quinta-feira, maio 27, 2021

«Pensar a Utopia, Transformar a Realidade», de João Carlos Louçã

 

Pensar a Utopia, Transformar a Realidade, publicado pelas Edições Parsifal em maio de 2021, levam o seu autor, João Carlos Louçã ao assalto dos céus. Literalmente, se encararmos este belíssimo trabalho antropológico como um estudo aturado de enormes possibilidades de criar esperança para utopias concretas, nos Pirenéus e no Porto. Aliás do subtítulo consta o aviso de «Práticas concretas».

Trata-se de um trabalho de leitura entusiasmante, muito por estarmos a «ver» e a sentir as personagens que nos apresenta em depoimentos cuidados, portanto esclarecedores, ao longo do livro. João Carlos Louçã, não é daqueles antropólogos que fingem distância ou neutralidade o que se tornaria um trabalho sensaborão, sem sentido. Informa-nos ao que vem e agradecemos-lhe por isso. Ao colocar-se no campo anticapitalista e na consequente desumanização e predação que lhe é subjacente, coloca-nos também ao seu lado, criando uma verdadeira empatia com este livro e com as personagens que o povoam. Mas igualmente nos força, de bom grado, a conquistar utopias, mesmo através das algumas impossibilidades e derrotas, porque o «possível faz-se através da conquista dos impossíveis». Portanto, a velha questão, sempre um quebra-cabeças para a esquerda, de saber se há reforma ou revolução, se se pode construir a alternativa dentro do capitalismo ou assaltando o Estado para o transformar através de uma revolução tem todo o sentido aqui pelos exemplos concretos que João Carlos Louçã nos dá a conhecer. Mas cuidado com esta minha ficha de leitura: o autor, tendo o cuidado de se colocar no campo revolucionário, transformador e ao lado das «classes subalternas», não descuida um milímetro os métodos antropológicos de conhecimento como, aliás, é sublinhado por Paula Godinho (no prefácio) e por Raúl Román (no posfácio). Paula Godinho cita inclusive, de um modo certeiro, o poeta Eduardo Guerra Carneiro para o método utilizado por João Carlos, para nos afirmar «isto anda tudo ligado»; é que, quando aparentemente sentimos a narrativa a «fugir» para uma longínqua análise política, social ou económica, passados umas linhas encontramos todo o sentido dessa fuga, repito, aparente. São meadas, cujos fios se entrelaçam e deslaçam e cujo fim encontramos numa textura completa. Dito isto, ir sacar o passado, num exercício claro de retrotopia baumaniana (desculpem-me os puristas), para nos lembrar as revoluções de 1848, 1871, a guerra civil espanhola de 36/39 ou o Poder Popular do Prec português de 74/75 e com estas experiências dar corpo às alternativas activas da cidade do Porto ou as aldeias comunais do Alto Aragão, nos Pirenéus, não é para todos e só o faz quem tem sólida cultura política e científica de base. João Carlos Louçã fá-lo com toda a mestria e com grande fulgor. Adivinhamos o seu entusiasmo sentado numa mesa colectiva de uma comuna aldeã ou a conversar demoradamente com activistas da Rosa Imunda, dos Passeios do Piorio, na Gato Vadio debatendo a moeda solidária, com elementos do jornal Mapa, ou com as feministas radicais que só o Porto conhece, ou com pessoas LGBTI e muitos outros espaços alternativos do Porto. As experiências, nem sempre com sucesso, estão lá e são de ler e conhecer. Como o inesquecível processo da Escola da Fontinha e da luta que surgiu por toda a cidade, mesmo com o apoio de pessoas insuspeitas.

Mas, para mim, o mais interessante exercício de João Carlos neste «Pensar a Utopia, Transformar a Realidade» é, para além da retrotopia de que falei atrás e que conta com a dimensão utópica e científica que o marxismo foi apodado por gente preguiçosa (digo eu), também existe uma negação da dicotomia entre anarquismo e socialismo ou comunismo. É que esse exercício de reinventar o passado é tão importante como projectar o futuro e em plena década de 20 do século XXI terá sentido colocarmo-nos em barricadas de confronto, quando ambas as correntes têm razão de coexistir? Ou vamos continuar com o Grande Chefe Águia Negra contra o Grande Chefe Águia Vermelha, da I Internacional, a digladiarmo-nos uns aos outros? Rosa Luxemburgo ou Daniel Bansaïd não colocaram as coisas como devem ser colocadas e não estarão essas obras plenas de actualidade? Para além da retrotopia utilizada legitimamente pelo autor, também não se furta à ucronia que nós todos já tivemos oportunidade de o fazer: se bem que não haja «ses» na História, e é João Carlos que nos avisa disso mesmo no seu trabalho de campo, também não poderemos deixar de perguntar o que seria da História se Estaline não decapitasse a direção do POUM e da CNT/FAI durante a Guerra Civil de Espanha? E se a aviação nazi e fascista que bombardearam Guernica tivessem uma derrota arrasadora em Espanha, teria havido II Guerra Mundial com o seu cortejo de horror? E se a revolução alemã de 1918 não tivesse sido boicotada pelos sociais-democratas chegando ao assassínio de Rosa Luxemburgo e Karl Liebneckt e que se colocaram literalmente ao lado do viveiro nazi? Quem não fez já este exercício de ucronia? Valerá alguma coisa para as utopias concretas que estamos a construir por todo o mundo? Creio que é um exercício tão legítimo como a retropia e a projecção de utopias. São todas válidas.

