terça-feira, dezembro 28, 2010

GUIAS SONORAS e outras abrasivas, João Pedro Mésseder

No princípio, era o verbo; no final, o verme.

*
Apesar de pouco dotados, certos homens guardam um grão de lucidez, a que basta para intuírem a inteligência de outros. Sentem-na, porém, como um insulto à sua própria cegueira. Dedicam-se então a cultivar um ódio surdo. Por vezes tornam-se ferozes.

*
Era a Terra. Certo dia, enamorado da sua redonda placidez azul, o Sol aproximou-se dela, afastando-se das outras estrelas. Assim foram gerados os filhos de ambos, que adoptaram o nome de homens. Hoje, matam aos poucos a mãe com a involuntária conivência paterna.

 
 
A poesia como atrito e a leitura como fricção

"Nova versão, com alterações, de Abrasivas, volume editado, também na Deriva, em 2005, Guias Sonoras, como o subtítulo permite perceber, retoma um número significativo de textos da primeira edição, mantendo a identidade da publicação e a sua inscrição no âmbito das formas muito breves, como o aforismo, a sentença, o haiku, a greguería, o texto proverbial e o micro-conto. " do posfácio de Ana Margarida Ramos

segunda-feira, dezembro 27, 2010

DIÁRIO À NOITE SUPOSTA , Filipa Leal



DIÁRIO À NOITE SUPOSTA



(Primeiro dia)

Lembro- me bem: este poema começava a falar de uma estrela.
Era uma estrela no início da imagem. Uma estrela a fugir-me da possibilidade
do verso, a fugir- me do íntimo conforto em que a tinha. Estrela a ferir-se nas mãos,
a ferir-me nos olhos, estrela.

(Primeiro dia)

Disseste: Vou escrever um livro para te esquecer.
Para te encerrar como um assunto.
Para te matar.

Lembro-me bem: disseste exactamente o contrário
mas hoje custa- me acreditar nisso.

Disseste que nele contarias o nosso amor
porque a literatura tem esta presunção de eternidade
e depois deixaste-me e eujá não me lembro bem por quê.

(Primeiro dia)

Eu não tinha estrutura, não tinha claridade.
Eu não tinha holofotes que chegassem, braços que chegassem.

Eu não tinha luz.

Uma estrela,já se sabe, precisa de luz. Alimenta-se da sua circunferência,
do seu tom periférico. Uma estrela precisa de iluminar.
Foi isso. Foi a minha noite. Foi a minha falta de jeito.

(Primeiro dia)

Disseste: Vou escrever um livro para continuar.
Para continuar sem ti.
Foi isso que disseste?

(Primeiro dia)

O que eu queria mesmo era escrever para me salvar.
Para não ter medo.
Para te perder melhor.


Filipa Leal, O Problema de Ser Norte

domingo, dezembro 26, 2010

Duas Bailias de Catarina Nunes de Almeida

O único maremoto de que há memória

aconteceu nos teus cabelos que hoje são lisos
e deixam a água pelos tornozelos
até ser de manhã.

Agora até a terra passou.
Cruzam-se valsas e expedições na curva do seio
a música não cabe na boca das aves

e nós, meninas, bailaremos i.


***

Meu amigo perdoa-me
se espantei as gazelas
para um canto do sótão
se me cresceram músculos
neste olhar-te neste cuidar que dá cuidado.

Mas do alto dos seios
no ruir das lamparinas
vale a pena olhar-te. Daqui
da mais sincera pobreza
onde permaneces apenas tu
adão e erva
e o céu manchado pelas libelinhas.

Catarina Nunes de Almeida, in Bailias

sábado, dezembro 25, 2010

MALMEQUERES, José Ricardo Nunes

MALMEQUERES


Vou omitir alguns factos da minha vida. A minha vida, aliás, não oferece o mínimo interesse. Caberia numa linha, se assim fosse imprescindível. O seu relato será sempre um exercício de redundância.

Vivia no Redondo ou no Alvito, numa dessas vilas brancas do Alentejo onde se amontoa o torpor e a inutilidade dos velhos. Desses tempos conservo na memória a cal e a imensidão do seu reflexo, como se atrás de nós nunca se devesse deixar nada, como se cada passo acarretasse a extinção forçosa de qualquer coisa. Morrera primeiro o meu pai. A doença levaria a minha mãe na Primavera seguinte. Cuidei dela até ao último dia, desafiando com frieza o seu olhar conturbado para me conseguir conter. A morte, o desaparecimento, talvez seja isso o que mais nos perturba quando, após caminharmos por um longo prado, nos detemos na orla de um bosque impenetrável. Abandonara o meu emprego em Lisboa e regressara ao Alentejo para tomar conta dos meus pais e ajudar na loja. Tratava-se de um estabelecimento comercial antiquado, pouco atraente, e a forte concorrência das grandes superfícies, primeiro, e depois dos chineses, retirou-lhe qualquer hipótese de sobrevivência. Não tinha mais família. Não tinha expectativas. Vendi a loja e a casa, paguei as dívidas e apanhei o avião para a América.

