quarta-feira, março 30, 2022

« A Amiga Genial », Elena Ferrante

 

Relógio D'Água, 1ª ed. 2014, 10ª ed. 2022

Escrevo estas notas sem ter lido nada sobre Elena Ferrante. Sei que é um pseudónimo de alguém que não se quis identificar e que escreve torrencialmente e bem. Para mim isso basta. Não acredito que ter escondido o seu nome e recusado a dar qualquer entrevista (creio que até hoje) tenha sido uma montagem publicitária. Da sua editora não digo nada, mas dela não acredito, visto que descobrir quem era num mundo de vigilância capitalista era uma questão de tempo, o que tornava o exercício de Elena Ferrante completamente pueril. O que me leva a dizer isto? Basta ler o que escreve e como escreve. O modo desprendido, autobiográfico, frontal, quase brutal, com que nos conta as suas memórias não se enquadra numa pessoa sôfrega de popularidade e de dinheiro. E foi o dinheiro dos direitos de autor que estavam publicados no relatório de contas da editora que se descobriu, paradoxalmente, quem ela era.

Estamos nos finais dos anos 50 em Nápoles, numa cidade com feridas abertas da guerra e do fascismo, e onde duas miúdas crescem num bairro pobre, onde se cruzam proletários, pequenos comerciantes em busca de algum lugar ao sol numa Itália a sair da miséria e camorristas. Pode-se contar pelos dedos das mãos as vezes que Elena Ferrante, em todo o seu livro, recorre ao nome de Camorra, mas ela está lá, exerce o seu poder real, nas relações que estabelece com todo o bairro napolitano. De um modo ou de outro, as duas jovens Elena e Lina (Lila) desenham uma amizade que perdura em todo o livro. O que é estranho é que não existe na narrativa uma vontade férrea de sair do bairro onde se confrontam todos os tipos de violências. A ténue possibilidade de mobilidade social vem com a escola, ler, escrever, contar, conhecer línguas que permitam não propriamente fugir dali para fora, mas controlar o que há de mais podre nas relações sociais sempre tensas e prontas a explodir. Um dos trechos mais significativos do que acabei de escrever vem pela voz de Lila, em dialecto napolitano a uma invectiva de Elena (Lenù) para voltar ao estudo:

«(...) Tu ainda perdes tempo com essas coisas Lenù? Nós andamos a voar sobre uma bola de fogo. A parte que arrefeceu flutua sobre a lava. Nessa parte construímos edifícios, as pontes e as estradas. De tempos a tempos a lava sai do Vesúvio, ou então provoca um terremoto que destrói tudo. Há micróbios por todo o lado, que nos fazem adoecer e morrer. Há guerras. Há por aí uma miséria que nos torna a todos cruéis. A cada segundo pode acontecer qualquer coisa que nos faz sofrer de tal modo, que não há lágrimas que cheguem. E tu o que fazes?  Um curso de Teologia em que te esforças por compreender o que é o Espírito Santo?» Mais tarde Elena vai escrever uma dura discussão com o professor de Teologia que a expulsa da aula e cujo resumo escrito do acontecimento irá ser publicado por uma revista comunista de Nino Sarratore.

Mas o livro é muito mais do que isso, como é evidente. O próprio crescimento de duas jovens que querem ser livres e encontram caminhos barrados pela tradição napolitana e por múltiplas barreiras de índole social, intelectual e sexista é descrito de uma forma pouco experimentada em literatura. Isto porque o leitor intui a verdade, a realidade, que está por detrás dessas experiências muitas delas traumáticas. No fundo, acabando o livro, fechando-o e pensando quando se atreve a continuar a saga aberta por este «A Amiga Genial» poderá rever a sua própria experiência; a Nápoles de 1959, liberta da guerra e do fascismo não é assim tão diferente do Portugal desses anos que se preparava para uma longa guerra de 13 anos e que continuava com o fascismo caseirinho e mesquinho. Mas quotidianamente violento, sem dúvida. Sem camorra, mas com bufos, a Pide, a Legião e um machismo quase sempre brutal que emergia a todas as horas, em todos os lugares. Basta que a memória não nos traia e nos conduza aos anos 60, éramos nós ainda miúdos. E há coisas que não se esquecem nunca. Acabo com uma exclamação significativa de Lenù em diálogo com a sua antiga professora Oliviero:

«''Sabes o que é a plebe?'' ''Sim, professora.'' Naquele momento eu soube o que era a plebe, com muito mais precisão do que quando, anos antes, ela mo perguntava. A plebe éramos nós. A plebe era aquela que luta por comida e vinho, aquela altercação sobre quem é que devia ser servido primeiro e melhor, aquele chão sujo que os criados de mesa pisavam para a frente e para trás, aqueles brindes cada vez mais ordinários. A plebe era a minha mãe, que tinha bebido e agora estava encostada ao ombro do meu pai, que estava sério, e ria-se, de boca escancarada, das alusões sexuais do comerciante de metais.» 

sábado, março 26, 2022

Princípios básicos da «literatura» chegana





É um princípio meu desde que escrevo aqui e faço as minhas fichas de leitura que divulgo posteriormente no facebook não referir os livros de que não gosto. Adoptei esse critério e sinceramente tenho-me dado bem com ele. Mas há limites. E um deles foi um determinado livro que me veio parar às mãos. Não digo o nome da autora, nem o título da «obra». A editora é a BookBuilders que qualquer um pode editar, deduzindo que o «autor» paga antecipadamente a edição (o que não deve ser pouco). Imitando claramente as capas de outras editoras, o livro tem o mesmo estatuto, pelo menos nas estantes, de outras editoras ditas sérias ou, pelo menos, que procuram critérios mínimos de qualidade.

Não consegui ler o livro até ao fim. Deixo-vos alguns trechos. Isto pode levar-vos à acusação de descontextualização, mas acreditem que a contextualização é uma experiência muito pior, visto a qualidade é mais que sofrível. Partilhem comigo estes nacos:

A c*** da Aninhas:
«O Machado do primeiro direito sonhava muitas vezes com a c*** da Aninhas. De todas as c**** que conhecera na vida, a da Aninhas, talvez pela cor, um vermelho alanrajado a fazer lembrar as coralinas que cresciam no quintal dos seus avós galegos, e também pela extraordinária capacidade de se expandir, era a que recordava com mais saudades (...)». Não conto mais. Havia um colega meu no liceu, completamente tarado sexual, que descreveria melhor a genitália feminina do que a sua comparação com uma couve!

Os ciganos:
«Os ciganos são pontuais e exibem uma sofisticação vaidosa, camisas de cores florais, calças justas, mocassins de pele falsa, cabelos penteados com gel. Compram cigarros, batatas fritas, as tabletes de chocolate mais caras. Nunca respeitam a fila que se forma para pagamento dos produtos da loja. Olham com superioridade os restantes clientes da bomba de gasolina, ninguém se atreve a chamá-los à atenção.» Não se compreende o facto de comprarem as tabletes de chocolate mais caras. Isso é que não!

Os deficientes:
«Há também o casal que tem o filho deficiente. Não é maluquinho como o maluquinho das rotundas, é apenas um pouco atrasado. Habitualmente sentam-se na mesa junto do escaparate com os livrinhos da fundação. (...) [o rapaz] bate palmas [diante de um pastel de nata], saboreia com gosto, fica à espera de mais. Como um cão que aguarda os restos da refeição do dono.»

O racismo:
«O primeiro [amante da Aninhas] chamava-se Augusto. Pintava paisagens marítimas e plantava chalotas, favas e ervilhas numa horta comunitária na colina de Chelas. Era um preto grande, descendente de Gungunhana, mas tinha uma pila muito pequena. Aninhas mal dava por ela.»

A Zona J:
«Quando estava em baixo, quando, no trabalho, não aguentava as lágrimas, quando só queria morrer e vocês já eram nascidos [os 3 filhos da «autora»], metia-me no carro e vinha até aqui, fazia o caminho num choro que me libertava. Depois observava as crianças do bairro, os velhos desdentados, as mulheres feias, e, sentindo a minha própria maldade, sossegava.» Eu diria como um cão que recebe a comida do dono!