Palavras do autor: 
«(...) Nessa capacidade de resistência, as causas perdidas encontram formas de subsistir através de outros em outros lugares, as ideias podem sobreviver às realidades opressoras e os seres humanos voltar a encontrá-las, mesmo se por breves momentos e mesmo se estes foram já caladas à baioneta. Apesar de presente, o desencantamento não faz esmorecer a esperança. Pelo contrário, alimenta-a na lucidez das alternativas que se procuram e na busca incessante de justiça (...).» (pág. 215). E mais à frente: «(...) Nos Pirenéus, o terreno explorado foi contraponto ao do Porto, ambos associados à esperança como capacidade para construir as condições do próprio futuro. O ambiente rural de montanha destacava-se perante a malha urbana da cidade do Norte de Portugal, onde a própria ideia de cidade se implica nos projetos e nas ações das pessoas que ali querem continuar a viver. Pelo contrário, nos Pirenéus a cidade foi quase sempre o local que se escolheu abandonar, sendo esta a opção inicial para procurar um futuro melhor(...)». (pág. 223).

Muito mais teria de dizer - e o livro é muito mais que isto! - , na proporção exacta do gosto que tive em ler este livro de João Carlos Louçã, cujo trabalho já conhecia desde «Call Centers» e cuja publicação pela Deriva e consequente apresentação no Porto foi num dos locais referidos em «Pensar a Utopia, Transformar a Realidade». Será exagero afirmar que este livro, este trabalho excepcional, é um antídoto para o pensamento derrotista, desesperançado que povoa as mentes de muita gente boa?

António Luís Catarino
27 de Maio de 2021


                                                                      João Carlos Louçã


sexta-feira, maio 21, 2021

Apresentação de «Suspensão – Ecos de silêncio na cidade exposta», de António Alves Martins.

 

Eu, o António Alves Martins e Jorge Gouveia Monteiro no Liquidâmbar em 20 de Maio de 2021.

«Suspensão – Ecos de silêncio na cidade exposta» de António Alves Martins não é só um livro de fotografias. É, antes de mais, poesia tal como eu a vejo. O autor apresenta-nos uma série de momentos que eu denominaria de estranhos no sentido literal de estranhamento, de estrangeiro, de tudo o que vem de fora e que resta imóvel perante nós em simultâneo com uma estranha viagem pelo tempo, contudo movendo-se sempre olhando e fitando-nos nos olhos. Através da fotografia, mas igualmente pelo texto.

Neste livrinho extremamente cuidado, como aliás o autor já nos habituou, tudo é pensado ao pormenor. A capa azul-escura (numa edição especial de somente 25 exemplares) que o envolve, protegendo-o. Nela, um borrão de tinta preta que adquire um sinal de aviso para o leitor de um mundo desenhado a preto, branco e a zonas cinzentas que contrastam e jogam entre si. O aviso da suspensão do tempo enquanto o folheamos. O negro da capa tem um possível entendimento. Ele avisa-nos logo no início: «(…) o negro fragmentou-se em milhares de ínfimas partículas abrindo a inconsciência da matéria em branco.» «O negro do grito queima o branco» e todo um mundo muito particular pode surgir daqui. Ou, como escreveu Lawrence Ferlinghetti, em «A Poesia como arte insurgente»: «A poesia é escrita branca sobre o preto, escrita preta sobre o branco» ou ainda «Os poemas escondem-se em céus nocturnos, em prédios degradados, nas folhas varridas pelo vento de Outono, em caixas perdidas e encontradas (…)» e remeto-me para a misteriosa «caixa que Ernst me confiara» que António Alves Martins refere na página 5 com os registos fotográficos de viagens com que procurava «calar o insuportável silêncio do mundo».

E aqui exponho o que se sente ao entrar neste livro. Falo do tempo. O tempo em suspenso, que paira sobre nós e que nos interpela. Num pequeno folheto que acompanha o livro onde sobressai em título uma frase de Jorge Luis Borges, retirada das suas Ficções, afirma-se que os metafísicos de Tlön «não procuram a verdade nem sequer a verosimilhança: procuram o assombro». É esse assombro que tento entender neste livro. Para isso, António Alves Martins, abandona a metafísica ele que, formado em Filosofia, sabe como ninguém o que leva o processo dessa recusa. Inicia-se então nas memórias e na viagem derivativa - aqui em pleonasmo, porque uma viagem verdadeira é sempre uma deriva – buscando a ajuda de Ulisses e um retorno à Grécia e a esse sul que, desconfio, o António nunca abandonou desde que o conheço. Refugia-se na memória branca de Lisboa, dos velhos bairros e da esquecida Baixa de Coimbra. Invoca a liberdade frente à totalitária verdade metafísica e parte em busca do concreto que ele encontra na oficina e no jogo efémero da amizade. Eleva o livro à força da memória que o assalta por vezes e que regista em palavras e imagens. Suspende o tempo, a que chama epochè.