Creio que consegui ser conciso até agora. Mas estou consciente de que a síntese pode apenas ser uma desculpa, um mero expediente, pouco hábil, aliás, para evitar a repetição. Às vezes sinto que gostaria de ter outra vida para contar, uma existência com maior densidade factual, digamos, mas contrario esse sentimento ao constatar que, qualquer que fosse essa minha vida alternativa, seria idêntica a história de que disporia para contar. Isto conforta-me, não acaba com a tristeza e não desfaz as dúvidas, mas pacifica-me, contém-me, evita que dê largas a uma imaginação febril que tem tanto de inconsequente quanto de auto-destrutivo. Bem necessitei dela e bom uso lhe dei no momento de escolher um ramo de negócio para me estabelecer, aplicando o dinheiro que trouxera de Portugal. As metáforas não enganam, são até demasiadamente precisas. Na verdade descemos, procuramos as raízes e depois a terra, mas a vida leva-nos de subida pelas árvores, optando pelo ramo que nos parece mais seguro ou que nos deixa mais próximos de um ninho, de um favo de mel, de um fruto. A loja de tintas foi um êxito e o serviço de entregas que organizei, de tão eficiente, viria a ser copiado por todos os comerciantes da região. Casei, tive filhos, comprei um apartamento que mais tarde, quando me tornei um empresário abastado, troquei por uma vivenda nos subúrbios, onde a violência urbana e racial demorou a chegar. Comprei uma casa de madeira na margem de um rio, com um longo ancoradouro onde me sentava a pescar ou simplesmente a olhar para as estrelas, nas noites cálidas do Verão, enquanto ouvia as crianças a brincar e pensava que tudo poderia ter sido tão diferente.

A Portugal nunca voltei. Não mantive contactos com ninguém. Só a duas ou três pessoas confidenciei que vinha para a América, mas nunca escrevi a dar o meu endereço. Não tenho saudades. Na cidade onde vivo não há mais portugueses. Durante muito tempo considerei que se tratava de um factor vantajoso.

A Lúcia morreu há dois anos. Cuidaram bem dela no Lar. Apenas desligaram as máquinas quando se tornou de todo impossível iludir os funcionários da seguradora que vinham todos os meses averiguar a evolução do seu estado de saúde. Sabia que nada havia a fazer, que a recuperação estava fora de causa, mas quando estava junto dela, quando lhe tomava a mão era como se de novo a conhecesse e tivéssemos ainda todo o futuro pela frente.

Os meus filhos quiseram que fosse viver com eles, não estaria sozinho e ajudaria a criar os netos. Todavia, prefiro ficar por aqui. Há ainda coisas que esperam por mim. Saíram de casa muito cedo, os meus filhos, como é de costume na América. Telefonam de vez em quando e vêm pelo Natal, a meu pedido. Peço-lhes também que façam de conta que não existo, pois não pretendo incomodar ninguém com a sobrecarga da minha velhice. Gostava que tivessem uma vida plena. Para me entreter ajudo nas obras sociais da paróquia. É uma forma de me lembrar da Lúcia, de a prolongar em mim um pouco mais. Às vezes digo ao padre que acredito em Deus sem convicção. Ele pensa que gracejo e fico livre de explicações e de conversas difíceis.

Não é possível ficar indiferente a certas imagens. Tenho muito de bom na memória e guardo ainda muito mais na imaginação. Creio, contudo, que já falei de mim mais do que suficiente. Nos dias em que o desalento me desestabiliza dou longos passeios pelos prados das redondezas. Pergunto-me se fui digno da existência que tive, mas trata-se de uma questão retórica, à qual sei de antemão que vou responder positivamente. Porém, quando me pergunto se fui feliz não sou capaz de formular uma resposta convincente. Regresso então a casa, cansado, para me ocupar com qualquer coisa que me livre desse tormento. Nas ocasiões de maior pânico grito. Esbracejo e grito. Mas apenas consigo acalmar depois de arrancar, uma a uma, as pétalas de vários malmequeres.

 José Ricardo Nunes, in Alfabeto Adiado

quarta-feira, dezembro 22, 2010

Nº 50 do Le Monde Diplomatique. Um artigo de Bruno Monteiro


Neste número 50 do Le Monde Diplomatique, Bruno Monteiro, um dos responsáveis, junto com Tiago Santos, pela edição de A Peste Bubónica no Porto, de Ricardo Jorge, publica «O sistema nervoso: efeitos da precarização no operariado do Vale do Sousa» sobre os efeitos devastadores do desemprego, reduções salariais e pressões de toda a espécie sobre os trabalhadores desta região.
Deve ler-se sem demora...embora duvide que, quem o faça, tenha um natal sossegado.

Fim da Casa das Ciências do Homem

Durante os anos 80, as pessoas que partilharam a Centelha e, mais tarde, a Fora do Texto, em Coimbra, sabem da importância da Maison des Sciences de L’Homme. Muitas cartas foram endereçadas dali para o Boulevard Raspail, sempre com respostas solícitas. Muitas delas acabaram em publicações. No dia 18 de Dezembro, folheando distraidamente o Le Monde, dei com uma notícia que prefigurava a morte desta casa, após 46 anos de actividade ininterrupta a que amigos actuais do poder político chamaram de «repaire de gauchistes». Nada que nos admire nos tempos que correm. Mas a História e as Ciências Sociais não saem bem disto. Mais: num tempo estranho em que se coloca em causa os direitos adquiridos ao longo de séculos é simultâneo o processo franco-alemão de controlo da História, acompanhado de uma grande desconfiança dos historiadores destes países sobre os verdadeiros objectivos que norteiam a abertura das novas Casa da História de França e do Museu de História Alemã. Também nestas novas instituições a avidez dos processos de controlo não têm que ver só com os mercados. A ideologia é também parte integrante da recuperação neoliberal.

terça-feira, dezembro 21, 2010

CASAS in Estranhas Criaturas, de Henrique Manuel Bento Fialho

CASAS


Falemos de casas com janelas viradas para dentro. Falemos de casas sem lados, casas redondas, casas vazias. Falemos de casas que são ruas e ruas que são casas. Falemos desse mendigo aconchegado à geada, da puta que pernoita atrás de um balcão de crimes potenciais. Falemos das novas estrelas de David com que te marcaram a liberdade. As casas dos poetas sem terra, sem lugar, dos lugares sem sítio, dos poetas sitiados.

