nome da lei que garante a liberdade de expressão, um indivíduo discursa e a polícia prende-o. Presente ao juiz de instrução do tribunal especial anti-terrorista, em Madrid, são-lhe fixados 250 mil euros de cada vez que lá cai por não ter dito o que a liberdade de expressão manda que todas as pessoas digam. E assim ad eternum...

Claro que isto são chinesices de bascos e espanhóis que, a julgar por alguns letrados cronistas lusos, andam há séculos entretidos a jogar ao gato e ao rato, com aquelas coisas das bombas e das torturas por não terem mais que fazer. Não são gente ocupada como eles, cronistas portugueses, cuja generalidade não tem sequer tempo para gerar uma ideia minimamente atendível. Não são gente como o nosso ministro das Finanças, aflito com a imaginação a acabar-se-lhe para inventar novas formas de extorsão no seu super-wrestling contra o défice, luta de titãs, quem esmagará quem no final?...

Porque, aqui para nós, a verdade é que também nós, nós portugueses em geral, não somos capazes de criar coisas como os bascos, que dão para extorquir dinheiro em nome da lei... tivemos o frágil epifenómeno das FP-25 (quem se lembra?), mas uma coisa assim boa, valente, tributável como uma ETA, vá lá, uma prima dela afastada que fosse, isso não, não temos... não nos está no jeito.

Pois teremos de inventá-la. E a proposta é que o ministro das Finanças passe a dar conferências de imprensa encapuçado, como há uns trinta anos faziam alguns dos mais hiper-demoráticos penas d'ouro da nossa imprensa mais fadista e popularucha. Que seja o Ministério das Finanças a formar a sua própria organização terrorista. Que os juízes trabalhem o Verão inteiro a decretar fianças e mais fianças que vão direitinhas parar ao combate ao défice. Se entre a algaraviada de espanhol que se ouve pela Páscoa e na canícula pelas calles portuguesas houver bascos - dentro também! E fiança! Não esquecer a fiança.

E assim, sim. Os nossos mais destemidos colunistas, fatigados de verberar guerras alheias, de insultar terroristas de outras geografias cujos nomes mal conseguem pronunciar, passam a ter carne fresca. Em vez de se arriscarem apenas a ficar roucos, com os concursos de gritaria que fazem a ver se as vozes lhes chegam ao céu, aplicarão toda a sua verrina contra produto doméstico. Do bom, não são esses filo-terroristas encapotados que às vezes a democracia deixa que ponham a cabeça de fora da trincheira, para logo lhes cair em cima toda a viril violência do analfabeto de turno.

Não, agora, arriscarão, já não a Mebocaína, mas os isqueiros Dupont, as canetas Mont-Blanc, algum Audizito estacionado lá à porta do jornal, o último modelo de portátil com acesso à net, via último modelo de telemóvel... finalmente, alguma emoção, na coisa. Vidas em risco. Pode-se pedir a algum guionista dos Morangos com Açúcar que lhes escreva o resto.

Claro, talvez seja necessário dar um ou outro retoque, na lei, como fizeram nuestros hermanos, que com a excepção da pena capital, têm hoje uma democrática moldura penal para o chamado "terrorismo" mais pesada agora do que a redigida sob os olhos de lince do próprio generalíssimo Franco. Mas eles que se esforcem, lá no Ministério das Finanças e no da Justiça e no do Interior e no da Economia (que não se sabe se existe ou se é a imagem virtual do ministro), mas não importa. Se não existe arranja-se um.

Claro que Rui Pereira (não este que aqui assina, mas o outro) efectivamente um académico de coturno e não um comentarista semi-analfabeto ligado à câmara de televisão como um paciente de AVC está ligado numa UCI à máquina de desfibrilhação, claro que o professor Rui Pereira que anda com as mãos nestas massas e não é propriamente um democrata da facção ex-maoísta, ex-trotskista, ex-leninista ou de outra facção ex-qualquerista qualquer, o mais certo é não estar pelos ajustes.

Ele sabe que entre a prédica de paróquia acerca do terrorismo e o avolumar das contas na caixa das esmolas dos nossos coristas mediáticos existem directas e voluptuosas relações de coisas tão imateriais como o "dar na televisão" ou tão mais sonantes como um cartãozinho de crédito quase ilimitado onde está escrito "dr. Fulano de tal", num tempo em que para se ser jornalista-cronista neste país pouco mais era preciso do que tirar a 4ª classe para adultos.

Talvez seja, então, melhor mudar de homem. Ou de ministro das Finanças, outra vez. Ou de povo. Ou, então, digo eu, de polvo. Porque este larga uma tal tinta que turva as águas à légua.

Rui Pereira,
jornalista

domingo, maio 28, 2006

«A senhora pode olhar pelos Mapuches, por favor?»

«A Presidente do Chile, Michelle Bachelet veste um vestido azul e sente-se cómoda. O seu embaixador, o democrata-cristão Enrique Krauss, imposto pela Endesa e Martín Villa, o seu actual director-geral no Governo de Ricardo Lagos encarrega-se de despachar da lista e eliminar toda a pessoa indesejável na recepção oficial de intelectuais e gente da cultura que o reino de Espanha oferece à sua convidada.»
Assim começa um artigo de Marcos Rosenmann de La Jornada/La Rebelíon e publicado no site da Attac de Madrid. O que aconteceu depois foi mais ou menos isto:

José Saramago encontrava-se na homenagem à presidente do Chile e tomaria da palavra. Enfim, sempre era um nobel e era muito difícil colocá-lo no rol dos excluídos e indesejados. Portanto, tomaria a palavra. E quando a toma, pouco a pouco, a cor branca toma lugar da cara da Sra. presidente que até é socialista. São 10:30 da manhã e já está tudo mal-disposto. O embaixador Krauss, tipo corrupto e a soldo do antigo governo de Pinochet e com algumas acusações de tortura condizentes com esta colaboração, enquanto insulta Saramago deveria ter pensado, para consigo, que a proposta do governo de Espanha foi insensata. Se ainda fosse Vargas-Llosa, Carlos Fuentes ou Jorge Castañeda! Mas não, teria de ser aquele tipo?

Saramago centrou o discurso nos Mapuches que, neste momento, estão sob a alçada da Lei Anti-terrorista podendo, portanto, ser presos, torturados e mortos sem quaisquer pressupostos legais, essa maçada dos governos modernos e fracos. Saramago:
«Quero pedir-lhe que olhe pelos Mapuches... falo da sua condição de Mapuches e de chilenos e de como os direitos dos chilenos não chegam até eles... Estes habitantes originários que têm estado arredados destes direitos, agora vêm-se atacados pelas multinacionais que vêm tirar-lhes a suas terras para construir indústrias... Assim, peço-lhe que o que vou dizer-lhe não o diga a mais nenhuma autoridade, mas há um tempo fui ao Chile e mantive uma reunião clandestina com uma Comunidade Mapuche, e quando saí do Chile, inteirei-me depois, esse mesmos Mapuches tinham sido detidos e estavam na prisão.»

A resposta da senhora foi lacónica. Não ocupou um simples minuto. 60 segundos. Que disse ela? Que a questão indígena sempre a preocupou muito. Não teve tempo certamente de falar em relatórios que falam de prisões indiscriminadas, greves de fome, expropriação violenta e ilegal de terras mapuches, detenções ilegais e acusações e decisões judiciais aplicadas com a Lei-Antiterrorista.

Este confronto teve lugar a 16 de Maio. Eu li-o, por acaso, a 22. No mesmo artigo de Marcos Rosenmann, também havia uma outra acusação: a do silenciamento dos media europeus. Os mapuches ainda não devem ter agências de comunicação, por certo. Quanto a Saramago, às vezes penso que...
ALC

quinta-feira, maio 25, 2006

Páginas de um Diário Alemão - IV, de João Pedro Mésseder


Nuremberga, 15 de Agosto

De manhã cedo, a temperatura caminhava já para os 30 graus do dia. Da janela do 13º andar, em Alexanderplatz, viam-se os telhados e as cúpulas em cobre. Em frente, três bandeiras azuis ondulando ao vento e a gigantesca torre de televisão da ex-RDA. Pela segunda vez, despeço-me de Berlim, dos fantasmas de Brecht e Heiner Müller que a esta hora ainda vagueiam nas imediações do Berliner Ensemble e da estação de Friedrichstraße. Recordo a frase de Marguerite Duras, pouco antes de morrer: «Et l’Alemagne me fait toujours peur».

Chegamos a Leipzig ainda de manhã. Na Igreja de S. Tomás, a capella, canta-se Bach cujos ossos, sepultados agora junto ao altar-mor, devem escutar quase diariamente a música do mestre, algébrica e celestial («la divine machine à coudre», lhe chamou Colette).
Outros fantasmas deambulam pela cidade, como o do jovem Goethe, os de Mendelssohn, Schubert e de Clara e Robert Schumann. Na Auerbach Keller, vibra ainda a presença de Fausto e Mefistófeles, o homem e o demónio que desde sempre habitam a Alemanha e de que aqui, em Leipzig, subsistem sinais: orifícios de balas nas paredes de algumas casas, a arquitectura estalinista a aguardar restauro ou exibindo já os símbolos do mundo capitalista: Kaufhoff, Macdonald's, Dresdenbank... Simpática Leipzig, com algumas ruas de bonitas vivendas, decrépitas umas, outras já renovadas.
Descendo para sul, entramos na Baviera e alcançamos Nuremberga pelas cinco e meia, colhendo ainda a luz dourada de um verão que caminha para o fim, capaz no entanto de assomos de calor inusitados nestas paragens.
Dou por mim a fotografar pacientemente as pontes e os reflexos das árvores e do Heiliggeistspital nas águas verdes do Pegnitz. Percorridas ruas e praças, a St. Lorenzkirche e a Frauenkirche, admiradas as fontes excessivas – como a Schönner Brunnen com seus profetas e evangelistas uns sobre os outros –, entramos na Igreja de S. Sebaldo quase por acaso. A magia, porém, vem ao encontro dos nossos ouvidos: no recinto praticamente deserto, uma oficiante de vestido comprido, voz doce e dicção perfeita dir-se-ia estar ali para nos reconciliar com o som da língua alemã, ao ler «Der Mond» dos Irmãos Grimm e, logo a seguir, um poema sobre a Lua. Um organista sábio vai entrecortando as frases, criando a atmosfera musical adequada a cada passagem.
Despeço-me contemplando estas casas belíssimas, reconstruídas no pós-guerra, os lados superiores das fachadas em degrau e os grandes telhados inclinados onde espreitam janelinhas com suas pálpebras de telha negra. Digo adeus aos espelhos do rio e à luz dourada, à voz que recita e a algumas mulheres elegantes que o sol atraiu para a rua.

