quinta-feira, março 03, 2016

Livraria Culsete, Setúbal. 11 de março às 21:30. José Manuel Pureza e Álvaro Arranja. Desobedecer à UE


Intervenção A Engrenagem do Terror – De Bagdade a Paris. Porto e Coimbra



Num livro de Sophie Wahnich que passou relativamente despercebido »A Defesa do Terror. Liberdade ou Morte na Revolução Francesa», Zizek dá-nos uma visão muito peculiar do Terror no seu prefácio, atualizado recentemente. O Terror, sabêmo-lo sem grandes dúvidas políticas ou existenciais que este foi sempre uma prerrogativa dos Estados modernos. A Revolução Francesa surge assim como uma espécie de argumento inicial onde se vai captar a essência do Terror nas democracias contemporâneas. Os historiadores neoliberais preferem, segundo o mesmo Zizek, um 1789 sem 1793, o período jacobino mais radical liderado por Robespierre. 1789 seria então o início da liberdade iluminista, da fraternidade e da igualdade natural entre os homens. 1793, o período a que se chamou de Terror, seria assim uma espécie de excrescência onde foi guilhotinado um rei que, segundo um discurso histórico de Robespierre na assembleia nacional, não o foi por ter cometido qualquer crime, mas sim pelo facto de ser rei, sendo isto um insulto para toda uma nação revolucionária. Não será por acaso que estes mesmos historiadores neoliberais afirmam que o período iniciado em 1789 acabou precisamente em 1989 com a queda do muro de Berlim e o fim das ditaduras das democracias populares de Leste. O fim da História, portanto, e o início do idílio liberal, diga-se, da lógica do mercado e do capitalismo, vencedor em toda a linha e em todos os recantos do mundo chamando a isso «globalização». Fazem por esquecer as bases construídas do primeiro Estado Social do mundo: 1793, o denominado Terror, «defensivo» na taxonomia de Zizek, fez surgir o apoio à velhice, à viuvez, à doença, ao desemprego, à fome instituída por anos de terror feudal, às obrigações humilhantes de um povo em ebulição contra os antigos senhores. Pela pressão revolucionária das mulheres francesas (que, aliás, nunca tiveram direito ao voto) instituiu-se o ensino básico obrigatório, a Lei dos Máximos onde se fixava o preço de produtos essenciais, o sistema decimal que regulava também, proporcionalmente, os impostos e evitava a corrupção. O orgulho sans culotte, dos montanheses e da Conspiração dos Iguais de Babeuf e de Anarchisis Cloots instituiram o Terror? Claro que sim, mas em contraponto ao Terror do Estado. Serve este preâmbulo, para continuarmos com Zizek e a definição que ele faz de Terror «ofensivo», o de Estado: o século XX é pródigo em exemplos com a carnificina imperialista da I Guerra Mundial, a crise criminosa e especulativa de 1929, o aparecimento e legitimação do fascismo clássico, a demência nacionalista (o «Terror Poético», expressão de Zizek) e racista, os milhões excluídos pelo capitalismo e as prisões em massa do estalinismo, a II Guerra Mundial com os seus 60 milhões de mortos. Fiquemos por aqui. Zizek apresenta-nos agora a matriz da ofensiva do Terror de Estado: para este filósofo, este só existe depois de uma legitimação constitucional. À Constituição de 1935 da URSS, Estaline inicia os processos de 1936/37; 1933, marca a constituição nazi e as Leis de Nuremberga até 1935, e não será preciso ir mais longe para perceber que a Constituição de 1933 no salazarismo levou às prisões em massa dos seus opositores e na criação de campos de concentração do Tarrafal e de S. Nicolau; toda a repressão será então baseada na legitimação constitucional e num conceito terrível ligado intimamente ao Terror: a «normalização». A CIA normalizou o Chile, em 1973 ironicamente a 11 de setembro, a Argentina, a Bolívia, o Uruguai e o Brasil, pela inanidade da Operação Condor. Foi assim também no Congo, no Uganda, no Ruanda, na Bósnia e na Sérvia. A normalização atual exige a política neoliberal única, a etnia única, a economia de mercado única, a precariedade do trabalho e a sua desvalorização contínua, a luta sem limites contra os pobres, os excluídos, os refugiados. A globalização fará o resto e já não se trata de uma globalização de mercados. É, agora, uma globalização militar que institui uma Estado-Guerra de guerra permanente a que Bush deu o nome justificadíssimo de «Justiça Infinita» aquando do acontecimento niilista do 11 de setembro. O Estado-Guerra é agora um estado de Terror alicerçado num fascismo pós-moderno, segundo o filósofo catalão Santiago López-Petit, que só ainda não é o fascismo clássico porque este se torna incómodo para os seus objetivos atuais. Não se trata de criar um movimento popular fascista, unipartidário, de rua, de turbas violentas. Trata-se