Falemos dessas casas enfim expostas, imprimidas numa folha de papel, numa árvore abatida, na demanda do pulmão resfolegante. Passeiam pelas casas e descobrem-lhes o nome, saltam à corda sobre a alcatifa dos jardins, medeiam os abrigos com poses recolhidas.

São tão pobres as casas, tão sem beirais onde fazer o ninho.
 in Estranhas Criaturas, de Henrique Manuel Bento Fialho

domingo, dezembro 19, 2010

Seminário Aberto| Pedro Eiras

Amanhã, pelas 10.30, Pedro Eiras irá realizar um seminário, no âmbito das linhas de investigação do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa,  sob o estimulante título "Poros, ciclopes, questão de escala: Luiza Neto Jorge e Pipilotti Rist"

 

As colecções Pulsar e Cassiopeia, resultantes de uma parceria com o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, da Faculdade de Letras do Porto, dão a conhecer estudos muito relevantes no âmbito da Teoria da Literatura.


Na Pulsar, foram já editados Jean‑Pierre Sarrazac (com A Invenção da Teatralidade seguido de Brecht em Processo e O Jogo dos Possíveis), Pascal Quignard (com Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos) e Antoine Companos (Para Que serve a Literatura?)

Na Cassiopeia, que já acolheu um inédito de Pedro Eiras, intitulado Tentações: Ensaio sobre Sade e Raul Brandão, teremos brevemente um ensaio sobre Kafka: Kafka, um Livro sempre Aberto, de Teresa Martins de Oliveira e Gonçalo Vilas-Boas.



sábado, dezembro 18, 2010

Chega de Fado, Paulo Kellerman



Chega de Fado, o quarto livro de contos de Paulo Kellerman editado pela Deriva, representa a consolidação do percurso discreto mas sólido, e em diversos aspectos ímpar, que este escritor tem vindo a desenvolver. Explorando ao máximo as potencialidade na narrativa breve e marcado por uma construção original. Chega de Fado é um livro habitado por vinte personagens que, unidas em duplas, compõem dez “capítulos” que o formam; em cada um destes “capítulos” (verdadeiros esquissos de potenciais romances), as estórias vão-se sucedendo sob diversas formas narrativas (contos, micro-narrativas, diálogos dramáticos) e evoluindo ou desenvoluindo até à inevitável, e por vezes inconsequente, confrontação total.

Desta multiplicidade de estórias, formatos e vozes nasce uma radiografia desapaixonada e incisiva do quotidiano, um retrato cru dos gestos e dos silêncios, das banalidades e das frustrações, das esperanças e dos secretismos que atravessam as relações e caracterizam a precariedade e imprevisibilidade dos comportamentos e sentimentos de todos nós. Numa escrita elegante e sensível, Paulo Kellerman compõe ambientes urbanos e impessoais perpassados pela omnipresença da incomunicação e da melancolia, ambientes sombrios povoados por seres ávidos de intimidade e compreensão mas incapazes de alcançar uma qualquer forma de felicidade, mesmo que transitória. Ambientes saturados de pessimismo e desânimo, de apatia e solidão, de impotência, de desconforto existencial; até que alguém se insurge e grita chega de repetição e passividade monotonia, chega de lamúria; chega de fado.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

segunda-feira, dezembro 13, 2010

Bailias, de Catarina Nunes de Almeida, 4.ªf no Câmara Clara

Depois da concorrida apresentação de Bailias,  na Casa da Comédia, na próxima 4.ªfeira, Bailias, no Câmara Clara.

Wikileaks, o Império, a seita e o liberalismo | Debate, Gato Vadio,

Wikileaks, o Império, a seita e o liberalismo


Debate
Rui Pereira (jornalista e professor universitário)
Manuel António Pina (Escritor e cronista)
HacklaViva (Grupo activista)


"Ao fim ao cabo, o que o evento Wikileaks revela não é a monstruosidade da lógica das milícias económicas e militares que controlam os Estados – essa monstruosidade já lá estava e todos a conheciam. A novidade é que deixamos – um nadinha mais… – de ter razões para fingir que ignorávamos essa monstruosidade. A novidade é que perdemos um pouco mais a nossa legitimidade liberal de assobiar para o lado enquanto uma elite destrói o mundo e a vida humana. Mais do que tirar as sobejamente visíveis máscaras das oligarquias do poder, máscaras cadavéricas e decrépitas, é incomensuravelmente mais decisivo para construir outra ideia de sociedade, que se retire os argumentos àqueles que ainda encobrem a realidade que fingem ignorar.