Portanto, o tempo em suspensão. Posso encontrar sinais desse tempo num livro de Constantin Cavafy editado pelo Tó Martins, pela Centelha em 1986, num extracto de um poema de 1918, «Ao pé da casa» cujo ambiente nos pode levar a algumas fotografias inscritas em «Suspensão – Ecos de silêncio na cidade exposta»:

Ontem, divagando por um bairro

Mais distante, passei pela casa

Onde eu às vezes ia, ao tempo de ser jovem.

Do meu corpo o Amor se apoderou ali

Com sua força incrível. Ontem,

Quando passava pela velha rua,

Lojas, calçada, pedras,

Paredes e varandas e janelas,

Tudo se transformou por magia do amor.

Nada restou que fosse pobre e vil.

(…)

Numa análise forçosamente ligeira ou apaixonada que faça das belíssimas fotografias que compõem o livro, socorro-me (tenho sempre de socorrer-me neste campo) da pintura e do desenho. O branco, o espaço, o intervalo ou se quiserem o limiar são, segundo Byung Chul-Han, zonas de esquecimento, de perda, de medo ou de angústia, mas igualmente de anseio, de esperança, de aventura (daí o tema da viagem em «Suspensão»), de promessa, de espera. Não será necessário ir de novo a esta filósofo para entender que o intervalo também nos impele para o movimento ou para a paragem, para a adivinhação. Estas fotografias são momentos que nos remetem para um acontecimento, para um caminho constituído por uma desaceleração do tempo, mas também para a monocromia, em negro mas também em branco que pode indiciar uma representação do invisível, do que está para lá, do intangível, se quisermos (dou o exemplo da fotografia quase negra em tríptico no final do livro).

Para finalizar, e apoiando-me novamente na pintura, creio que o autor deste livro nunca poderia entrar no mundo futurista de um Giacomo Balla, de um Marinetti ou de um Almada Negreiros, mas sem grandes dúvidas da minha parte (e peço desculpa se errar) as pinturas monocromáticas de um Fernando Calhau, de um Julião Sarmento ou de um Ernesto de Sousa caberiam - quem sabe? e recusando qualquer compartimentação absurda - na «filosofia» coerente que o Tó tem apresentado nos seus livros e nas suas fotografias.

António Luís Catarino

Maio de 2021

quinta-feira, maio 20, 2021

«Mulheres da Clandestinidade», de Vanessa Almeida

 

Um dia, quando «Mulheres da Clandestinidade» deu à estampa, comentei-o com uma turma do 12º ano de uma Escola do Porto que por acaso era bastante interventiva e curiosa (mais elas) sobre a História contemporânea. Como estudavam para o exame e este se aproximava calculando que quase sempre sai uma questão sobre o Estado Novo o interesse era normal que acontecesse. No entanto, passados alguns dias e já com o sufoco da aproximação do exame em que a «matéria» se condensava, como sempre estupidamente, vi um grupo de alunas com este livro da Vanessa Almeida nas mãos e que me diziam que o gostariam de comentar na aula. Como tinha sido eu a emprestá-lo acedi não sem alguma preocupação ligada ao «cumprimento do currículo». Contudo, foi das aulas mais profícuas que tive e que me deu para pensar bastante sobre o papel de um professor no sistema de ensino que nos enforma e, porque não dizê-lo, nos deforma. Quantos manuais escolares que se debruçam sobre a ditadura salazarista e marcelista são insonsos, embasbacadamente neutros sem o conseguirem ser de todo e repetitivos (mesmo tendo eu participado em alguns deles e tentando sempre mudar isso, não sei se com algum sucesso). 

A aula de duas horas, repetiu-se mais tarde sobre o mesmo tema. Estas alunas e alguns alunos tinham a ideia de uma ditadura morna, alguns confusos sobre os conceitos interiorizados por alguns professores entre «conservadorismo autoritário» versus «fascismo», não sabiam de todo as condições da clandestinidade e da luta das mulheres que Vanessa Almeida retratava ali. Comunistas, vindas de estatutos socioeconómicos variados, a maior parte pobres, camponesas, mas igualmente intelectuais que deram a sua vida a uma causa em torno da liberdade, de uma vida mais digna e pelo ideal comunista. O conjunto de alunas que leram os depoimentos de uma Maria Machado, de uma Margarida Tengarrinha, de uma Sofia Ferreira, de uma Teodósia Gregório ou de uma Fernanda Alves Rodrigues, entre outras, ficaram atónitas em relação a esta resistência à ditadura. O ser e estar clandestino era entrar numa outra dimensão, num outro mundo que julgavam acontecer só em filmes ou na literatura. O que me levou na ocasião a pensar, e hoje estou mais convicto disso, que o melhor manual escolar é o conjunto de livros como «Mulheres da Clandestinidade» será um exemplo em interligação com outros. Está lá tudo. Mesmo as circulares da PIDE foram escalpelizadas, o que deu pano para mangas sobre possíveis infiltrações e como seria isso possível. A tortura de Conceição Matos foi especialmente dolorosa para estas jovens alunas, assim como foi a separação dos filhos das clandestinas, muitos com destino a Ivanovo na URSS. Mas também mulheres que aprenderam a ler e a escrever através da imprensa do PCP, elas próprias clandestinas e que rodearam a impossibilidade de frequentar a escola «cá fora», ou seja, no ensino salazarista. Todo um manancial de depoimentos que ilustram bem a relação entre o amor, a luta, a firmeza no que se acredita, a utopia e a imaginação. O que os jovens de hoje dão importância, mesmo contando-lhes o passado próximo.