O ódio aos subordinados:
«Ao princípio Aninhas [todas as personagens se chamam Aninhas o que é uma inovação literária de truz!] sentiu-se embaraçada por ter quem trabalhasse sob a sua supervisão. Nunca mandara em quem quer que fosse. Descendia de uma linha de antepassados assalariados, a pobreza vinha de longe, uma genealogia de trabalho mal pago. como podia quebrar essa linhagem de servilismo? Que autoridade tinha para se fazer obedecer? A estranheza foi passageira. Quando a empregada tocou à campainha pela manhã, Aninhas sentiu uma alegria semelhante à de uma criança que se prepara para brincar ao faz de conta. (...) Preparava-se pela primeira vez na vida de mandar!» Ah! Lá se foi a genealogia do servilismo!

O passeio pela Almirante Reis contra a ralé do piorio:
«Depois, confesso, há outta coisa que me conforta. O João Pedro é completamente normal. Eu também. Quando passamos pela avenida toda a gente nos olha. Somos um par insólito. Roubamos o protagonismo das putas, dos bêbados, dos chulos, dos travestis e dos heroinómanos. E isso enche-me de orgulho.» Continua normal, Aninhas, tu e o João Pedro. Fazem um belo par de anormais completamente normais!

O amor pelas crianças loiras:
«Quando nasceu o primeiro filho houve logo quem duvidasse da sua fidelidade ao marido. É que o marido era ainda mais feio do que ela. Como podia aquela mulher dar à luz uma criança de cachos loiros, com a pele pálida, acetinada, macia, os olhos claros, a fazer lembrar a abóbada celeste nas tardes de Verão? O filho não podia ser seu marido.» 

Não consegui ler mais que as primeiras 55 páginas de 200 que são o que são por este breve passeio do que se faz de melhor na «literatura» chegana. A «autora» diz-se jurista. 


sexta-feira, março 25, 2022

«Villa Juliana», de Rui Ângelo Araújo

 

Língua Morta, 2021
Uma surpresa de um autor que desconhecia por completo. Embora este seja o seu quarto livro, não sendo portanto uma estreia, apresenta uma escrita muito sólida e uma narrativa bem estruturada, que nos prende à leitura. Os seus livros anteriores foram «Os Idiotas» de 2013, editado pela Lado Esquerdo e «A Origem do Ódio - Crónica de um Retiro Sentimental» de 2015, também publicado pela Língua Morta. Em 2017, a Companhia das Ilhas editou «Hotel do Norte».

Este «Villa Juliana» é um livro de viagem mapeado por périplos ao passado, que se entronca com várias personagens e que se cruzam, por vezes, em decadências e idiossincrasias várias. O que mais me chamou a atenção na leitura de «Villa Juliana» é a verossimilhança das pessoas que povoam o livro, dividido em quatro realidades diferentes, mas onde é possível verificar uma ligação quase íntima connosco ou com alguém que conhecemos em situações idênticas. O surrealismo e o non-sense de certos actos e vivências que lemos só pode ser real, bem conhecidos e vividos por Rui Ângelo Araújo, partindo do princípio que a realidade ultrapassa em muito a ficção. Passar isso para literatura de qualidade não é fácil. 

A ambivalência entre a cidade e o campo, a desestruturação familiar de uma mulher que envelhece, a pista de um poster já antigo de lingerie numa loja decrépita num casco histórico de uma qualquer cidade, o (re)encontro com amigos passados os anos de juventude new age de drogas e álcool que povoou o final dos anos 80 e o início dos 90 (o autor nasceu em 1968), os suicídios, as impossibilidades sociais, o isolamento, quase tudo é descrito neste livro. 

Não sei se a Villa Juliana é uma metáfora de Portugal; uma casa isolada, integrada num ambiente bucólico face a um lago, perto de uma cidade onde a separação de classes era (é) uma realidade bem conhecida, passados largos anos passa a ser um resort, uma espécie de hotel onde uma mulher, Juliana, que viveu ali a sua infância e adolescência é assombrada como se fosse mais uma cliente pagante de um quarto que foi seu. E também pelo seu passado. Se não é isto o Portugal de hoje onde tudo se paga, inclusive a velha aristocracia (que tem vergonha de o ser) representada por Rodrigo, onde um solar decrépito tem a sua porta aberta (para quem, para quê?) e que hesita na sua queda e degenerescência, até como filho ilegítimo embora único herdeiro, então Portugal o que é? Talvez a mesma decrepitude.

Um livro que me leva a procurar os outros do mesmo autor.