Provam-no também o facto de que nenhum governante ou secretário do poder visado pelas revelações tenha negado (tenha sequer sentido a necessidade de negar), as suas práticas acima da lei, a sua lógica destrutiva e criminosa (exige a precisão que se mencione a excepção, muitas revelações e implicados depois, do presidente de Moçambique que negou as sua implicações com o narcotráfico reveladas pelos ficheiros da Wikileaks divulgados pela Imprensa). O que preocupa o poder não é o mal, mas a transparência do mal. O que o preocupa é que se desvenda o segredo como alicerce do seu despotismo e da sua hegemonia; o que o preocupa é que se esboroe a sua política de marketing e de controlo do imaginário. Aquilo que o preocupa é que se quebre a magia da sua seita." Júlio do Carmo Gomes

 

Quinta-feira, dia 16 de Dezembro, 22h
Entrada Livre
Gato Vadio
Rua do Rosário 281

domingo, dezembro 12, 2010

Um punhado de Terra, monólogo de Pedro Eiras


[...] Corri com meu filho mais pequeno nos braços

eu corria depressa
criador!
Olhei a praia
cheia de sangue ondas do mar misturadas com sangue
espuma das ondas com feridas de sangue
E homens secos levavam para batéis os nossos homens
Riam alto
Não socorriam homens mulheres velhos
morriam devagar na areia
sob o sol forte
e passavam por eles lhes batiam com pés nas bocas
Portugal!
São Jorge!
Santiago!
Corri com meu filho
coração queimado
encontrei minha mulher junto a nossas casas
homens secos tinham-nos perseguido
agarravam homens adultos
Se não encontravam homens adultos
agarravam mulheres
crianças
todos levavam a grande barco na praia
Uns se defendiam com coragem Eram mortos
unhas e dentes para se defenderem
mortos com espadas de ferro
Não tinham com que se defender nunca tinham feito mal a ninguém
Vi com meus olhos homens secos cortarem cabeça de rapaz
pegaram na cabeça do rapaz que tinha lutado
riam alto urravam dizeres em sua língua
atirando cabeça para o chão
e atirando cabeça do rapaz
com os pés
Mesmo que tivéssemos azagaias guardadas
não havia tempo de ir buscar
Homens secos agarravam quem queriam
Mulher defendeu-se tão feramente
não lhe conseguiam tocar
Mas encontraram filho pequeno levaram-no
mãe viu lhe levavam filho pequeno
baixou braços e cabeça
seguiu calada com homens secos ao grande barco de madeira
Encontrei minha mulher Minha mulher disse
foge
escondi nossos filhos sob os limos
corre depressa como leão
foge para a montanha
quando homens maus se forem
volta e encontra nossos filhos escondidos
Eu tinha nosso filho mais pequeno nas mãos Eu disse
foge comigo
mas ela empurrava-me gritava
foge
foge
Vi ela tinha perna desfeita em massa de sangue
Lembrei-me quando
minha mulher nadava entre flores das águas que passam
seus cabelos fogo sob o sol
Mulher tão negra
dançava e vinha a mim como rainha
Tinha perna desfeita em sangue
perna partida desfeita em sangue
Lembrava seus ombros montanhas negras de luz
ancas cobertas só de vento
Levei meu filho mais pequeno nos braços
corri às montanhas
havia outros homens outras mulheres Corriam
grande queimadura nos corações
Lembrava minha mulher
meus filhos escondidos sob os limos
Mas
os homens secos chegaram a nós
Ó criador
tu vês tudo!
Quis defender meu filho
agarrei
gritei
três homens me agarraram outro agarrou meu filho
levantou meu filho no ar
atirou meu filho contra rocha
meu filho flor de sangue
Mordi homens
outros bateram-me
caí no chão [...]

Pedro Eiras, Um Punhado de Terra

sexta-feira, dezembro 10, 2010

Ah, a Literatura!


"Ah, a Literatura!" é o novo programa de livros do Canal Q. Organizado numa lógica de clube de leitura, o programa destacará semanalmente um livro, lido e analisado por ambos os anfitriões, que procurarão acompanhar as novidades editoriais. Todos os episódios contarão com a presença de um convidado ligado ao mundo editorial e com uma série de rubricas rotativas. "Ah, a Literatura!" tem blogue e o traço inconfundível do Irmão Lúcia (a.k.a. Pedro Vieira).

quarta-feira, dezembro 08, 2010

Livros que cabem num bolso...

 Nenhum Lugar, de Ricardo Romero e Magic Resort, de Florencia Abbate já chegaram.
Para sua comunidade peça-os aqui.

Excerto de  Nenhum Lugar, de Ricardo Romero
«Acordou ao ouvir o silêncio. Entreabriu os olhos, depois abriu-os completamente, mas a claridade continuava sem aparecer. Primeiro avistou as casas, e só ao vê-las soube que tinham parado. As casas estavam aí, feitas de uma quietude negra, do outro lado da rua, demasiado próximas. A ausência do barulho do motor provocava-lhe uma certa angústia, mais ainda que a que lhe podia provocar a ausência do taxista. Por instinto procurou a mochila. Estava aí, continuava pousava perto dos seus pés. Abriu-a e comprovou que não lhe faltava nada. Voltou a olhar para as casas e sentiu-se intimidado. Não se atrevia a sair do táxi. Ainda era de noite e isso não lhe agradava, não lhe podia agradar. Por alguma razão, a noite era ainda mais escura agora, embora a Mauricio não lhe parecesse que houvesse menos estrelas. Mas podia sequer ter a certeza de que era a mesma noite? Procurou a la e não a encontrou. Quis saber que horas eram, mas não conseguiu ver nada no seu relógio de pulso. Em toda a rua só um candeeiro estava aceso, a mais de dois quarteirões de distância.»
 Excerto de  Magic Resort, de Florencia Abbate