*
Paisagem bávara

Abre sulcos no olhar, esta geometria de ondas rectangulares, o verde, o castanho, a cor do trigo. Em fundo, a disciplina florestal. No céu da estrada, um súbito pássaro negro rasga o ecrã da íris.

quarta-feira, maio 24, 2006

Prémio Nacional de Ilustração 2005 para o Gémeo Luís! Viva (de novo)!



Estes são alguns dos trabalhos de Gémeo Luís realizados para a Deriva. Grande Gémeo! Força e Parabéns de nós todos ao mais recente galardoado com o Prémio nacional de Ilustração 2005! Espero que seja o princípio de um reconhecimento que te devemos como um dos melhores ilustradores. Depois do «choque» voltaremos aqui ao teu trabalho.

terça-feira, maio 23, 2006

Notas de tradução e ruído afectivo em «Mundo sem Medo» de Baltazar Garzón, por Vítor Pinto Basto

Baltazar Garzón escreve em "O Mundo sem medo" o singular ajuste das suas contas, num mundo em que ele, e com toda a razão, nos alerta para a importância de não se ter medo. Não se ter medo de se estar vivo e de se defender um mundo melhor, de todos e para todos. É um livro com um título feliz. Lê-se com agrado, quer se concorde ou discorde de algumas das suas premissas.

Garzón escreve num estilo coloquial e tranquilo. Escreve como quem fala. E, em "O Mundo sem medo", fala como quem escreve uma longa carta, que ele assume ter um adequado destinatário familiar: os filhos.

Em poiso qualitativo diametralmente oposto ao razoável prazer com que se lê o que escreveu, estão algumas notas de tradução. Duas delas, completamente desnecessárias. Claramente subjectivas, por isso, ali estão prolixas e dispensáveis. Aliás, não se compreende como um editor experimentado como Nelson de Matos as tivesse deixado passar.

Na primeira dessas notas de tradutor, fiquei desconfiado e quase estive para abandonar a leitura.

Escreve Marcelo Correia Ribeiro (MCR) a propósito do Exército Guerrilheiro do Povo Galego Libre que "a ele esteve ligado uma jovem portuguesa detida por pertencer ao grupo ou pelo menos viver com um dos seus dirigentes". Mais adiante, remata: "um fait-divers".Estivesse MCR (que não sei quem é) atento e diria que não foi uma mas duas portuguesas que estiveram relacionadas com aquele grupo.

Estivesse realmente atento, nunca sintetizaria o que elas viveram e sofreram como sendo um vulgar "fait-divers". É uma grandiosa enormidade (para não lhe atribuir um epíteto pouco elogioso) resumir-se o sofrimento de alguém a um "fait-divers".

O que a Susana e a Alexandra viveram merece mais respeito do que ser sintetizado a uma convulsão semântica de alguém que, ao fazer notas de tradutor, deveria aplicar na totalidade a teoria cartesiana; ser claro, sintético e objectivo.

A segunda nota tem duas palavras risíveis, mais uma vez sem rigor ôntico, por isso, compulsivamente desnecessárias. Ao tentar esclarecer o que quer dizer o termo "peneuvista", ao querer dizer que o termo se refere a um membro do Partido Nacionalista Basco (PNV, em castelhano), vai mais adiante na observação e classifica a sua política como sendo "razoavelmente xenófoba".

Não sei onde foi MCR buscar que o PNV é xenófobo. Mas se sabe do que fala deveria ter dado exemplos, no livro. Assim, sem exemplo, parece que a qualificação "xenófobo" surge como uma vulgar punição dada pelo tradutor.

Conheci muitos bascos - do PNV e de outros partidos, de quase todos - e nunca lhes reconheci laivos de xenofobia.

Tanto num caso como no outro, dá a sensação que a análise feita por MRC tem, naquelas duas notas de tradutor, demasiado ruído afectivo. Desnecessário em "Um Mundo Sem Medo".

segunda-feira, maio 22, 2006

As mais belas bandeiras do mundo - o concurso.


... é o estandarte dos sete samurais, posto ao vento depois da morte do alegre Heihachi. Ataca agora o bando de ladrões! Filomena Matos


Embora cinzenta, aí vai uma bela, uma das mais sublimes bandeiras vermelhas que conheço... Ana Roiz

A minha bandeira não é de trapo, é sonora. E para raiva de muitos, ainda a canção mais conhecida em todo o mundo http://www.hymn.ru/internationale/index-en.html José Henriques

Estou com o José Henriques. Não na mesma bandeira. Que também reconheço como bela. Uma das mais belas. Mas na ideia. Para mim, as mais belas bandeiras do mundo são a música (o jazz principalmente e, por exemplo, apenas por exemplo, o 'Strange Fruit' interpretado pela Nina Simone ou pela Billie Holliday) e a literatura (por exemplo, apenas por exemplo, a ideia do amor em A Espuma dos Dias do Boris Vian ou a condição humana em O Coração das Trevas de J. Conrad). A minha bandeira mais bela podia ser também por exemplo um girassol. Nunca um trapo. Uma ideia, uma palavra, uma música. Isso sim. Elisa

Skas - uma pequena contribuição antropológica para o conhecimento de uma nova raça humana.


Zé Peixoto - A Bandeira de Limpoku

sábado, maio 20, 2006

As mais belas bandeiras do mundo - a proposta

Não são patrocinadas pela Sagres, pela TMN e pela Galp. São vermelhas e estão ao vento. Atrás delas está toda uma história, nem sempre bonita, nem sempre bela, povoadas até de contradições e de mal-entendidos. Mas não acho que seja importante lembrá-lo hoje porque, neste momento de mais uma dose de histeria cervejolo-tele-nacionalista, apetece-me dizer que são estas as mais belas de todas. Foram pintadas pela Vieira da Silva, em 1939, ano de todos os perigos (mais um), onde a guerra civil de Espanha terminava mal e onde começava uma outra já delineada há uns tempos e criminosamente consentida. Chama-se, o quadro, As Bandeiras Vermelhas. Abrimos desde já um concurso a todos os leitores do Deriva das Palavras: «Eu cá tenho a mais bela bandeira do mundo retida na minha memória e que não é aquela que está a abanar na rua neste momento e ao domingo nos edifícios públicos!» Cá esperamos as vossas bandeiras. A melhor, eleita claro está, por um júri isentíssimo, terá direito a prémio. Aceitam-se desenhos originais. Obrigado.

sexta-feira, maio 19, 2006

Algumas considerações sobre Literatura e Blogosfera, por Xavier Queipo


ALGUMAS CONSIDERAÇÓES SOBRE LITERATURA E BLOGOSFERA[1]

Texto no que se baseou a intervenção de Xavier Queipo nas Correntes d’Escritas 2006, em A Póvoa do Varzim