Se há alguma conclusão, ou conclusões, que se possam extrair desta descrição, e acredito que será mais comum do que se pensa, é que «Mulheres da Clandestinidade» devia fazer parte do Plano Nacional de Leitura. Não só porque se trata de um trabalho aturado, honesto, não sectário, sociologicamente sustentado com nomes e referências que reconhecemos, mas também por acreditar que o PNL deve ser multidisciplinar e não deve ficar refém da disciplina dedicada à prática de língua portuguesa. Em cada professor, deveria existir um pesquisador. Ou provavelmente adormeceremos a ler manuais escolares o que nos colocaria na prateleira dos preguiçosos.

Um livro a ler sempre. Cá ficará. 

António Luís Catarino

terça-feira, maio 18, 2021

«O Reino», ou o evangelho segundo Emmanuel Carrère


Que pode um livro como «O Reino», de Emmanuel Carrère, significar nos dias de hoje? Por miúdos: um convertido católico que o deixou de ser e escreve as suas memórias e as suas impressões sobre o processo? Demasiado pouco para a dimensão hercúlea da investigação que o autor lhe dedicou. É muito mais que isso. O autor alia às suas emoções como ex-católico uma profunda investigação sobre os evangelhos, Jesus Cristo, Paulo ou Lucas. 
Extremamente cru para Jesus Cristo, chega a usar a ucronia que lhe é particularmente agradável, para colocar a hipótese (para nós bastante plausível) do que seria o cristianismo se Pôncio Pilatos concluísse da não culpabilidade do agitador Cristo? Provavelmente este morreria de velho numa qualquer aldeia da Galileia a falar sozinho e a lembrar-se dos agitados dois a três anos que pregou pela Palestina, hoje a ferro e fogo. Mas os judeus não o quiseram e hoje o mártir é símbolo de uma igreja com dois mil anos, velha, gasta de tanto uso que lhe deram, cansada, mas estruturalmente forte que foi assim que lhe deu Paulo a vida que necessitava para se impor com Constantino com o seu cortejo de cardeais, arcebispos, bispos, párocos. E fiéis, claro.
Sobre as contradições dos evangelhos, Emmanuel Carrère não cai, com o seu «O Reino», na esparrela que Renan caiu no século XIX e que o levou quase à excomunhão e a uma perseguição feroz da Igreja católica e protestante. Também porque a sagrada instituição soube muito bem preservar-se dos hereges contemporâneos e saber defender-se ignorando as alegadas provocações que lhe fazem. Aprendeu com o espectáculo das ideias e das mercadorias, evidentemente.

Emmanuel Carrère é, de facto, um herege no sentido que lhe dará a igreja? Não sei e «não sei» são as palavras com que ele finaliza o seu livro. Diz-se de si próprio um agnóstico, o que lhe dá margem para dizer que não acreditando em deus, também o não pode negar, visto que não sabe. Certo. O cristianismo é, para ele, sem Cristo, não uma religio o que seria normal, mas uma prática de vida como o budismo, com o seu mantra particular substituindo o «Oomm» por um «Maraná-tha». Até pode dar resultado, mas surpreende-me que uma investigação tão aturada sobre as diversas interpretações do cristianismo tenha terminado com um clamoroso «não sei». 

O livro é excelente e tem, por detrás, o ter sido considerado o melhor livro francês de 2019. E eu considero de facto o livro assim, mas faz-me pensar o trabalho que dá ser um agnóstico coerente, bem mais problemático do que um «ateu católico» como Zizek, ou um «católico-protestante» saído de um ecumenismo cada vez mais sólido no terreno espiritual cristão. Convenhamos que estes últimos são bem mais difíceis de defesa ou de coerência do que um «simples-mas-não-tão-simples-assim» de um agnóstico.

Outra figura que não sai incólume é Paulo, o fundador universalista do cristianismo e da igreja tal como a vemos hoje e talvez o mais interessante é verificar as diversas nuances do movimento inicial do cristianismo, isto é, de Lucas com Paulo, de Tiago com Pedro, de João com Filipe, todos eles de facções bem diferentes e marcadas. Paulo, então, é zurzido, embora seja relativamente fácil zurzir numa figura no mínimo polémica e bastante antipática. Chega a fazer este exercício, outra vez ucrónico, sobre a conversão de Paulo que Emmanuel Carrère chega a negar; o autor convida-nos a imaginarmo-nos em 1925 na URSS e apresentar-se a Estaline um antigo general branco, acusado de diversos crimes na guerra civil e dizer-lhe: «Olha, eu sou um general branco, cometi crimes hediondos, mas agora sou bolchevique e abracei a teoria marxista-leninista, portanto quero entrar no PCUS, mas entro sem que vocês não me deem ordens, ok?». Percebem a comparação? Plausível?