«Uma enfermeira jovem contou-me que tinha estado em coma. Olhou-me, boquiaberta, quando lhe disse que me sentia incrivelmente bem, sem nenhuma ressaca, forte, como nunca…
Os médicos não me deram nenhuma esperança. E os meus pais por pouco não desmaiaram porque entraram e me viram a procurar a mochila. O meu pai conseguiu que me dessem alta ao meio-dia. A minha mãe lacrimejou de alegria ao constatar que conseguia descer as escadas do hospital sem ajuda. Eu estava morto de fome e propus um restaurante. Levaram-me a almoçar a esse lugar e fizeram-me as vontades o tempo todo. Até chegarmos a casa mantivemos conversas graciosas e calorosas. Depois, a alegria provocada pela bela surpresa da minha ressurreição foi relegada para segundo plano. O que mais lhes importava era averiguar o motivo da minha tentativa de suicídio.»

Utopias Piratas, de Peter Lamborn Wilson [trad. Miguel Mendonça]



«Desde cerca de finais de 1500 até ao século XVIII, muitos milhares de europeus – homens e mulheres – converteram-se ao Islão. Na sua grande parte viveram e trabalharam em Argel, Tunes, Tripoli, e na área de Rabat-Salé em Marrocos - os chamados Estados da Costa da Berberia. A maioria das mulheres tornava-se muçulmana ao casar com muçulmanos. Esta grande adesão é facilmente compreensível, ainda que seria fascinante se pudéssemos traçar as vidas de algumas delas em busca de uma Isabelle Eberhardt do século XVII. Mas e então os homens? O que os impelia, a eles, à conversão?
Os cristãos europeus tinham um termo especial para os designar: Renegados – ou seja, os apóstatas, os vira-casacas, os traidores. Havia uma certa razão em se pensar dessa forma, uma vez que a Europa cristã ainda estava em guerra com o islão. As cruzadas não tinham tido verdadeiramente um fim. O último reino mourisco em Espanha, Granada, não sucumbiu à Reconquista senão em 1492, e a última sublevação moura em Espanha teve lugar em 1610. O Império Otomano, vigoroso, brilhante, e armado até aos dentes (tal como a sua contemporânea Inglaterra isabelina/jacobina), orientou a sua ofensiva contra a Europa em duas frentes, por terra em direcção a Viena, e por mar em direcção ao Ocidente através do Mediterrâneo.
Nas línguas vernaculares europeias, ‘turco’ significava todo e qualquer muçulmano, incluindo os mouros do Norte de África. Dos renegados dizia-se que se tinham “tornado turcos” (do título de uma peça teatral, A christian turn’d turke de Robert Daborne, representada em Londres em 1612). O Turco Lascivo e o Soldado Cruel povoavam a literatura popular, e “muçulmano!” é ainda um insulto grave em Veneza. Se pensarmos na posição da imprensa americana durante a recente Guerra do Golfo, contra o Iraque, podemos compreender a ignorância e o preconceito europeus da época. A atitude da Europa face ao islão, desde o século XIX, tem vindo a complexificar-se cada vez mais, porque de facto a Europa do século XIX conquistou e colonizou uma boa parte do Dar al-Islam. Mas no século XVII não existia esse ponto de interpenetração de culturas, mesmo sendo de sentido único. Essencialmente, a Europa odiava e não compreendia o islão. E quanto a este, a palavra jihad, guerra santa, resume bem a sua atitude face ao cristianismo. A tolerância e a compreensão eram praticamente inexistentes em ambas as margens do fosso cultural.
Aos olhos da maioria dos europeus, os renegados assemelhavam-se a criaturas impregnadas de um mistério demoníaco. Não só tinham estas “traído Nosso Senhor”, como se tinham mesmo juntado à jihad. Quase todos os renegados se tinham tornado “Corsários da Berberia”. Dedicavam-se ao ataque e ao saque de navios europeus e capturavam os seus tripulantes cristãos, que depois de transportados até à Berberia eram libertados sob o pagamento de um resgate, ou vendidos como escravos. Claro que os “corsários” cristãos, incluindo os Cavaleiros de Malta, faziam exactamente o mesmo aos navios e equipagens muçulmanas. Mas eram muito poucos os cativos mouros que se “tornavam cristãos”. O fluxo de renegados transitava largamente num só sentido.
Os europeus assumiam que os apóstatas eram escumalha humana, e acreditavam que os motivos da sua conversão eram os piores imagináveis: ganância, ressentimento, vingança. Mas muitos deles já eram “piratas” antes de se converterem – e esses é óbvio que só procuravam uma desculpa para a continuação da sua vida de pirata. Seguramente que a outros, que eram capturados, lhes era oferecida a escolha entre a conversão ou escravatura, e que numa atitude cobarde escolhiam a apostasia e o crime. Os renegados eram assassinados em público em todos os países europeus, e queimados vivos em Espanha (pelo menos em teoria), mesmo que desejassem a reconversão. Neste sentido, o islão era entendido mais como uma espécie de praga moral, do que propriamente como uma simples ideologia inimiga.