“Quando me convidaram a falar em estas Correntes d’Escritas sobre a blogosfera, pensei que não era a pessoa mais indicada, pois eu não som um bloger, não som um usuário de bloges. Estou-me aproximando dessa idade provecta dos 50 anos e muitos dos avanços tecnológicos passam ao meu lado sem que eu consiga entende-los. Mais este convite actuou como uma espécie de estímulo. Como intelectual não tenho direito, não só a não conhecer, senão mesmo a não compreender um fenómeno actual que está, sem dúvida marcando a toda uma geração. Os portugueses, tão dados no passado à exploração e à descoberta, não podem estar alheios a este fenómeno. Eu, como galego e trabalhador do intelecto (o escritor trabalha com a língua ou se se quer com o sistema de pensamento). Eu passo quase nove horas ao dia diante do ecrã da computadora e som visitador regular de bloges. Quando me propuseram este mote, pensei de contado na teoria de conjuntos e quis pensar a blogosfera em termos de intersecções, uniões, subconjuntos (bloges) e relações entre eles (links, posts/ ligações, espinhas), constituindo redes de relações entre os elementos de tipo unívoco (de um a outro subconjunto) ou biunívocas (de um elemento “a” dum subconjunto a outro elemento “b” e de este elemento “b” ao elemento “a). A união dos elementos de todos os subconjuntos possíveis (é dizer a união de todos os elementos dos distintos bloges) daria lugar ao “Universo” Blogosfera.
A palavra “universo” fixo acordar em mim a ideia de “universo” em termos astronómicos. Se existia um universo, falar podia de estrelas. Cada bloge uma estrela. As estrelas segundo as reacções termonucleares que aconteçam em o seu seio, e os bloges segundo a quantidade de informação que contenham, podem-se dividir em anões brancas (bloges recentes, cheios de energia), gigantes vermelhas (bloges já antigos, com grande quantidade de informação, mais algo rotineiros, coma sem força), estrelas marrões (bloges que se apagam progressivamente, que perdem interesse e visitas). Já logo teríamos os buracos negros (bloges que geram ao seu arredor um campo gravitacional, que atraem comentários de toda parte, que toda a gente consulta e comenta), os bloges sol, arredor dos quais outros bloges subsidiários se alimentam e vivem, sendo estes os bloges planeta, sem luz própria e fazendo a função de repetidores de ondas, ecoando o que acontece em os bloges sol. Hainos de curta duração, bem por desinteresse do que os iniciou ou bem porque foram programados a tempo fixo, como os que se fãs para promover um livro, por exemplo, estaríamos, então, diante dos bloges estrelas fugazes. Também haveria bloges cometa, que passam e deixam um ronsel de informação ou influências, que podem mesmo deixar traças e originar modificações do seu contorno. Há, por suposto, os bloges lua, que ciclicamente movem as marés e as modas, que geram eclipses e aparecem e desaparecem de continuo. E há também, como não, (para isso estão as ligações), galáxias e constelações de bloges que se associam por temas ou afinidades. E não podiam faltar as supernovas, resultado de intercâmbios de energia/informação entre bloges binários, com origem no mesmo nauta ou não. As supernovas, segundo me explicaram nos anos já afastados da escola, som aquelas estrelas que captam matéria e energia de outras estrelas próximas, que actuam como parasitas e acabam por roubar lhe o material tudo ate elas próprias acumular a energia binária. Os links (ligações) actuariam como “buracos de verme”. Em física, os buracos de verme são hipotéticas características topológicas do espaço-tempo, descritas nas equações da teoria da relatividade geral (uma espécie de atalho a través do espaço e do tempo), que é o próprio que acontece com a informação que se move (aparece) entre bloges (que se replicam, que se repetem, que se citam, que se comentam os uns aos outros).
Um pensa que o conceito de bloge é muito novo, pois une palavra escrita com imagens e som. Postos a pensar em termos arqueológicos (paleotecnoantropológicos) os bloges tem os seus antecessores em os diários literários dos escritores entre os que poderíamos lembrar a Franz Kafka, Leon Tolstoi, André Gide ou Anais Nin, por dar exemplos bem conhecidos da literatura ocidental. Más recentemente, o antecedente pódese procurarem bem em as auto publicações (fanzines, jazz poetry com Ferlinghetti à cabeça) ou bem com os “pal pens” das décadas dos anos 60-80 do século XX. Os pal pens ou amigos da escrita, eram aqueles que se escreviam entre eles para se contar as suas vidas, para partilhar experiências, para estar ou sentirem-se menos sós. Intercambiavam também cassetes (sons) e fotografias, diapositivas ou pequenos filmes em super-oito. As características que marcam a diferença – grande diferença som:
a) A imediato da transmissão (o clickwriting); essa demora mínima que faz que o texto chegue ao leitor quando se está produzindo
b) A politopia, ou possibilidade de que uma mensagem, um texto, um bloge esteja ao mesmo tempo em vários (potencialmente muitos) lugares a um tempo, uma espécie de “ubiquidade” da mensagem.
c) A capacidade do “leitor” de modificar os conteúdos (por médio das espinhas ou comentários). O texto não é mais algo estático; inamovível, senão que sofre uma transformação permanente.
d) A possibilidade de seguir um texto em construção, que mesmo pode ser de-construído, em terminologia importada de Derrida, é dizer, descoberto na sua origem, anal içado, modificado e mesmo disseccionado ata encontrar lhe a estrutura; Quantas historias não começam agora como pequenos fragmentos em um bloge, que logo se transformam em livro. Pode-se dizer que, pelo de agora, a maioria dos bloges com ambições literárias, tenham como ambição final a publicação em papel, pois continua a ser o livro (por quanto tempo) um artigo de distinção, um objectivo de reconhecimento, uma obra tangível.
e) O autor pode incrementar a sua presença e mesmo utilizar o seu bloge como médio de auto-promoção, por exemplo, pondo-lhe ao blogge o nome do seu próximo livro, adiantando fragmentos...
f) A possibilidade do autor de “vigiar” aos seus leitores, saber quantos o consultam, de onde e tudo isso em um tempo recorde (pode mesmo traçar a quem fixo o comentário e contestar-lhe, pois tem normalmente o seu endereço electrónico);
g) Alguém poderia pensar que democratiza a escrita: qualquer pessoa que tenha uma computadora pode “publicar” o seu bloge em Internet e chegar aos quatro cantos do mundo, o que se entenderia em principio como democratização, como que “publicar” deixou de ser privilegio das elites e, alguns podem mesmo ir tão longe como dizer que é um acto “antiburgués” e que se hoje vivesse o Che Guevara escreveria o seu diário em forma de blogge. [Logo das intervenções em esta mesa dos meus colegas escritores de Moçambique (Guita Júnior) e da Guiné-Bissau (Wilmar Araújo), a minha ideia de democratização arrefece um pouco. Quem tem uma computadora em Moçambique? quem tem electricidade ou linha telefónica em Guiné-Bissau? Não será mais um avance tecnológico que nos separa e que não nos aproxima?]
[2]
Como todas as tecnologias (ou quase todas) e como todos os métodos de comunicação actuais, tem os seus detractores e os seus ferventes admiradores. Ensaio (nem sempre consigo) pensar com racionalidade e sossego. Nem é algo abominável nem é algo insuperável. Para mim, e já, para final içar, é uma etapa intermédia no desenvolvimento tecnológico e dentro de uma década ou mesmo antes estará superado por uns sistemas muito mais sofisticados que combinem a imagem gravada com subtítulos automaticamente traduzidos na língua solicitada pelo receptor da mensagem, de forma que poderemos escutar a um amigo chinês falando em chinês e com subtítulo em português ou em búlgaro, em galego ou em romani, ou escuta-lo mesmo coma se estivesse falando directamente na nossa língua materna.
Há que falar em bloges por varias rações, a primeira sem dúvida porque é uma realidade que esta aí, se calhar pouco utilizada em as suas possibilidades e a outra porque é um instrumento que pode ajudar a mudar mentalidades, a espalhar ideias, a exercer a liberdade de expressão... em definitiva a resistir contra a onda de uniformização e de simplificação que já nos começa a asfixiar.

[1] O texto não foi lido, mais serviu de base para a dissertação. Originalmente foi escrito em português e assim fica.
[2] O texto entre [ ] não estava no original, mais foi comentado ao fio das intervenções que me precederam e dou pé, perante o colóquio que seguiu a palestra como tema de varias intervenções nas que se estabeleceram diferenças entre o “primeiro” e o “terceiro” mundo, termos hoje obsoletos, pêro ainda de uso comum.

terça-feira, maio 16, 2006

Filipa Leal entrevista Paulo Kellerman

No dia 15 de Maio, o Artes e Letras, suplemento literário de O Primeiro de Janeiro, deu a conhecer a primeira entrevista de fundo a Paulo Kellerman, autor de Gastar Palavras e a quem foi atribuído o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco APE/Câmara Municipal de V.N. de Famalicão. Conduziu a entrevista Filipa Leal, jornalista que pouco a pouco se vai afirmando como uma das melhores e mais prometedoras críticas literárias da sua geração por, entre outras coisas, não hesitar em emprestar rigor e seriedade aos trabalhos que assina. A entrevista começa assim:

E se alguém perguntasse: quem és? Paulo Kellerman foi o vencedor do Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco. Nasceu em Leiria, em 1974. Responde como quem pergunta. Povoa como quem parte. Concebeu a revista literária «Cadernos do Alinhavar», foi colaborador do DNa e da Storm Magazine, divide a sua bibliografia entre “edições de autor e edições a sério”. Assim se apresenta: “Escreve contos, estórias e histórias. Não compreende quem considera a narrativa curta uma forma literária inferior ao romance ou à poesia. Colabora aqui e ali, publica onde calha, faz pela vida. De certo modo, anda à deriva”. Deriva é também o nome da editora que lhe publicou o livro «Gastar Palavras», que acaba de receber o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco (APE/ Câmara Municipal de Famalicão). Uma obra surpreendente, onde Paulo Kellerman confessa: “Gostava que me pedisses: fala de ti”. Nós pedimos.
Filipa Leal

Comecemos por uma frase deste livro: “E se alguém perguntasse: quem és?”
Não sei bem, ainda me estou a procurar. Mas começa a ser irrelevante. Há cada vez mais gente a dizer: és uma pessoa boa. E isso vai-me bastando, essa simplicidade. Quem sou? Uma pessoa que tenta ser boa, que amanhã poderá ser melhor. E que depois morrerá, e pronto.

A certa altura, escreve: “E assim tenho ocupado a minha existência: a povoar”. Qual é o lugar das palavras nesse processo?Suponho que as palavras povoam a imaginação, permitem-lhe conceber sonhos, projectos, utopias, ideais. Ou seja: libertam.