Portanto as guerras de facções foram sempre uma constante ainda em vida de Cristo, com João e Tiago a quererem sobrepor-se a Pedro, ex-Simeão, com o qual Jesus tem diversas altercações bem abruptas, até lhe chamar de «Satanás», segundo o evangelho de Marcos. Aliás, diga-se que este epíteto já Pasolini teria dado a Lucas, por ser um mestre do disfarce da bonomia, apresentada perante estas diversas tendências. Não fosse Lucas, grego e culto!

Bom, isto tudo para dizer que não perdem nenhum tempo em ler Carrère, neste seu «O Reino». Muito bom.

António Luís Catarino

sexta-feira, maio 14, 2021

Dois gigantes do Teatro: Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo

Fotografia: Jornal Público

Jorge Silva Melo​ não é Luís Miguel Cintra, nem Luís Miguel Cintra é Jorge Silva Melo. O facto de os dois serem, a partir de 18 de Maio deste ano, doutores honoris causa pela Faculdade de Letras de Lisboa é justíssimo, embora não entenda muito bem por que razão foi este prémio atribuído em simultâneo. Na minha opinião devia ser dado separadamente, mesmo que os seus caminhos se entrelaçassem e tivessem trabalhado juntos, além de serem amigos e ao que suponho admiradores da carreira um do outro. Mas são diferentes quer no repertório, quer na personalidade, ao que julgo. Ambos escolheram o clássico e devo-lhes dos melhores momentos de teatro da minha vida. Não é de somenos, o trabalho de ambos entranhou-se na minha pele em momentos únicos. O Teatro tem esse condão em mim e em amigos meus. 

Dou-vos vários exemplos: o meu contacto com o teatro militante ainda antes de 25 de Abril, em 1973 e puto do liceu, em plenas «eleições» marcelistas assistimos ao «Asno» pelo TEUC o que deu proibição pela polícia e censura e porrada de criar bicho fora do Teatro Avenida, em Coimbra. Foi o meu primeiro contacto físico (e de que maneira!) com o teatro «a sério». Nervoso, visto que eu e João Pinto Ângelo​ atirávamos do 1º Balcão comunicados da CDE cá para baixo, tremia como varas verdes e nem dei pelo enredo que gozava com Américo Tomás. Ah e lembro-me do literalmente grande João Vilar! Portanto coisa física e militante.

O teatro clássico e de combate veio com Jorge Silva Melo, após o 25 de Abril com Brecht e a assistir às peças que nos levava quase a sentirmo-nos no palco e a partilhar com ele a forte comunicação que sentíamos e que Jorge Silva Melo imprimia com os seus actores. Mas não me esqueço igualmente da seriedade e das entrevistas a um grande Álvaro Lapa e a Joaquim Bravo, este último meu colega em Lagos e que assistia, caladinho no seu atelier cheio de gatos, às provas em papel manteiga que depois transpunha para a pintura. Foi por ele que conheci, numa célebre tarde, Palolo e um jovem Cabrita Reis que pintava os seus quadros ao estilo de Pollock e a que Bravo afirmava ser «puro barroco». Tempos inesquecíveis em que o nome de Jorge Silva Melo vinha variadíssimas vezes à baila. Tornou-se para mim «o» teatro. E avanço a hipótese: não fossem estes documentários (onde a linguagem teatral estava sempre presente) falar-se-ia da mesma maneira destes pintores? Ou não ficaria qualquer registo que fosse? Obrigado, Jorge Silva Melo e também pela excelente colecção de livrinhos de teatro que ainda nos liga a ele pela leitura (e como faz falta essa leitura de teatro!)

Falei há pouco de um amigo que comigo partilhou a estreia do meu primeiro teatro a sério, se bem que não chegasse ao fim pelas circunstâncias que referi. Mas há um outro que testemunhou a comoção que senti ao ver duas peças de Luís Miguel Cintra encenadas pela Cornucópia e que até hoje não esqueci: foi o António Alves Martins​ que me acompanhou em «A Missão» de Heiner Müller e, em 1992, em «O Público» de Lorca. Neste último, o choque físico como espectador foi tão grande que só consegui falar, literalmente, umas boas horas depois e com ajuda de algumas cervejas. E que actor Luís Miguel Cintra é! Ou seja, o teatro cumpriu, tal como alguns poemas de Herberto Helder que não nos permitem continuar sequer a leitura de outros, durante largo tempo. A poesia, aqui, também cumpriu.

Aos dois, vai um abraço sentido e um muito obrigado por eu continuar a ver teatro de qualidade de gente mais nova, cuja marca da Cornucópia (entretanto desaparecida) e dos Artistas Unidos é e será sempre indelével.