No seio do mundo islâmico a atitude relativa à conversão pode ser descrita como sendo mais aberta. Os espanhóis forçavam os judeus e os muçulmanos a converter-se, mas mesmo assim expulsavam-nos. O islamismo, no entanto, conservava ainda uma visão de si mesmo enquanto nova religião, procurando expandir-se por todos os meios possíveis e sobretudo através da conversão. Os “Novos Muçulmanos” são ainda hoje considerados abençoados e mesmo “afortunados”, especialmente nas fronteiras do islão. Esta divergência de atitudes face ao acto da conversão ajuda a entender a vantagem no índice de cristãos convertidos ao islamismo em relação ao sentido inverso – mas a questão do “porquê” continua por responder. Talvez devamos começar por assumir que nenhuma interpretação dos renegados, ‘turca’ ou cristã, nos pode satisfazer a curiosidade. Podemos duvidar, por um lado, que estes homens fossem simplesmente a figura do demónio, e, por outro, que fossem anjinhos da jihad. Vamos assumir que as nossas respostas – se alguma se provar possível – se apresentarão bem mais complexas do que qualquer destas teorias do século XVII.
Curiosamente, são poucos os historiadores modernos que têm realmente tentado compreender os renegados. Por entre os historiadores europeus pesa ainda o estigma da “teoria demoníaca”, ainda que tenha sido racionalizada e elaborada e até mesmo invertida em hipóteses que soam plausíveis. As considerações frequentes rondam as seguintes: Como é que foi possível à grande e poderosa Europa não ter conseguido erradicar os corsários da Berberia durante três séculos inteiros? É sabido que a tecnologia naval e militar do islão era inferior à europeia. Os árabes, como todos sabemos, são maus marinheiros. Como explicar então este aparente enigma? A resposta é óbvia – os renegados. Foram eles, como europeus, que introduziram a tecnologia europeia aos muçulmanos, e que também lutaram por eles. Parece portanto, que a pirataria berberesca não passou de “une affaire des étrangers”, e que sem os renegados jamais poderia ter existido. [Coindreau, 1948] Eram traidores da pior espécie – mas brilhantes à sua própria maneira, na sua rudeza. A pirataria é desprezível – mas, apesar de tudo, tão romântica!
Quanto aos historiadores islâmicos, é natural que se ressintam com qualquer sugestão de inferioridade islâmica. As histórias locais de Rabat-Salé do século XIX, princípios do século XX, por exemplo, indicam claramente que os mouros, os berberes e os árabes do país, contribuíram bem mais, a longo prazo, para a história da “guerra sagrada sobre o mar” do que alguns milhares de convertidos. E quanto a estes, os seus descendentes continuam a viver em Rabat-Salé – tornaram-se marroquinos, independentemente das suas origens. A história dos corsários não é “um affaire de estrangeiros” mas parte da história do Magrebe, o FarWest do islão, e da então emergente nação marroquina. [Hesperis, 1971]
Nenhuma destas “explicações” sobre os renegados nos aproxima das motivações que os teriam levado a abraçar o islão, e a adoptar a vida de piratas berberescos. Traidores brilhantes ou heróis assimilados – nenhum dos dois estereótipos possui qualquer profundidade real. Ambos contêm elementos de verdade. Os piratas introduziram algumas técnicas e novidades estratégicas na Berberia, como iremos ver. E participaram no mundo islâmico em formas mais complexas do que como simples criminosos a soldo – ou como experts – como também veremos. Mas ainda não temos indícios do porquê do fenómeno em todo o seu conjunto. Devemos ter em conta que, apesar de alguns dos renegados terem sido letrados em numerosas línguas, nenhum deles era realmente literati. Não temos registos em primeira-mão, nenhum texto escrito pelos próprios. As suas origens sociais não lhes proporcionaram o hábito por uma escrita auto-analítica; um luxo que era ainda monopólio da aristocracia e de uma classe média emergente. A pluma da História está nas mãos dos seus inimigos. Os renegados, eles próprios, mantêm-se em silêncio.
É possível que nunca cheguemos realmente a descobrir as suas motivações. E talvez não nos seja possível fazer muito mais do que sugerir uma série de impressões e especulações complexas, e mesmo contraditórias. Mas mesmo assim, ainda podemos fazer melhor do que os historiadores neocolonialistas europeus, ou do que os nacionalistas marroquinos que, uns e outros, não conseguem observar o renegado sem deixar de o relacionar com os seus próprios preconceitos ideológicos."  [continua] Utopias Piratas,  de Peter Lamborn Wilson [trad. Miguel Mendonça]

terça-feira, dezembro 07, 2010

APRESENTAÇÃO DE «BAILIAS» DE CATARINA NUNES DE ALMEIDA




APRESENTAÇÃO DE «BAILIAS» DE CATARINA NUNES DE ALMEIDA


11 DE DEZEMBRO, PELAS 21H30, NO TEATRO CASA DA COMÉDIA

APRESENTAÇÃO  | Rosa Alice Branco

LEITURAS | Marta Bernardes e Catarina Nunes de Almeida

MÚSICA | André Góis, Bruno Béu, Bruno Broa, Clem Ferreira, Jorge Trigo, Miguel Alves, Paulo Diogo,
Sara Sezifredo

ILUSTRAÇÕES | Sandra Filipe

FOTOGRAFIA | Hugo Joel

domingo, dezembro 05, 2010

Deriva com História

Relação das Medidas de Defesa do Vouga Contra o Exército de Soult, em 1809, de Alexandre Tomás de Morais Sarmento