A cegueira, a velhice, a indiferença, a morte como metáfora de um íntimo abandono, o amor envelhecido, gasto talvez, como as palavras. São também estas as preocupações que o povoam enquanto ser humano?
(ler a continuação da entrevista...)

segunda-feira, maio 15, 2006

Cearense preso a sorriso minhoto, por Vítor Pinto Basto

A importância das coisas sem importância
Porto, 15 de Maio de 2006
Ontem, no Pavilhão do Coimbrões (em Gaia) assisti a uma manifestação desportiva fantástica. Dezenas de crianças divertiam-se a aprender a jogar basquetebol e mostravam aos pais e familiares, sentados nas bancadas, como sorrir é um fermento necessário para a vida ter interesse em ser vivida.
Ao ver aquela gente anónima que organizou o simpático evento desportivo, que não aparece nas primeiras páginas nem nas outras dos nossos jornais - e vivem pouco se preocupando com isso, mais interessados em ajudar a criar crianças para, através do desporto, serem melhores adultos -, lembrei-me de um texto que escrevi em tempos, e depois revi, e com que quis homenagear a real importância das pessoas sem aparente importância. Aqueles que, para mim, são verdadeiramente importantes.
É esse o texto:
O cearense preso a sorriso minhoto
O Hugo ainda venderá lagosta, com os seus 14 anos, na praia do Futuro, em Fortaleza. Caminhando pela praia como quem saltita sobre sorrisos. Assim assumindo a sua importância num importante mundo, com sol, praia, mulheres bonitas e tanta quentura na imensidão.
É apenas mais um naquela praga de vendedores que enfernizam a vida a quem pretende sossego.
Mas a ele, com o tempo, facilmente tudo se aceita. Mostra lagostas como se elas fossem a melhor coisa que há na vida, com um sorriso simpático que agrada; lagostas há muitas, sorriso como o do Hugo há só um, o dele.
George W. Bush nem sabe que ele existe, Saddam Husein também; mas haverá, no Iraque, nos EUA e noutros cantos do Mundo, crianças com a simpatia e o sorriso semelhante ao do Hugo. E outras crianças, certamente, com outros sorrisos e outras maneiras de mostrar a sua ternurenta maneira de aceitar o Mundo
Na praia, aquela criança chamada Hugo tem diariamente uma guerra para ganhar: arranjar dinheiro para entregar à mãe, que também anda no areal a garimpar reais para lutar contra a pobreza, que a mina.
Na praia do Futuro, com o areal sendo a sua fortaleza em Fortaleza, o sol e o mar o seu campo de batalha, a todos tenta conquistar com a sua simpatia.
Naquela Praia do Futuro, crescendo como vendedor de lagosta não é difícil imaginar que o Hugo dificilmente terá outro futuro.
Nos olhos, Hugo foi mostrando o que trazia escondido, o sonho que transmitiu mal a conversa foi para além da lagosta que queria vender. Tinha o sonho de abandonar as lagostas e trabalhar em Portugal. "Português é mais amigo que os outros", diz, atirando logo para a recordação e para o desejo (não quero acreditar que ele diga o mesmo dos outros estrangeiros): "Conheci uma rapariga de Braga, gostava de a voltar a ver, que sorriso lindo ela tinha. É cara, a viagem de avião?"
Naquela praia, os olhos de Hugo levantaram voo. Uma brisa quente convidava ao mergulho, num sol a que apetece regressar. O mar do Ceará é único porque revoltoso e brincalhão e quente. O paraíso também é ali, a uma hora do Equador. O tempo parece imenso e o deleite também.
Não sei se o Hugo já amealhou o dinheiro necessário para voar até ao sorriso da portuguesa de Braga, que só por luminoso acaso dos deuses poderá voltar a ver. Nem sei abandonou a lagosta para começar a estudar a sério um outro projecto de futuro. Sei que nos sentamos à mesa, naquele bar junto à praia, a comer três das lagostas que tinha no cesto para vender. E ali ficamos a conversar de tudo e de nada. Sem haver tempo para questões metafísicas:
"O que faz uma pessoa sem importância num mundo tão importante?"

sexta-feira, maio 12, 2006

This Mortal Coil, 1982

À Elizabeth Fraser e a Tim Buckley, Song to the Siren e a culpa é do Luís Filipe Cristóvão que me ensinou a vir aqui. Isto foi em 1982.

quinta-feira, maio 11, 2006

Peter Handke, aqui és livre!

Peter Handke, sempre gostei de ler-te e ouvir as tuas opiniões. Soube, só agora, que te censuraram uma peça que ia estrear na Comédie Française. Não queria acreditar quando me explicaram (não bastava só a leitura de um absurdo) que te censuraram por teres ido ao funeral de Milosevic e de te pores ao lado dos sérvios, o que quer dizer, dos vencidos. Nestas coisas há sempre vencidos e, como também sabes muito bem, são os vencedores a organizar os tribunais. É por isso que não vês, lá em Haia, nem croatas, nem bósnios, nem albaneses. Esses são aparentemente livres.
Pois aqui, desde já, proclamo a tua liberdade, sem que saiba muito bem a dimensão dessa mesma liberdade que perseguiste sempre e é já com algum estupor que gritas para deixarem de comparar o incomparável, de banalizar Hitler ou Ceausescu. Tu, aqui, és livre. Seja lá, hoje, o que isso for.

Páginas de um Diário Alemão - III, de João Pedro Mésseder


Berlim, 14 de Agosto, 20,00 h

De manhã, outra volta por esta metrópole que se diz liberal, cosmopolita, multicultural. Na Karl Marx Allee, em breve serão arrasados os edifícios dos anos 60, enormes paralelipípedos para habitação construídos pelo governo socialista. Em seu lugar erguer-se-ão arranha-céus, esmagando simbolicamente o coração da Berlim vermelha, muitos deles desfigurados por enormes logótipos luminosos, como já hoje se vê.
O que mais impressiona aliás, na cidade reunificada, é o afã ocidental em ajustar contas com o passado recente através de uma arquitectura poderosa que rasura ou oculta os sinais da História. Essa mesma atitude que, após a reunificação, levaria às infames campanhas contra Heiner Müller e Christa Wolf — e Brecht também as pagaria, caso este tempo fosse ainda o seu. Do mesmo modo que, em poucos anos, zonas de fronteira foram preenchidas por prédios de escritório e comércio, vão-se apagando os traços de uma vida alternativa.
Trata-se, afinal, de um triste epílogo. Por um lado, a pressão e a propaganda das potências ocidentais, o clima de Guerra Fria e a espionagem, a corrida aos armamentos e a ilusória imagem de um paraíso consumista difundida pela ex-Alemanha Ocidental; por outro, os trágicos erros dos responsáveis políticos da ex-RDA (assassinatos no Muro e muitos outros) e o crescente divórcio entre dirigentes e população. Tudo fez o sistema resvalar para a limitação das liberdades e para o despotismo burocrático e policial, não obstante as muitas conquistas alcançadas no domínio da economia e no plano dos direitos humanos e sociais (trabalho e habitação, acesso à educação, à saúde, à cultura). A Perestroika acabaria por dar o golpe de misericórdia neste triste estado de coisas.
É por isso que todos os dilemas, perplexidades e debates da esquerda europeia passam por Berlim, onde os novos e restaurados edifícios da zona oriental ostentam, com arrogância, os anúncios luminosos das multinacionais e de outras grandes companhias alemãs e ocidentais. Assim se exibe o espectáculo da globalização capitalista, nova (?) rica e neo-liberal, diluindo-se a memória revolucionária de uma cidade que foi palco do espartaquismo, da resistência à barbárie nazi e da malograda tentativa de construir uma sociedade mais justa.

*
Tarde em Potsdam — por estas paragens foram rodadas, em 1974, algumas cenas de «Barry Lyndon». Para o olhar, é fácil deixar-se seduzir pela elegância amarela e cobre do palácio barroco de Sanssouci, mandado edificar por Frederico, o Grande, da Prússia — que gostava de Voltaire e sepultava os seus cães num canteiro próximo, com direito a lápides de granito. De repente estamos no refinado século XVIII e, no ouvido da memória, um tema escolhido para o filme de Kubrick — o ‘andante con moto’ do trio para piano, violino e violoncelo em mi-bemol de Schubert (opus 100) — acompanha a descida do jardim real, com seus amplos degraus de vinhas e figueiras que Frederico teimou em plantar nesta terra fria e húmida. Ao fundo da esplendorosa escadaria verde, um caminho à direita do curso de água conduz ao ouro da Casa Chinesa por entre as árvores de um jardim inglês. De chinês, as grandes figuras esculpidas apenas têm os olhos; os corpos são germânicos.
Tempo ainda para visitar o Cecilienhof, palácio-chalé em estilo inglês, construído durante a Primeira Guerra como residência de Verão do príncipe herdeiro, Guilherme, e da mulher, Cecilie von Mecklenburg-Schwerin. Uma vez derrubado o Muro que por aqui passava, a vista dos jardins para as águas do Havel dir-se-ia obra de paisagista. Cecilienhof é também o lugar da Conferência de Potsdam, em 1945. Recuar até esse tempo, no gabinete de trabalho de Stalin ou a sete palmos da mesa onde Churchill, Truman e o secretário-geral do PCUS se reuniram para decidir os destinos do mundo…
Regressamos a Berlim atravessando Potsdam. Entre belas mansões, palacetes e jardins, vêem-se as casas dos generais soviéticos que aqui estavam destacados, perto da sede local do KGB. Olhando para a esquerda e para a direita da estrada, convocam-se imagens de um passado ainda recente, estranho misto de romance de espionagem à John Le Carré e de utopia disfórica, mundo que a pouco e pouco se tornou cinzento e duro, embora conservasse em fundo a grandiosa elegância dos cenários: no rio e nos lagos, nos enormes parques da realeza prussiana, nos palácios e vivendas setecencistas e oitocentistas. Apenas as casas da velha comunidade russa, com seus rendilhados de madeira, quebram alegremente este equilíbrio.
Por fim, atravessamos a ponte onde russos e americanos trocavam espiões durante a Guerra Fria e reentramos, pouco depois, em Berlim Ocidental para uma última paragem no Estádio Olímpico — esse mesmo onde o Ogre discursou e Leni Riefenstahl compôs hinos em imagens à beleza dos corpos atléticos.

*
O céu de Berlim – inevitável (re)tirada lírica

Sobre bandeiras ao vento — frenéticas ondas — e cúpulas de cobre, o céu de Berlim esqueceu a poeira dos mortos, dos construtores de muros e frustrados futuros. Acolhe agora os incineradores da memória que edificam, sobre escombros e paredes crivadas de balas, falsos paraísos de vidro e luz aprisionada. O céu da nova Berlim é dos fazedores de cinza e dos comedores de oiro. Um dia ainda os veremos a implorar uma cerveja no inferno.

quarta-feira, maio 10, 2006

Sobre a Crítica Literária: algumas opiniões que...