António Luís Catarino

quarta-feira, maio 12, 2021

«A Gorda», de Isabela Figueiredo

Isabela Figueiredo. Foto: Revista Sábado

Acabamos de ler «A Gorda» de Isabela Figueiredo e instala-se o incómodo que o título já sugere. Uma narrativa baseada na relação da autora com o corpo, mas não só. Igualmente com uma sexualidade vivida na orla da «normalidade» imposta por convenções quer da família, quer do meio onde cresceu. Aliás, pesquisando em entrevistas que Isabela Figueiredo deu quando da publicação da sua última obra, reconhece que se sentiu sempre «anormal, imprópria, desadequada». Essa impressão foi explanada no obra de uma maneira muito veemente, revoltada até, mas sem auto-comiseração ou sequer complacência para com a própria. Com uma vontade muito acentuada ela vai dando à sua vida uma linha coerente, violenta, quase frenética não fossem os anos decorridos, embora Maria Luísa, a personagem, procure uma paz desejada. A autora, nascida em Lourenço Marques em 1963, conhece desde pequena o colonialismo e transmite-nos o seu diferendo com o pai, ligado à máquina colonial para quem trabalhou e lhe incutiu os valores racistas e xenófobos de um império que soçobrava em guerra, que a autora mal conheceu, pois terá vindo estudar para Portugal ainda antes de 1974. E é no ambiente de um colégio interno feminino que desponta para as realidades metropolitanas de um país pobre, atrasado e ferreamente católico. Diz este que escreve, também ele conhecedor de internatos em colégios, que o feminino em internato era incomparavelmente mais infernal que os masculinos, já de si insuportáveis. A obra descreve este ambiente. Depois, a descoberta do amor e da vida nos subúrbios lisboetas da margem sul (que por acaso também conheci) como docente de Filosofia e o trabalho insano dos professores funcionalizados, quase robotizados, embora a crítica se aponte genericamente ao trabalho assalariado. A relação exposta com os pais, baseada numa admiração pela mãe e uma tensão sempre presente com o pai, para além do autêntico abanão que levamos ao ler a sua tentativa de ser mãe e engravidar com um amigo homossexual que a acompanha nesse desejo não conseguido após abortos espontâneos. Depois, a gastrectomia que lhe esvazia o corpo e que aparentemente afasta a incomodidade sentida; no entanto, a sua invisibilidade, o seu mal-estar continua, como uma tatuagem interior que não se apaga do corpo e que permanece. Maria Luísa, procura permanentemente e a ferros a felicidade. No entanto, no final, cresce a espera, a dúvida, enquanto se instala um paciente monólogo numa casa grande.
Provavelmente, não vou esperar tanto tempo para ler o próximo livro de Isabela Figueiredo.

António Luís Catarino

quinta-feira, maio 06, 2021

Uma história «sem álibis nem omissões», um artigo de Manuel Loff


Manuel Loff

Só agora (tarde, portanto) li este artigo de Manuel Loff. Pois é, a necessidade de quebrar consensos políticos perante a História deste país é uma obrigação bem mais honesta do que procurar a paz artificial. Todo o artigo aqui:

Uma história "sem álibis nem omissões"
Manuel Loff, PÚBLICO, 27.4.2021
Lamento mas, se chegou a haver alguma unanimidade quanto ao discurso de Marcelo Rebelo de Sousa no 25 de Abril, eu não me junto a ela. Por mais corajosa que possa ter parecido a atitude do homem que nos falou como filho de "governante na ditadura e no Império", e que entende ser "prioritário assumir tudo, todo o passado, sem auto-justificações ou auto-contemplações globais indevidas", deveria, ele que me desculpe, começar por si próprio. É compreensível que o filho de Baltazar Rebelo de Sousa, cuja carreira política esteve associada até à medula à gestão colonial nos anos da guerra, nos recorde que, como "constituinte, [viveu] o arranque do novo tempo democrático (...) como milhões de portugueses [situado] entre duas histórias da mesma história" - mas já não é aceitável ser quem nos peça que, ao "revisitarmos a história", não a julguemos com os valores do presente. Porque é isso mesmo que ele faz, como fizeram os anteriores presidentes da República todos os dias 10 de Junho, 1º de Dezembro, 5 de Outubro e, claro está, 25 de Abril. Chama-se a isso o uso político do passado, que Marcelo usa como usam representantes de Estados que queiram dar lições aos cidadãos do presente a propósito dos atos dos cidadãos de ontem, e que, em nome da honestidade, não deveria pretender ser coisa apenas daqueles que discutem o passado nos termos que lhe não agradam.
Quando Marcelo nos pede para não "[exigir] aos que viveram esse passado que pudessem antecipar valores (...) agora tidos por evidentes, intemporais e universais", persiste num dos mais velhos erros metodológicos da leitura reacionária do passado: o de inventar um tempo em que os valores dominantes seriam tão consensuais que nenhuns outros teriam sido enunciados. Em todas as épocas os valores dominantes tiveram alternativas; todas as ordens tiveram resistência; todas as verdades do tempo tiveram quem as denunciasse. Marcelo, que em 2017 foi a Gorée (Senegal) elogiar a precocidade portuguesa na história da abolição da escravatura, pretendendo que Pombal a teria abolido em 1761, não só sabia que o Estado português o não fez antes de passados mais de cem anos - eis o (ab)uso político do passado - como sabia também que a condenação da escravatura, do papel pioneiro e persistente que portugueses tiveram no tráfico, ou a denúncia do trabalho forçado que se manteve até aos anos 1960 nas colónias portuguesas, foi contemporânea dos próprios fenómenos e não é um "juízo do passado com os olhos de hoje". Como o anticolonialismo foi contemporâneo do colonialismo, e contemporânea da guerra foi a recusa em fazê-la (sobre a qual Marcelo não pronunciou uma palavra) e foi a contestação da resistência antifascista portuguesa à escolha de Salazar em fazê-la. Nenhuma destas batalhas é recente, pelo que é inaceitável qualquer insinuação de que estas podem ser "campanhas de certos instantes".
Com toda a razão, o presidente diz que "o 25 de Abril foi feito para libertar, sem esquecer nem esconder". Deveria, contudo, lembrar-se como o seu partido e todo o universo conservador da sociedade portuguesa, que, logo desde 1974, amaldiçoaram a Revolução e descreveram a descolonização como uma traição, não simplesmente procuraram "esconder", mas pura e simplesmente negaram a natureza intrínseca da dominação colonial e toda a violência que ela significou. Se hoje, como Presidente da República, pretende que se faça uma História "sem álibis nem omissões", pode desde já ajudar à desclassificação de muita documentação militar que continua inacessível.
Pela minha parte, eu e muitos investigadores estamos disponíveis para "estudar o passado e nele dissecar tudo". Mas "tudo" é tudo mesmo, e é importante que inclua, de uma vez por todas, aquilo que, por envolver crimes nunca julgados, atos inaceitáveis à luz da moral e do Direito (não apenas os de hoje, mas também os do momento em que foram praticados), o Estado e a maioria da sociedade nunca quis assumir e não quer que se investigue. Era bom que o Presidente esclarecesse se "dissecar tudo" abriria, afinal, essas discussões que ele entende não serem "prioritárias para os portugueses", e que é "duvidoso que o sejam alguma vez". Se assim fosse, teríamos de duvidar da sinceridade do discurso. É que só esclarecendo essas "omissões" seria verdade que, enquanto sociedade, "nos responsabilizamos" pelos nossos "fracassos" históricos da mesma forma como "assumimos as glórias que nos honram".