isso sim de um fascismo de base eleitoral, vingativo perante o Islão, de procurar inimigos nas ruas, nos bairros, nos pedidos de delação popular, de criação de milícias afastando as possibilidades multiculturais e procurando o etnicamente puro ou comportamentalmente aceitável. A religião surgiria assim como o alfa e o ómega do fascismo pós-moderno do Estado. Será então impossível afastar o capitalismo deste objetivo. Quanto mais nos aparece militarizado, mais frágil se torna e isso poderá ser perigosamente letal. A identificação do inimigo é tão perigosa como a identificação do amigo. Este último deverá ser branco, cristão (se possível, fundamentalista), empregado e principalmente disposto a extirpar os inimigos do seu bairro, da sua cidade, até da sua família. Deverá ser igualmente obediente e evitar colocar questões que possam diminuir a moral que se quer alta, como em estado de guerra permanente. Identificar os inimigos é tão penoso como a identificação dos amigos. Não se sabe quem são porque o Estado não sabe combater o anonimato, nem as metásteses das organizações do terror que se multiplicam indefinidamente. Só o Islão lhe dá essa identidade, mas entre o Estado Islâmico (atentem na designação «Estado») cujo terror assenta igualmente na legitimidade constitucional do Corão, a sharia, a sua própria normalização para instituir um estado de crueldade absoluta e totalitária, e entre os «moderados», os sunitas, os xiitas, os sauditas, vê-se um Ocidente que às cegas tudo ataca promovendo acordos dúbios, apoios a ditadores, expirando hipocritamente de alívio perante o fracasso da «primavera árabe». Mas este aparente desatino, serve às mil maravilhas os objetivos do Estado-Guerra o tal da «Justiça Infinita» de que falava Bush. O anonimato niilista dos jovens que se imolam e matam nas cidades europeias vêm mostrar igualmente um vazio de vida que é difícil suportar e que só pela morte se redime. São as condições ideais para a consolidação do fascismo pós-moderno de base eleitoral e da guerra permanente contra tudo e todos. Voltando a Zizek e ao seu prefácio no «Pela Defesa do Terror», este cita Saramago quando em 2008, salvo erro, defendeu levar ao tribunal de Haia os responsáveis pelas guerras do Golfo. Segundo o filósofo, àparte qualquer «exagero poético» de Saramago, esta proposta será de levar muito a sério enquanto é tempo e para o futuro. Ou será por mero acaso que Bush ainda não saiu dos EUA, depois dos mandados de captura internacionais de Garzón a muitos dos seus adjuntos militares?
Guy Debord, esse, nos seus «Comentários à Sociedade do Espetáculo» de 1988, prefere utilizar o termo para este mesmo fascismo pós-moderno de Petit, a designação de «sociedade espetacular integrada» com o seu cortejo de apropriação capitalista não só das mercadorias e das matérias-primas, mas de toda a humanidade ela própria e do indivíduo encarado como tal o que é a negação dos princípios iluministas que há muito deveriam ser superados, até por uma esquerda estranhamente apática perante o niilismo. Cita Debord, Tucídides, na sua «Guerra do Peloponeso» quando se operou uma tentaiva de golpe de estado oligárquica, aliás vitoriosa: «nenhuma oposição se manifestava entre o resto dos cidadãos, que temiam o número de conjurados. Logo que algum ensaiava, apesar de tudo, contradizê-los, encontrava-se em seguida um meio cómodo de eliminá-lo. Os assassinos não eram procurados e nenhuma perseguição era iniciada contra aqueles de quem se suspeitava. O povo não reagia e as gentes estavam de tal forma aterrorizadas que se consideravam felizes, ainda que calado, por escapar às violências. (...) A cidade era demasiado grande e eles não se conheciam o suficiente entre si para que lhes fosse possível descobrir o que cada um era verdadeiramente. Nestas condições, por indignado que se estivesse, não se podia confiar estas queixas a ninguém.»
Este livro (A Engrenagem do Terror – De Bagdade a Paris) que o Le Monde Diplomatique organizou e que a Deriva teve o orgulho de editar, assim como os outros antes deste, servirá certamente para não termos medo. Medo de terrorismo de Estado, criando uma guerra ao Estado-Guerra, lutando contra os fascismos embrionários, mas, sobretudo, não ter medo. A esquerda não deve ter medo de falar, e ao fazê-lo, realizem-no sem tabús ideológicos e políticos contribuindo para criar uma emancipação efetiva dentro da liberdade, de uma vida que valha a pena ser vivida. Contrapor ao Terror a vida vivida na solidariedade e na emancipação. Creio que o valor da «Engrenagem do Terror» é ajudar-nos a munir dessas armas na verdade das coisas. O de declarar guerra à guerra.

António Luís Catarino