Algumas opiniões de críticos literários que foram publicadas antes da atribuição do prémio do Paulo Kellerman:

“Paulo Kellerman mostra uma desenvoltura de temas e de processos, que nos convencem e entusiasmam..." Fernando Venâncio, Expresso

“Os melhores nomes que têm passado pelas páginas do DNa saltam daqui para a edição de obras literárias unanimemente apreciadas e elogiadas. A lista é saborosa: José Luís Peixoto, Pedro Mexia, Possidónio Cachapa, José Mário Silva, Paulo Kellerman, Luís 0sório, para ficar pelos colaboradores mais regulares..." Pedro Rolo Duarte, DNa

"...Tem a primeira virtude da melancolia, o eco das vozes, derrapando com certo brilho na primeira curva da realidade, para uma viagem algo hipn6tica." Jorge Listopad, Jornal de Letras

"... Interessa é sublinhar o domínio técnico do estilo de Paulo Kellerman, bem como a singularidade dos enredos que lhe assomam ao papel." Hugo do Vale, MagazineArtes

segunda-feira, maio 08, 2006

Grande Prémio de Conto «Camilo Castelo Branco» 2005 da CM Famalicão / APE atribuído a Paulo Kellerman. Viva!





















Depois de um «estranho» telefonema, na Sexta-feira, dia de todos nos irmos embora não se sabe bem para onde, da sede da APE querendo saber alguns dados do Paulo, e depois de «desligar-me» prudentemente do assunto a fim de não gerar mais expectativas, fui invadido por uma alegria enorme quando o Paulo me disse, ao telemóvel e em plena rua do Porto, um nervosíssimo:
«-Ganhámos!»

Não me quero a ver aqui repetir o bovino «-Não tenho palavras!» com que as pessoas em qualquer tv, à falta de vocábulos apropriados, repetem este estribilho que não indica só falta de palavras, mas de outras faltas bem mais graves. Eu fiz uma coisa estranha: fui buscar a minha filha à escola e fui com ela comemorar, com um lanche à maneira e mandando sms a toda a gente de bem, que ele também as há! Devo dizer que o apetite era voraz, vá lá Freud explicar isto.

O Paulo merece tudo isto e muito mais. Conheço, aliás, mais a sua escrita do que a sua pessoa. Vejo nele um homem cordato, atento e perscrutador, generoso e bom. Mas, digo-o sem quaisquer problemas, a sua escrita é a melhor que nos últimos anos, e no género do pequeno conto, há em Portugal. O Paulo é um jovem escritor que não precisa de conselhos porque intui e analisa com cuidado as coisas. O Paulo tem muitos amigos o que o faz ser uma pessoa livre.

Num momento como o de hoje (nós somos daqueles que ficamos felizes com a atribuição de prémios, porque ainda nos lembra coisas parecidas com reconhecimento público) cabe também dizer duas coisas para aqueles que colocaram (cremos que cuidadosamente) o livro de lado à espera de melhores dias para a crítica literária. Muito poucos notaram a escrita do Paulo Kellerman ou, se notaram a sua qualidade, calaram-se. É pena, mas isso levar-nos-ia a uma grande conversa que agora não cabe aqui.

Para o Paulo (que por aqui no Deriva das Palavras tem uma «coluna» residente) um grande abraço.

Paulo Kellerman, Gastar Palavras, 60pp., 10 euros.
pedidos a deriva@derivaeditores.pt

sexta-feira, maio 05, 2006

Abrasivas de João Pedro Mésseder - crítica de António Guerreiro



Do Expresso de 11 de Março:

«É tempo de prestar atenção a este poeta que tem sido discretamente editado e silenciosamente acolhido. Neste livro, o autor ensaia um discurso que já não é o da poesia, mas inscreve-se ainda no seu horizonte: o discurso do aforismo, da máxima concentração do pensamento na palavra e na frase cheia de agudeza e engenho. Aquilo que na teoria da escrita aforística dos moralistas clássicos se chamava a «pointe» encontra aqui conseguidos exemplos na arte da fórmula, onde cada palavra é, no mais alto grau, uma função do pensamento. Uma e outro existem numa relação de recíproca funcionalidade. Um exemplo, em jeito de paradoxo: «A televisão é a máquina que mudou o mundo - para que o mundo não mudasse.» Outro exemplo, onde a lógica da contemplação é perturbada por um finíssimo desvio: «No céu, a lua não perde a compostura. Mas quando a vemos mergulhada nas águas, treme de frio».
António Guerreiro

João Pedro Mésseder, Abrasivas, 62 pp., 12 euros.

pedidos a deriva@derivaeditores.pt

Rolas de Bakunine e Ser ou Não - Jornal das Letras



Do JL de 26 de Abril a 9 de Maio:

«Notável. É o mínimo que se pode dizer do trabalho que a Deriva tem vindo a desenvolver no campo da divulgação de autores galegos em Portugal. Traduzindo clássicos ou apostando em novos valores, com edições cuidadas e traduções rigorosas, é uma aproximação às raízes que nos ligam àquela região espanhola. Duas novas vozes surgem agora, com a edição dos livros As Rolas de Bakunine e Ser ou Não. O primeiro tem por base a vida de Camilo Sábio Doldán, pretexto para se descrever a activismo anárquico durante a Guerra Civil espanhola. O segundo, por seu turno, desconstrói o conceito de romance, narrando o autor a sua própria criação, sem esquecer a atribuição de um prémio literário.»

Antón Riveiro Coello, As Rolas de Bakunine, trad. de Dina Almeida, 176 pp, 15 euros.
Xurxo Borrazás, Ser ou Não, trad. de Isabel Ramalhete, 134 pp., 13 euros.

pedidos a deriva@derivaeditores.pt

quinta-feira, maio 04, 2006

Os ossos de D.Sebastião são os nossos

D. Sebastião é nosso defunto e a ausência dos seus ossos foi fatal para este povo, em 1578. Num momento crucial para a vida e destino dos portugueses torna-se evidente o trabalho aturado dos espanholistas em quererem azucrinar-nos as mentes, principalmente quando já se percebeu a plena recuperação económica, mental e, pasme-se, cultural, que aí vem. Todos percebemos já, o fino recorte da jogada de António Villacorta Baños-García, psicólogo e escritor, que está empenhado em demonstrar, através do estudo do ADN dos ossos do mais incompetente rei da nossa História, já de si parca, em grandes momentos, que será filho de quem foi e neto do avô, D. João III, o tal da Inquisição e da Universidade que é o mesmo que dizer que é a mesma coisa.

Por nós, apresentamos, aqui ao lado, o horóscopo do dito cujo rei-menino-guerreiro-esquecidodapátria que prova que ele sobreviveu à batalha de Alcácer (assim mesmo) e que morreu com a idade de 48 anos! Quais 23? 48, ou seja, ainda a muitos anos da reforma. Mas não fiquemos por aqui: é o próprio escritor-psicólogo-espanhol (bem diferente dos nossos escritores-jornalistas-portugueses) que nos diz que há uma lenda segundo a qual «uma princesa moura teria ajudado o rei português a fugir e este ter-se-ia refugiado nas Canárias, onde se casou e teve filhos.»* Só não sabemos se foi com a moura (ele há sempre uma moura), mas nestes casos até pode ter sido com a Pocahontas que não faria nenhum mal ao mundo.

Ora, tudo isto é muito estranho (hmm!). Como se não tivéssemos pensado nisso o escritor-psicólogo avança com mais uma contradição dos estudos já feitos até agora: «O que se passou no campo de Alcácer-Quibir a 4 de Agosto de 1958 (sic!) é até hoje um mistério. Há vários relatos segundo os quais D. Sebastião teria morrido (e nós a pensar que não!), mas só no dia seguinte, a pedido do novo sultão, Muley Ahmed, é que teriam ido procurar o seu corpo entre os milhares de cadáveres deixados no local da batalha.» E continua «Estávamos em Agosto, o calor de África era intenso (fónix!) quando ao fim de dois dias se tenta identificar o corpo, este quase não é reconhecível (argh!).»*
Mas, dizemos nós, aí é que se engana - «quase» irreconhecível! Não tinha Saddam um duplo? D. Sebastião não teria um? Era Ahmed amigo dele? Afinal a moura, a tal moura, poderia ou não ser a irmã, uma mulher do seu hárem, uma tia solteira? E as Canárias? Quem são os nobres descendentes de D. Sebastião? Saramago? Pilar? Enfim, assusta-me o facto de tanta pergunta ficar sem resposta. Pior: poderem ser respondidas será o nosso fim como país e cultura. Lá se vai a identificação. Nem com o ADN dos ossos do rei-menino-guerreiro nos salvará de saber que somos todos seus filhos.
* Público de 4/05/06

quarta-feira, maio 03, 2006

Páginas de um Diário Alemão (II) de João Pedro Mésseder

Hamburgo, 13 de Agosto

Tão burguesa, a capital do grande comércio hanseático. Por detrás de veleiros e cargueiros gigantes, emergem gruas tentaculares. É a difícil beleza das paisagens portuárias, a «Ode Marítima» de Álvaro de Campos, o ferro, o tijolo, a água e um túnel sob o Elba que incute respeito pela nobre arte da engenharia (ou antes, pelo engenho humano). Porto que o cinema tornou mítico (a memória de Sam Fuller e Dennis Hopper n’«O Amigo Americano» de Wenders). Os armazéns cor de ferrugem intimidam: chá, café, amêndoas, especiarias. Com seus jardins junto ao Alster, as mansões elegantes convidam ao devaneio. A influência inglesa é visível.
Bem instalada, senhora de si e da sua sólida beleza, Hamburgo é a cidade do dinheiro. Mas, surpreendentemente ou talvez não, também dessa luminosa brancura e espiritualidade que envolvem o visitante ao entrar na Igreja barroca de S. Miguel, em cuja cripta repousa Carl Philipp Emanuel Bach que aqui tocou, tal como Telemann. E na urbe endinheirada onde todos os dias desembarcam marinheiros ansiosos por saciar o corpo, o órgão que se eleva no silêncio da igreja, a curva elegância da arquitectura interior representam a outra face deste mundo. Cá fora, as feições pétreas de Lutero velam para que assim seja.