No bicentenário de Marx, lembrar igualmente a sua situação de migrante.


https://marx200.org/en/marx-als-migrant?fbclid=IwAR0zaSCzEMxiSBdvBK-OLb-AcLuhnOnqLOXDUC8fkiFnYriNOqWak5NL-Fk



David Priestland: sobre o trabalho e a distribuição capitalista e socialista na «estagnação»

David Priestland

«Michael Burawoy encontrou decerto uma ira para com as desigualdades muito mais forte entre os trabalhadores do mundo comunista do que nos países capitalistas. Os operários da Fundição de Aço Lenine em Miskolc, na Hungria, e os da fábrica Allied em Chicago queixaram-se ambos do encerramento das antigas fornalhas de aço. Porém, embora os trabalhadores americanos se confrontassem com a perda dos seus empregos, ''continuavam a não ver grande defeito no capitalismo''. Ao mesmo tempo, ''paradoxalmente, os operadores de fornalha da Brigada Revolução de Outubro, embora mais ou menos isolados da ação destrutiva do mercado mundial e incapazes de compreender o que significa ficar sem emprego, sabem muitíssimo bem criticar o seu sistema'', e passam muito tempo a condenar as hipocrisias do socialismo. A solução para este paradoxo reside num outro paradoxo: não obstante o secretismo político e a propaganda distorcida que envolvia os regimes comunistas, o sistema era na verdade muito mais transparente do que o capitalismo. (...) o Estado [socialista] investia numa fábrica e os trabalhadores produziam um «excedente» que era depois arrecadado pelo Estado, que pretendia distribuí-lo com justiça para o bem da sociedade. Assim, quando os operários viam os chefes a conceder privilégios a si mesmos, aparentemente imerecidos, sentiam-se zangados e explorados. Sob o capitalismo, é muito difícil ver para onde vai o lucro ou com que justiça está a ser distribuído. Não surpreende que os trabalhadores criticassem normalmente os sistemas socialistas por não serem suficientemente socialistas.»

David Priestland, «A Bandeira Vermelha - A História do Comunismo», Cap. 10 ''Estagnação''. pp 530, 531.

terça-feira, maio 04, 2021

A Escola dantes ou o inferno de antes


Um dos mais oportunos artigos de opinião de António Guerreiro. Esperei que alguém um dia trouxesse este tema para a discussão pública, embora tenha muitas dúvidas que ele passe daqui. Não interessa a ninguém, principalmente à classe extremamente heterogénea de professores, que se debata a barbaridade dos castigos perpetrados na escola de antes de 25 de Abril. Afirma a dado passo António Guerreiro: «(...) Em tempo de reparações e de assumpção de injustiças colectivas, ainda ninguém veio reivindicar que seja reparado, ou pelo menos nomeado, o crime cometido sobre as crianças e adolescentes na escola de antigamente, quando as sevícias faziam parte dos métodos pedagógicos. Quem frequentou a escola ou os liceus nesse tempo (acho que o 25 de Abril constituiu, também aqui, uma cesura, mas não sei se foi imediata e generalizada) sabe bem que muitos professores tinham métodos sádicos e comportamento de carrascos.(...)». Há professores fascistas? Claro que há. São aqueles que ainda hoje dizem na sala de professores para quem quer ouvir: «Eu levei, mas aqui estou eu e só me fez bem!», os mesmos que advogam os castigos corporais como forma de disciplinar alunos, que «não têm tempo para ler» ou que «nem tudo o que Salazar fez foi mau». Um dia a história desta escola há-de ser feita, com depoimentos de internadas e internados, de preferência. Antes que morramos todos e aqueles que se enojaram perante a violência que viram e sentiram na sua pele e na pele de outros sem poderem fazer nada, ainda tenham energia ou vontade para falar.