Como me propusesse lançar por escrito o que aconteceu enquanto duraram as operações defensivas sobre o Vouga, darei agora fim ao meu pequeno trabalho, porque., ainda que os mesmos corpos entrassem nas operações ofensivas dos dias 10, 11 e 12 de Maio, e sendo a artilharia do Coronel Trant a primeira que rompeu fogo sobre os Franceses na manhã do dia 10 de Maio, estas tropas já obravam debaixo da ordem do Marechal General, cuja campanha é totalmente distinta. Induziu-me a este pequeno trabalho a curiosidade dalguns amigos, e o meu desejo de corresponder às suas patrióticas intenções me obrigou a aclarar alguns apontamentos que fiz a este respeito, aonde não entrou outra consideração mais do que a justa admiração por um acontecimento que tanto enobrecera a História Portuguesa do ano de 1809. Os povos da esquerda do Vouga, levados de uma gratidão pelos esforços que fez o Coronel Trant para salvar o país entre o Vouga e a Mondego, pretenderam colocar num monumento sobre a altura do Marnel, situada entre a ponte deste nome e a do Vouga.

 
Estudo Histórico sobre a Campanha do Marechal Soult em Portugal - Alfredo Pereira Taveira


"Este Estudo que agora se reedita é de uma grande utilidade porque contém uma descrição muito rigorosa da campanha do Marechal Soult, em 1809, no norte de Portugal.
O relato é feito por um oficial do Corpo de Estado-Maior, manifestamente competente, que analisa com precisão todos os episódios da Invasão. Não se circunscreve, todavia, aos diversos passos que ela seguiu; junta-lhes comentários muito ajustados e que ajudam à compreensão dos acontecimentos e das decisões tomadas. Ele não disfarça as dificuldades quer dos Franceses quer das tropas aliadas luso-britâncias. E não cai em manifestações “patrioteiras”. Fala, com lucidez, da falta de preparação das nossas tropas e da disciplina violenta e, por isso, muito contraproducente das populações" do prefácio de Luís Valente de Oliveira, Presidente da Comissão para a Evocação do Bicentenário das Invasões Francesas no Porto




DR. MABUSE, in Estranhas Criaturas de Henrique Manuel Bento Fialho

         DR. MABUSE

Nem os cães ladram assim, mercenários de bolsas antigas. Nem os cães por um osso descarnado. Um vírus transaccionado por cima da mesa, horários. Quem assim discute o tempo, a bolsa das horas, propaga a cruz de estarmos vivos. Quantas horas faltarão para que todas as horas estejam cumpridas?
Ninguém luta assim pelo que não tem, suicidas. Quem se ausenta, para no mesmo instante de se ausentar comparecer diante dos juízes, não sabe que a cada tiquetaque os ponteiros se escusam. Prisioneiros da fome, enchem de ar as barrigas.
Ao fim do dia caem fatigados nas passadeiras dos ginásios. Sem praia, sem horta, são o rosto calcinado de uma folha morta. Adormecem todos os dias para no dia seguinte discutirem os dias que hão-de vir. Não sabem, desconhecem, preferem não saber, que daqui a nada os relógios pararão para sempre.
Até lá, brinda-se à saúde de se estar doente.

Henrique Manuel Bento Fialho, Estranhas Criaturas
 
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sábado, dezembro 04, 2010

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sexta-feira, dezembro 03, 2010

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Temos livros para todos os leitores....
Para os mais novos - O Aquário (4.ª ed.); As Vozes do Alfabeto, O Conto da Travessa das Musas.
Para adolescentes recomendamos o Perigo Vegetal, de Rámon Caride e Miguel Anxo Prado.

Depois, temos coisas Aqui da Terra de Miguel Carvalho, Tentações do Pedro Eiras, A Peste Bubónica no Porto, de Ricardo Jorge, A Mobilização Global seguida de O Estado-Guerra, de Santiago López-Tetit; Estranhas Criaturas, de Henrique Manuel Bento Fialho;  Alfabeto Adiado, de José Ricardo Nunes, Chega de Fado, de Paulo Kellerman... entre muitos outros

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quarta-feira, dezembro 01, 2010

Apresentação de «Bailias» de Catarina Nunes de Almeida | 11 de Dezembro | Casa da Comédia

«Catarina Nunes de Almeida lembra e recria, neste seu terceiro livro, as medievais cantigas de amigo e de amor. Imaginário de música e cantos de segréis, trovas de poetas e memoráveis danças de donzelas de corpos finos. Nos ecos dessas seroadas segura a música do seu universo poético, que cerziu a mulher à natureza e dessa ligação fez nascer íntimos catálogos de pássaros, árvores e frutos, novos espaços de idioma, pelejas, sínteses e fábulas. Move-se, com passo seguro, do antigo para o novo e do novo para o antigo, com a graciosidade e o assombro das bailadas, entre ‘Folguedos e Noites de Pastoreio’, ‘Barcarolas ou Manhãs Frias’, ‘Mágoas ou Cantos de Alvoroço’ e ‘Cantigas de Romãzeira’. Volta, com Bailias, a colocar a poesia no seu primordial lugar de cântico.»

Nenhum Lugar, de Ricardo Romero [trad. Patrícia Louro]



Começa assim Nenhum Lugar, de Ricardo Romero [trad. Patrícia Louro]
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"Deitado no assento traseiro do táxi, sentido o suave tremor do carro nas costas, Mauricio olha o teto e escuta. Dormiu, dorme, está quase a dormir. Na rádio ouve-se, débil, com dificuldade, uma canção melancólica e ligeira.