Berlim, 14 de Agosto, 01:00 h

Não é fácil regressar à velha e nova capital da Alemanha, sete ou oito anos depois, mas a emoção é a mesma. Porque esta é a cidade onde tudo se passa e onde tudo se passou. A História projecta as suas sombras em cada praça, em cada rua, em cada parque, ponte ou monumento. A poesia e o teatro de Brecht, a música de Kurt Weil e o cabaret berlinense a cada minuto do relógio da memória. O Reichstag ainda é uma imagem de chamas, mas também do soldado com a bandeira, lá no alto, quando o Exército Vermelho libertou Berlim.
Saímos da velha Alexanderplatz de Alfred Döblin — que, depois dos bombardeamentos, se converteu num outro lugar — e caminhamos pelas largas avenidas imperiais. Por trás da torre da televisão, do lado oposto à mítica praça, o parque conserva restos de um mundo que se desmoronou: as enormes estátuas de Marx e Engels (onde um casal de alemães do leste se faz fotografar), o monumento — em alumínio? — com imagens do movimento operário e do combate comunista, os rostos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Depois descemos Unter den Linden e o passeio termina junto às escavações arqueológicas de Schloßplatz, após nos abeirarmos do Spree, onde aqui e acolá ainda se vêem cisnes, como em Hamburgo.
À noite, atravessamos a cidade de leste para oeste, passando pela Staatsoper — onde há anos assisti a’«O Rapto do Serralho» — e pela porta de Brandeburgo, que os anjos de Wenders ainda sobrevoam. Mais tarde, é o regresso à zona oriental, à sua arquitectura monumental e ousada, a de ontem como a de hoje. Edifícios de grandes empresas, como a Mercedes Benz, tocam as nuvens; e a «nova» Berlim, nascida dos escombros do socialismo, é a do Centro Sony, sonho de arquitectos de olhos perdidos na América e nos filmes de ficção científica. Sonho que esmaga e suspende a respiração.

segunda-feira, maio 01, 2006

Rui Pereira explica como obrigou a EFE a pedir desculpa

O jornalista Rui Pereira obrigou a agência espanhola EFE a retractar-se, a pedir-lhe desculpa e a pagar-lhe uma indemnização pelas referências caluniosas que fez a propósito de um trabalho do jornalista português sobre a ETA. Esta vitória do carácter sobre a arrogância, da verdade sobre a mentira, do jornalismo sobre a propaganda, foi silenciada pelos media portugueses, com excepção do “Público”. Leia as respostas de Rui Pereira às perguntas do CJ On Line www.clubedejornalistas.pt e talvez consiga perceber as razões desta cortina de veludo.

Depois de teres levado a questão a tribunal, que justificações apresentou a EFE para as acusações que te fez publicamente?
Antes do mais, desejo agradecer ao Clube dos Jornalistas a oportunidade que me é dada para responder (de forma necessariamente alongada) a um conjunto de perguntas difíceis sobre este processo, que tem um lastro de vários anos e ultrapassa largamente o seu conteúdo puramente judicial. Para além do Clube, em Portugal apenas o jornal Público abordou o assunto, na sua edição de 28 de Abril de 2006, com as contingências inerentes a uma notícia e, em particular, a uma notícia sobre uma questão tão “incómoda”.
Por outras palavras, no momento em que respondo a esta entrevista, 30 de Abril, nenhum outro órgão de comunicação social do nosso país encontrou matéria de noticiosa no facto da agência oficial de notícias de um Estado, que reivindica atingir um público de 100 milhões de pessoas no que designa o “universo EFE”, ter tido de, humilhantemente, desmentir-se e apresentar desculpas públicas a um jornalista free-lancer português, isolado, que em tempo de tantos terrorismos, acusara de “simpatias terroristas”.
Estar absolutamente seguro de que não vivemos o tempo da “guerra ao terrorismo”, como milhões de pessoas no mundo, entre as quais me incluo, sabemos não estar, não significa que estejamos a viver tão somente o sinónimo que, com muita graça, o ex-Monty Python”, Terry Jones, encontrou para essa dita “guerra ao terrorismo”: - o “bombardeamento de um substantivo abstracto”.
Parece-me que, na sua devida proporção, o que nos demonstra este caso, subdividindo-o entre o jornalismo espanhol e o português, é que decerto voltam a fazer sentido as grandes palavras de Sophia, escritas num tempo bem menos outro do que parece o actual: “vivemos o tempo dos chacais” no caso do jornalismo hispano sobre a questão basca. E, no caso português, vivemos, mais triste e simplesmente, “o tempo em que os homens renunciam”.
Dito isto, a concreta resposta à pergunta não é possível sem atingirmos a centralidade do conteúdo da “notícia” da agência EFE que, a 15 de Outubro de 2003, dedicou três dos seus oitos parágrafos à entrevista que realizei com a ETA e que acabava de aparecer publicada no 24 Horas e os outros cinco parágrafos à figura do entrevistador! Tratava-se de um linchamento profissional e pessoal que se processava em espiral que transcrevo no original para que não se possa imaginar ter-se aqui alguém “perdido na tradução”:

1- [Fulano de tal] “periodista portugués de conocidas simpatías hacia los sectores radicales vascos”.
2 – “La entrevista, realizada por Pereira en septiembre pasado, en un lugar desconocido de Francia, al que asegura el autor que fue conducido en un vehículo cerrado”.
3- “Pereira, autor de dos libros en Portugal con una visión poco objetiva sobre el País Vasco,
4- está considerado en círculos periodísticos portugueses como claro simpatizante de la banda terrorista ETA, en muchas de cuyas páginas de internet es citado en tono laudatorio”.
5 – “Rui Pereira, que en tiempos trabajó en el semanario "Expresso" y salió de éste en circunstancias poco claras,
6 - ofreció su material medio por medio, aunque sólo fue aceptado por el sensacionalista "24 horas".

Isto é: com a credibilidade que, em teoria, possa merecer, a agência informativa oficial espanhola dá-se conta de que um determinado jornalista tem “conhecidas simpatias” com um dos sectores sobre os quais escreve: “os radicais bascos”.

É a partir desta “falta”, que o autor assegura “que foi conduzido num veículo fechado”, mas, em verdade, quem pode garanti-lo?, uma vez que, para além de tudo o mais, ele é autor de “dois livros pouco objectivos” sobre a questão basca. E, acima de tudo, é considerado (não por quaisquer procedimentos judiciais, não por quaisquer relatórios policiais, não por documento algum de qualquer inespecífica espécie), mas sim por não identificados “círculos jornalísticos portugueses” já não como adepto dos “radicais bascos” a granel, mas sim da “organização terrorista ETA”.

Atestam-no as “referências laudatórias” nas (inexistentes) páginas web da ETA, que não é propriamente um portal da net, como podemos dar por provado. As quais, páginas e referências, também não são na notícia, nem serão jamais em documento algum juntado ao processo pela defesa, exibidas.

O mau carácter, porém, do pseudo-jornalista (subjectivo, simpatizante radical e terrorista) é atestado por fim, pelas “circunstâncias pouco claras” em que saiu do prestigiado semanário “Expresso”, para acabar mendigando que lhe publiquem um material que só o “sensacionalista” 24 Horas aceitará.

Só entendendo esta espiral discursiva de “esquadrão da morte” dirigida contra um indivíduo que o autor da notícia não conhece nem nunca conheceu, se percebe como é que tudo isto é escrito por uma agência noticiosa sem fontes, sem ouvir o visado e, cereja sobre o bolo, com uma nota de crítica literária (“livros pouco objectivos”) enfiada pelo meio de um despacho noticioso.

Qualquer jornalista (não confundir, necessariamente, com portador de carteira profissional de jornalista) sabe tão bem o que isto é, quanto indefensável o é. E foi-o. Apresentarei, em seguida, as principais teses da defesa, acrescentando as réplicas que as inviabilizam.

Percorrendo os documentos do processo, que são agora (felizmente) públicos, ver-se-ia que a agência EFE, na sua primeira contestação, nega a identidade do redactor. Para, em seguida, sustentar que a notícia é escrita “de acordo com as regras jornalísticas espanholas”.

[Réplica: - Desmerece]

Que “simpatizante dos radicais” é “economia de palavras e objectividade das mesmas”. Tal “proximidade do Assistente [queixoso] aos sectores radicais bascos é sentida [sic] por vários jornalistas portugueses e espanhóis, e revelada também pela assiduidade das suas colaborações com o jornal Gara”, diário de linha editorial independentista.

[Réplica: - “Sentida”? Em que termos, físicos?, psíquicos?, para-normais?... quais jornalistas? A “assiduidade” das colaborações com o diário Gara, por seu lado, resumir-se-á a um único artigo escrito num âmbito em que vários jornalistas e intelectuais do mundo foram convidados pelo jornal a escrever sobre a realidade da tortura, no quadro, inclusivamente, de iniciativas da Amnistia Internacional contra a tortura. Uma das pessoas convidadas fui eu.. Nunca escrevi nenhum outro artigo para o Gara, supondo que isso poderia significar algo mais do que escrever um artigo para o Expresso, por exemplo].