O artigo de António Guerreiro no Público de 30 de Abril, aqui:
«Temos assistido, no nosso tempo, a “revisões” históricas e a uma aceitação mais ou menos consensual de que não é possível defender hoje comportamentos e ideias que faziam parte de códigos culturais, sociais e políticos do passado. O que é menos consensual é o modo de reparação das injustiças cometidas no passado e o modo de olhar retrospectivamente para outras épocas históricas (próximas ou longínquas) e para os seus protagonistas usando os utensílios mentais do presente. Esta questão foi discutida e desenvolvida pelo historiador francês Lucien Febvre, num livro onde defendia que falar de um Rabelais ateu, apesar do fortíssimo pendor herético e muitas vezes obsceno da sua obra literária, era um anacronismo. Esse livro era não apenas uma refutação desse anacronismo, mas também um tratado de metodologia da investigação histórica.

O esclavagismo, o racismo, o anti-semitismo, a tutela e a violência exercida pelos homens sobre as mulheres, a discriminação e perseguição dos homossexuais e dos indivíduos transgénero, a pedofilia — tudo isto e muito mais tornou-se objecto de condenação veemente. Não quer dizer que, por exemplo, o racismo e o machismo tenham sido erradicados definitivamente. Longe disso, como sabemos muito bem. Mas já não podem contar, sem serem contestados, com os antigos discursos de legitimação. Já não fazem parte de uma “visão do mundo” naturalmente aceite. As revisões e reparações que daqui decorrem nem sempre têm sido isentas de violência e, certamente, de algumas injustiças. As revoluções, mesmo as que se dão no domínio das ideias e das mentalidades, nunca são movimentos pacíficos nem inteiramente controlados. Toda esta questão torna-se bastante mais controversa e cheia de equívocos quando se começa a exigir que até a literatura e a arte em geral estejam do lado do Bem e poupem aos leitores e espectadores ideias e atitudes que não devem hoje ser partilhadas na vida social e política.

Em tempo de reparações e de assumpção de injustiças colectivas, ainda ninguém veio reivindicar que seja reparado, ou pelo menos nomeado, o crime cometido sobre as crianças e adolescentes na escola de antigamente, quando as sevícias faziam parte dos métodos pedagógicos. Quem frequentou a escola ou os liceus nesse tempo (acho que o 25 de Abril constituiu, também aqui, uma cesura, mas não sei se foi imediata e generalizada) sabe bem que muitos professores tinham métodos sádicos e comportamento de carrascos. Não sou certamente o único que tem uma memória da escola primária como uma instituição de terror, um lugar a que sobrevivi a custo, mas que me deixou marcas que a memória reactiva com mais força à medida que o tempo passa. Percebo hoje que essa escola era profundamente medíocre (quando a frequentei tinha apenas uma muito vaga noção de que era odiosa) e, dela, havia os que se salvavam e os que submergiam (bem sei que estas palavras são uma ilegítima e perigosa citação, mas como deixar de ver essa escola como um “espaço concentracionário”?). Aí, a arbitrariedade era absoluta e os castigos infligidos às crianças eram semelhantes aos de uma colónia penal. Numa época em que não havia o controlo que há hoje e as crianças iam em grupo, a pé, para a escola, alguns “fugiam à escola” e ficavam escondidos, até à hora do regresso a casa, para escaparem à tortura. Recordo alguns nomes e rostos de colegas “fugitivos”, que depois tinham que enfrentar os pais; e que eram vistos como potenciais delinquentes e socialmente falhados. Recordo-os e interrogo-me se eles nunca pensaram em pedir contas pelo mal que lhes fizeram, por terem sido condenados ao falhanço por gente criminosa. Interrogo-me também se eles, já adultos, conseguiram cruzar-se com esses antigos professores sem os insultarem ou sentirem uma enorme aversão. E pergunto: como foi possível, já depois de ter desaparecido este ambiente escolar, manter a complacência em relação a professores que foram agentes do terror? A pedofilia é um crime que não prescreve; uma escola que pratica a pedocriminalidade deveria ser julgada. Se os ditos professores agiam assim por obediência a uma concepção da escola e da pedagogia instauradas como ideologia do Estado, então o Estado devia, em algum momento, ter pedido desculpa às vítimas e assumir a responsabilidade que não poder ser pedida aos carrascos que tinha ao seu serviço. As vítimas, uma enorme multidão, têm direito, pelo menos, a uma pedido oficial de desculpa. Mesmo que em muitos os casos o mal cometido seja da ordem do irreparável.»

António Luís Catarino