“Roxanne, you don’t have to put on the red light
those days are over
you don’t have to sell your body to the night
Roxanne ...”

Onde estava? Ou devia perguntar-se, onde ia? A música dava-lhe voltas à cabeça, aprisionando-o num suave refúgio de sonolência e dilação. Doíam-lhe as costas e as pernas, mas não chegava a pensar nisso. No teto dançavam sombras, figuras evanescentes e sem sentido, de uma realidade ameaçadora e vazia. Pela janela, pelo contrário, via-se um troço de céu estrelado, simultaneamente escuro e resplandecente. Respirou fundo. Fechou os olhos, sentia-se confuso, e desejou não pensar nessas coisas. Em que coisas? Em que é que estava a pensar? Voltou a abrir os olhos, pestanejou duas ou três vezes. Demorou algum tempo a compreender que estava acordado e que nesse carro havia demasiadas coisas que ele não sabia identificar. Uma delas era a canção, mas certamente não era a mais importante. Como sabia que estava num táxi? E porque é que não devia sabê-lo? Além disso, porque lhe parecia tão urgente acordar de todo?

Na penumbra do táxi e da noite, Mauricio viu por fim a nuca do taxista, examinou o desenho negro e largo do seu dorso, perguntou-se porque dizia dorso e não costas, seguiu o recorte preciso e revolto da sua cabeça, e ao endireitar-se no banco avistou o balançar impercetível das suas mãos sobre o volante. Estava num táxi e sabia-o, isso já parecia ser alguma coisa. Olhou à sua volta através das janelas e viu a noite, e na noite, o deserto esbranquiçado na distância. Procurou a lua, e não a encontrando sentiu-se inibido. O carro avançava em linha reta e o taxista não parecia ter-se dado conta que o passageiro tinha acordado. Mauricio olhou a estrada à sua frente, o asfalto iluminado pelas luzes do carro, talvez também um pouco mais além, sobre o cinzento claro e apagado que se estendia, interminável, debaixo do fulgor pálido do céu noturno. As riscas brancas seguiam-se uma após outra debaixo do feixe de luz e desapareciam debaixo do táxi. Mauricio teria preferido não as ter visto, mas já parecia ser demasiado tarde. Disse para si que era possível não lhes prestar atenção, olhando então para a estrada sem a ver, apenas por hábito, escutando a rádio que cada vez se ouvia pior. O desconforto que lhe provocavam essas riscas não se desprendia delas, estava ali, sem origem, e não valia a pena tentar persegui-la. Para as deixar de lado pousou o olhar nos postes torcidos de arame dos dois lados da estrada, mas também eles tinham a sua própria sucessão de melancolias sem nome, que se desfaziam uma e outra vez em sombras fugazes e caladas.

Sem saber muito bem o que fazer, aproximou-se da janela e perscrutou a paisagem para lá da estrada. A noite era clara e ele podia ver uma grande extensão de arbustos baixos e pastagens ralas sacudidas pelo vento. Era uma paisagem plana, onde só se destacavam umas elevações escuras que pouco se diferenciavam do céu na linha do horizonte. Perto ou longe só crescia o vento, o resto parecia limitado a uma resignação vazia e imensa. Mauricio, ao observar tudo isto, sentiu a vã necessidade de dizer-se o seu nome em voz baixa, de o recordar.

“rrr...roxanne...rrrrrr...”

A estática da rádio, pouco a pouco, ia deixando atrás a música, que parecia perder-se na obscuridade da estrada que iam percorrendo. Com o olhar perdido na imensidão plana da paisagem Mauricio perguntou-se pela primeira, ou talvez pela segunda vez, para onde estavam a ir. Olhando através da janela, sentindo agora o cansaço das pernas de tanto estar sentado, acabou por perceber a sua confusão. Deviam levar bastante tempo a viajar. Isso era bom ou mau? Não sabia, e a única coisa que parecia preocupá-lo nesse momento era que a música não desaparecesse, que não o deixasse sozinho com o taxista e com a estática. Porque era isso tão importante para ele? E que havia de mau em que fosse tão importante?

Acomodou-se no banco para confrontar o taxista, mas ao fazê-lo tropeçou com uma mochila que estava a seus pés. Era uma mochila preta com o fecho estragado, e antes de a abrir Mauricio já sabia o que continha. Dois pares de meias, dois pares de boxers, duas t-shirts, uma camisa, um pulôver cinzento com decote redondo, uma escova de dentes recém-comprada, papel higiénico, um isqueiro vermelho, uma edição maltratada de Macbeth e uma lanterna. Abriu-a, revistou-a. Não se tinha enganado, e a sua exatidão incomodou-o. Para que queria uma lanterna? Guardou o isqueiro num bolso das calças porque esse é o lugar que pertence aos isqueiros. Tirou o livro, segurou-o entre as mãos, amarelado, certamente roubado, unido apenas por pedaços de fita-cola preta. Na obscuridade do táxi não era possível ler, mas de todas as formas ele sabia das mulheres feias e disformes que falavam de um bosque em movimento que era portador da morte. A morte, isso não era algo em que ele pensasse muitas vezes. Pela janela voltou a contemplar a noite, o deserto, e aceitou vagamente que o que se movia era ele, entre extensões de vento e areia. Devolveu o livro à mochila, dizendo-se que tudo era possível e não pensou mais nisso."

[continua....]