Aliás, acrescentava a defesa, para desqualificar o jornalista, “podemos também encontrar livremente na Internet algumas petições ou textos de solidariedade com os sectores radicais bascos que são assinados pelo Assistente”, perguntando-se se “não representará isto um sinal de proximidade”?

[Réplica: a defesa “ajuntou”, de facto. Arregimentou um abaixo-assinado contra a “ilegalização das ideias”, a propósito da ilegalização da Batasuna. No ajuntamento havia outros simpatizantes etarras, assumindo a linguagem da “notícia”. Conforme os documentos 15 a 17 e 24, apresentados pela defesa, aí encontraremos então: Gerry Adams; Santiago Alba Rico, filósofo. Baptista-Bastos; Manuel Carvalho da Silva; Pete Cenarrusa, secretário de Estado do Idaho (Estados Unidos). Francesco Cossiga, ex-presidente de Itália e membro permanente do Partido Popular Europeu; António Miró, pintor. Adolfo Pérez Esquível, Prémio Nobel da Paz. Alec Reid, sacerdote, mediador no processo de paz da Irlanda. James Petras, professor da Universidade de Birmingham, etc., etc., etc.]

A EFE não se pronunciará, nunca, sobre a “economia de palavras e objectividade” da expressão”simpatizante da organização terrorista ETA”. A defesa preferirá saltar para a parte referente à saída “pouco clara” do Expresso, para pretender como “na verdade, não poderá deixar de causar alguma estranheza para um jornalista, que após a colaboração de vários anos do Assistente com o supra-mencionado semanário, seja a mesma interrompida de forma mais ou menos inesperada” [?]. Uma saída, acrescenta a defesa, sem especificar, que foi “alvo de especulações no meio jornalístico, em particular, na redacção do Expresso”.

[Réplica: O que há de estranho em trabalhar num sítio, deixar de trabalhar nesse sítio e ir trabalhar noutro sítio, como foi o caso, por proposta do próprio à Sojornal? Sem qualquer processo judicial, por puro, mero e sumário mútuo acordo? Sem qualquer negociação nem discrepância indemnizatória? Mais, essa “colabroração”, ao ser interrompida de “forma mais ou menos inesperada” (para quem?), tornou-se alvo de “especulações”. O que, como sabe qualquer jornalista, incluídos os da agência EFE constitui a base mais idónea para se fazerem notícias].

Mas aqui, a defesa tinha trunfo. E acrescentava, como “as razões da saída podem ser clarificadas pelo [à data] subdirector do semanário Expresso [hoje seu director], Henrique Monteiro, melhor identificado no rol de testemunhas”...E com isto terei de entrar na “conexão” portuguesa do assunto, porque, ouvida em sede de instrução contraditória, a mencionada testemunha clarificará da seguinte forma aquilo que a defesa deixara, na sua nebulosa, em suspensão: “o Rui Pereira pediu a demissão depois de confrontado pela Directora do pessoal com o facto de estando de baixa desenvolver trabalho jornalístico para a elaboração de um livro que ele próprio viria a publicar. No entender do depoente a saída de Rui Pereira deveu-se igualmente a uma sucessão de comportamentos pessoais e editoriais considerados reprováveis” E mais não disse, ratifica e assina.

[Réplica: Percebe-se, assim, a ausência de qualquer processo disciplinar, de qualquer atitude do jornal relativamente ao seu jornalista, cujo livro seguinte que publicaria seria uma obra colectiva preparada com vários autores em 15 dias com a editora Campo das Letras, que o testemunha evidentemente, mais de meio ano depois de ter saído do Expresso. Quanto à clarificação da exposição da testemunha sobre as razões da saída, a própria defesa da EFE terá ficado tão esclarecida quanto o leitor: “uma sucessão de comportamentos pessoais e editoriais considerados reprováveis” [de que não fica para amostra um só exemplo]. E mais não disse, ratifica e assina”. Por minha parte, como não se chegou a audiência, ficar-me-ei, publicamente, por aqui, com um “sem comentários”, a que acrescentarei estar longe de mim tecer considerações sobre o que possa passar-se na consciência de terceiros.]

Depois de me ter alongado tanto nesta resposta, posso apenas dizer que ela é, apesar de tudo, um resumo ínfimo, do constante do processo, que terei todo o gosto em publicitar a quem revelar interesse e o sentir como algo de útil.

Na questão do País Basco, como interpretas o facto de a agência EFE tentar desvalorizar o teu trabalho com a acusação de parcialidade, quando a cobertura noticiosa dos grandes meios de Espanha é, mais do que parcial, preconceituosa e perfeitamente alinhada com uma das posições?

É um truque velho como a mentira o de acusar o outro das nossas próprias faltas. O problema da cobertura espanhola do conflito basco antecipa, em muito, o que viria a seguir-se um pouco por todo o chamado Ocidente, após o 11 de Setembro de 2001. Antecipa-o porque já em 1983, altura do primeiro governo socialista de González, se aprovou um plano político-militar chamado Plano Zona Especial Norte (ZEN), que além de advogar as acções dos esquadrões da morte como os GAL, por exemplo, apontava à imprensa, entre outras grandes linhas propagandísticas, três curiosos tópicos: «Dar informações que personalizem os terroristas. (...) [Promover] acções nos meios de comunicação social mediante a difusão de notícias falsas, emprego de uma semântica que não favoreça o grupo terrorista etc...». E o texto concluía: «Basta que a informação seja credível para que se possa explorá-la».

O Plano ZEN seria aprovado pelo parlamento de Madrid, reunindo um consenso de adesões a que poucos jornalistas conseguiraim, posteriormente, furtar-se sem correrem sérios riscos de “dessocialização profissional”. Outros perceberam como era bem mais doce docilizarem-se e aplicá-lo.

Três exemplos desta aplicação a dirigentes da ETA, por respeitáveis órgãos de informação espanhóis, ao longo dos anos seguintes: Artapalo é alucinadamente descrito deste modo: «A sua maior afeição é matar gatos. Pega no felino entre os braços, acaricia-o, faz-lhe caretas e, logo, estrangula-o». (Tiempo, 15.4.91). Sobre Pakito, fica a saber-se através do mesmo número da revista que ele é «duro, implacável e temível». Txomin, por seu lado, além de ter «mais de 150 assassinatos na consciência», ostentava um perfil correspondente, de acordo com a Cambio16 de 12.5.86: «dorme todas as noites numa casa diferente e a cada manhã muda de carro. Desloca-se sempre na companhia de guarda-costas e cães pastores alemães». Por esta altura, acrescentava a revista, a sua vida afectiva também melhorara, depois de uma longa fase em que «não tinha os êxitos com as mulheres de que agora parece desfrutar, devido ao seu cargo como chefe máximo da ETA militar».

No ano seguinte, em 1987, o PSOE exigirá a colaboração da imprensa -como o fará Bush, após o 11 de Setembro de 2001- ditando que esta cooperação “baseia-se numa exigência concreta: a da homogeneidade no tratamento informativo” da “questão basca. Dez anos mais tarde, aquando da morte pela ETA do vereador do PP, Miguel Ángel Blanco, que tanto afectou senão a sensibilidade pelo menos a racionalidade de muito escriba luso, publicitará o Grupo Zeta e Antena 3 Televisión –um dos maiores do Estado espanhol- num texto intitulado “No somos neutrales”, o seguinte, à guisa de conclusão: “anunciamos que faremos o possível para os que colaboram com os violentos, activamente ou mediante um incompreensível silêncio, não encontrem um só resquício pelo qual transmitir as suas obscuras consignas nos nossos meios de comunicação”.

- Que resposta tens para a tese de alguns de que a simpatia por uma causa é incompatível com a «independência» do jornalismo?

Citemos do Livro de Estilos de um diário português de referência, o Público, o artigo 5º do seu articulado sobre Princípios e Normas de condua profissional, onde se lê: “A imparcialidade não é sinónimo de neutralidade quando estão em causa valores fundamentais da vida em sociedade. O PÚBLICO e os seus jornalistas não se sentem obrigados a ser "imparciais" nos conflitos entre liberdade e escravidão, compaixão e crueldade, tolerância e intolerância, os direitos humanos e a pena de morte, democracia e ditadura, livre informação e censura, a paz e a guerra”.

Consideremos, ainda, como “causas” os seguintes princípios do Código Deontológico dos jornalistas portugueses: “O jornalista deve salvaguardar a presunção da inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado. O jornalista não deve identificar, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes sexuais e os delinquentes menores de idade, assim como deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor. O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da cor, raça, credos, nacionalidade ou sexo. O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos... O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade e responsabilidade das pessoas envolvidas”.

Que sentido faz considerar das causas dos Princípios e Normas do “Público” ou destas eventuais causas constantes da ética profissional portuguesa –de que a espanhola não difere, excepto quando é infringida, esclareça-se, a propósito do assunto que directamente aqui nos traz-, que sentido faz, questionava, dizer que mais do que a observância destas regras, a adopção destas “causas” é incompatível com o jornalismo?

Noutro âmbito, existe uma consolidada tradição no desenvolvimento dos princípios da profissão, segundo as quais o jornalismo deve pugnar pela defesa dos direitos da pessoa humana, pela pluralidade e pela democracia política, económica, social, cultural, pela paz, etc. Muito claramente, deixei identificado desde o meu primeiro livro sobre o assunto que sou favorável, na linha da Carta das Nações Unidas e da própria Constituição da República Portuguesa (artigo 1º e artº 7º nº3, respectivamente) ao direito dos povos à autodeterminação, bem como, ao “direito à insurreição contra todas as formas de opressão”. Sublinho “todas” e sublinho “Constituição” portuguesa.

Ainda assim, no meu caso, ninguém, absolutamente ninguém, pode apontar-me um só exemplo de apologia ou regozijo por qualquer atentado ou acção armada seja da ETA, seja de quem for. Ao contrário dos festejos para-bélicos de tantos portadores de carteira profissional de jornalista que pela Ibéria e pelo mundo não escondem o entusiasmo com que assistem aos mais impiedosos bombardeamentos de povos e países inteiros. Que silenciam abominavelmente as práticas de tortura em Estados formalmente democráticos, como é o caso do espanhol, que o anterior relator da ONU para a tortura, senhor Théo van Boven, comparou à “Indonésia ou ao Uzbequistão”, no seu relatório de 2002.

O meu último trabalho sobre a questão basca constou de entrevistas a duas dezenas de personalidades. Apenas o Partido Popular, então no poder, se recusou a falar. Aí entrevisto desde a ETA à juíza da Audiência Nacional (o chamado tribunal anti-terrorista) e ex-secretária de Estado do Interior, Margarita Robles. Do jovem basco documentadamente torturado pela Guarda Civil, Unai Romano Igartua, à filha do ex-dirigente socialista Ernest Lluch, vitimado por um atentado da ETA. Do presidente da administração governativa basca, Juan José Ibarretxe, ao ex-embaixador espanhol em Portugal, Raul Morodo. Do sacerdote irlandês Alec Reid, ao presidente do clube dos empresários bascos, José Maria Vaizcaíno. De Arnaldo Otegi, da Batasuna, ao juiz espanhol Joaquin Navarro, passando pelo líder histórico dos democratas-cristãos bascos, Xavier Arzalluz. Foi este material que me valeu a censura em Portugal e a tentativa de linchamento de algum jornalismo espanhol com a cumplicidade de alguns portadores nacionais de carteira profissional de jornalista.

Apesar do excelente trabalho que alguns companheiros portugueses de profissão têm desenvolvido sobre o País Basco -vários dos quais vão coleccionando já também algumas “histórias para contar aos netos”-, pela elementar razão de que há longos anos me dedico quotidianamente, mais do que à cobertura, ao estudo do tema, é natural que eu disponha de um leque tão amplo, profundo e plural de contactos e entrevistas com nomes desta magnitude e latitude na cena política hispano-basca. O que, pelo menos noutros tempos, era sinónimo de profissionalismo, pluralidade, seriedade e honestidade, que são os factores constitutivos daquilo que se adjectiva por jornalismo “independente”. Sem, contudo, moralizar excessivamente a questão, Paul Ricouer, se acentuava como a subjectividade não poderia ser abolida do ofício de historiador, não deixava, porém, de sublinhar como existiam técnicas que ajudavam a controlá-la e a limitá-la. No jornalismo também. O pior é quando falta a vontade de as aplicar. Aí o problema passa a ser, em jornalismo como em tudo o resto, uma questão não de técnica, mas de honestidade intelectual.

Poderemos dizer que a questão da «independência» jornalística não é levantada quando o jornalista se situa no campo dos simpatizantes politicamente correctos? Ou seja, quando os seus pontos de vista coincidem com a opinião dominante?

Era Arthur Schopenhauer quem escrevia na sua “Dialéctica Erística” que os seguidores cegos de maiorias, que ninguém sabe como se formaram, “são como ovelhas que seguem o carneiro aonde quer que ele vá: é-lhes mais fácil morrer do que pensar”. Schopenhauer achava curioso que “a universalidade de uma opinião” tivesse nelas “tanto peso”. No chamado jornalismo de hoje, estamos em condições de perceber melhor o que tanto intrigava o filósofo. É que, para muitos, é-lhes mais fácil não morrer, mas sim viver sem pensar. Por vezes, é-lhes insuportavelmente difícil conciliar, pela forma de vida que escolheram, o viver e o pensar. É daí que vem o ódio ao pensamento que vai grassando nas redacções. Devemos, aliás, recorrer novamente a um historiador, para percebermos como funciona a mecânica do chamado “politicamente correcto”, expressão à qual prefiro a mais directa: “censoriamente perfeito”.

O problema da objectividade –que por si só nos levaria a longos e interessantes matizes teóricos que não vêm directamente ao caso- ilustra-o, nos termos em que o coloca o historiador crítico norte-americano Michael Parenti: “muitos historiadores que se presumem de imparcialidade, não se dão conta de que estão instalados na respeitabilidade ideológica, sem aceitar nenhum ponto de vista que contrarie a corrente hegemónica. Este sincronismo entre as suas crenças individuais e o credo dominante costuma designar-se ‘objectividade’”. Os “dissidentes –prossegue Parenti noutro trecho- estão privados daquilo a que Alvin Gouldner chamou “as presunções de fundo”, o implícito, o não-analisado, as ideias vulgarmente generalizadas que convidam a acreditar que o já aceite é o realmente verdadeiro. É a esta familiaridade estabelecida e a esta unanimidade de enviesamentos que frequentemente se chama “objectividade”. Por esta razão os “dissidentes” têm de estar constantemente argumentando com a apresentação da prova” do que afirmam. Em contraste, [...] a ortodoxia promove os seus pontos de vista através do monopólio dos meios de comunicação e dos sistemas educativos. [...] Esta é a forma mais insidiosa de ideologia, já que considera que o ponto de vista dominante é o único objectivo, o único plausível e credível”.

Substitua-se nestes fragmentos de History of Mistery, de Parenti “historiadores” por “jornalistas” e teremos a pergunta respondida. Mas, indo um pouco mais longe, imaginemos que, por uma qualquer aberração inexplicável pela ciência contemporânea, alguém aparecia no debate público a defender não apenas que a História é, em larguíssima medida, a História da violência, mas que a violência em muitos casos era não só o único, como o mais adequado dos recursos políticos. Imaginemos que, algum dia, alguém tivesse, já não digo, enaltecido qualquer atentado etarra. Mas que tivesse escrito sobre a ETA e a questão basca coisas como estas:

“A guerra insisto, não é um jogo de vídeo: tem sangue, sangue verdadeiro. Mas quando a guerra é a única solução para evitar males maiores, apenas temos de saudar os que arriscam as suas vidas por todos nós e pela nossa forma de vida. Os que lutam para que as sociedades livres e abertas que conhecemos se estendam”. Ou ainda, “Este é um caminho cheio de boas intenções e que visa adversários abomináveis, [...] Daí os sinais de esperança, pois comporta o combate às tiranias [...] Mas é também um caminho muito arriscado que exige uma determinação no limite do messianismo. [...] Este é o idealismo que alimenta a convicção que levou este conjunto de líderes democráticos a decidirem a guerra. Acreditam que o mundo ficará melhor depois. Neste momento só podemos desejar que tenham sucesso e um sucesso rápido”.

Que diriam, perante isto, a agência EFE, os sub, os vice, os ex-, ou os futuros directores dos jornais portugueses, a não ser que se estava perante a mais descaradamente alinhada apologia do terrorismo e da guerra? E, contudo, tudo isto pudemos lê-lo acerca da carnificina cometida contra o Iraque, pelo exército norte-americano, entre outros, no jornal cujo livro de estilos acima citado desobrigava os seus jornalistas da “imparcialidade” em questões como, entre outras, “a paz e a guerra”.

A propósito deste, à escala, modesto “incidente”, cujos desenvolvimentos me parece não terminarão por aqui, e se comecei com Sophia, não queria deixar de terminar com as palavras da dedicatória dos seus “Contos Exemplares” ao “Francisco [Sousa Tavares, seu marido] que me ensinou a coragem e a alegria do combate desigual”. É um grande ensinamento. E uma longa aprendizagem.

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TEXTO INTEGRAL DO PEDIDO DE DESCULPAS DA EFE:

“Rui Pereira, Juan Frisuelos e Agência EFE, SA respectivamente assistente, arguido e demandada cível nos autos acima identificados, vem informar estar acordados em pôr termo aos mesmos pela forma seguinte:
1 – O arguido Juan Santiago Frisuelos declara reconhecer que não existe qualquer fundamento para imputar ao assistente Rui Pereira ter «conhecidas simpatias pelos sectores radicais bascos», ou de «em meios jornalísticos portugueses», ou em quaisquer outros ser conhecido por quaisquer «claras simpatias pela organização terrorista ETA», sendo infundadas estas afirmações na notícia divulgada;
2 - Não teve a intenção de, com a divulgação daquela notícia, pôr em causa os valores pessoais ou profissionais do assistente Rui Pereira, nem com a referida notícia lançar qualquer suspeição sobre o tratamento que, na sua obra jornalística e ensaística, faz do conflito basco.
3 - Consequentemente é infundado tudo quanto em sentido contrário se possa depreender do teor daquela notícia.
4 - Perante as explicações e desculpas apresentadas pelo arguido o assistente desiste da queixa que apresentou
.”

Um 1º de Maio numa época embrutecida

Para leitura de quem passou pelos primeiros de maio da nossa praça.

«Nos locais em que circula o dinheiro é preciso promover fluxos de cultura crítica; quando reinam os capitais flutuantes deve levar-se o saber ao poder e desgastar à força de lucidez, de crueldade conceptual e de um violento esclarecimento intelectual. O gramscismo libertário supõe que se ponha na conta do arsenal guerreiro a estética generalizada, para quem a luta contra a cultura liberal consitui uma prioridade, um combate táctico numa grande estratégia de perpétua oposição. O saber crítico oferece um meio para escolher de que lado da barricada se está. Mesmo que a probabilidade de uma vitória geral seja nula e impensável, pelo menos, no terreno da revolta, da rebelião, da oposição, da insubmissão ou de uma resistência que produz estilo e verticalidade numa época embrutecida, a estética generalizada actua como um meio para produzir forças a opor às violências que nos governam»

Michel Onfray, A Política do Rebelde - Tratado de Resistência e de Insubmissão, Ed. Piaget, pag. 224.