António Luís Catarino

GRAZIA TANTA: A NATO na senda de Hitler – Drang nach Osten

GRAZIA TANTA: A NATO na senda de Hitler – Drang nach Osten: A actual fascização dos poderes, brota, sob formas descuidadas e enganosas, de uma “informação” que se propaga, com superficialidades ou men...

terça-feira, março 22, 2022

«Comboios rigorosamente vigiados», de Bohumil Hrabal, ou de como se hipnotiza um tanque em movimento

 

Antígona, 2022
«(...) O meu avô não degenerou, saiu ao bisavô Lukás, era hipnotizador e trabalhava em pequenos circos, e toda a cidade via no seu hipnotismo a prova de que ele queria era passar a vida a mandriar. Mas em Março, quando os alemães atravessaram a nossa fronteira para ocupar todo o país e avançavam em direcção a Praga, o meu avô foi o único a ir ao encontro deles, o único a enfrentar os alemães como hipnotizador, para impedir, com a força do pensamento, que os tanques prosseguissem. O meu avô foi andando estrada fora com os olhos fixos no primeiro tanque, que encabeçava a guarda avançada daquelas tropas motorizadas. (págs. 10/11)». É evidente que o avô foi de imediato morto pelo soldado SS que comandava a coluna e as lagartas do tanque estraçalharam-lhe tão completamente que o desgraçado do neto Milós lá teve de ir pedir a cabeça do avô separada do corpo e enterrá-lo como um bom cristão.

Este livro de Bohumil Hrabal é um libelo contra a brutalidade da guerra, do seu não sentido, do horror que se lhe cola à pele, ao mesmo tempo que nos mostra a humanidade dos que a rodeiam e que vão aparecendo num cais de uma estação ferroviária checoslovaca ocupada pelos alemães; estes lutam na frente russa e os seus comboios, «rigorosamente vigiados», levam munições para a frente que se aproxima de Berlim, recuando pelo avanço dos russos. A personagem principal, Milós, morre sabotando com êxito um destes comboios, em luta com um soldado alemão que também encontra a morte. Aí está todo o horror da guerra: dois indivíduos que «num qualquer bar, em qualquer sítio» poderiam simpatizar um com o outro e beber uns copos, ferem-se aos tiros para acelerar a vinda da morte e acabar com o sofrimento lento que se vai apoderando deles. Pode parecer uma história demasiado linear, mas o autor é um dos que, poupando nos adjectivos e sendo parco nas palavras, consegue dar-nos uma visão pormenorizada, também apelando subtilmente à nossa intuição, das personagens que se movem naquela estação. E isso faz toda a diferença. Bohumil Hrabal é um escritor excepcional.

As sátiras de Bohumil Hrabal (1914-1997) já não são novas para nós. Já aqui foi referido no seu livro «Uma Solidão demasiado ruidosa» e na peça de teatro a que assisti no Porto pela Seiva Trupe «Eu, que servi o Rei de Inglaterra». Delas fui registando as minhas impressões. Positivas.

sexta-feira, março 18, 2022

«Memórias da Plantação - Episódios de Racismo Quotidiano», de Grada Kilomba

 

Memórias da Plantação é uma edição da Orfeu Negro, 3ª edição de 2022

A 1ª edição deste livro é de 2019 e já vai na 3ª. Não me quero referir ao episódio já tristemente célebre da votação de um membro de um júri que a impediu que um seu trabalho pudesse estar presente num festival de cinema europeu, ou da entrevista ao Expresso que não li e cuja fotografia de capa onde figurava a foto exposta aqui de Grada Kilomba tenha sido truncada. Quer o caso da votação de um júri, quer essa foto truncada do Expresso só vieram dar razão a Grada Kilomba e à sua tese de doutoramento da Universidade de Berlim, cidade onde vive, sobre o racismo quotidiano.

Todo o pensamento radical é um pensamento útil. A inutilidade do pensamento mainstream, do «nem sim, nem não», do metafórico ou do pensamento moderado tende a morrer por si, a desaparecer rapidamente na voragem das sociedades dinâmicas. Esta é uma razão das crises das sociedades actuais no Ocidente e também no arrastar da (in)consciência racista que predomina na branquitude europeia.

Grada Kilomba tem já uma carreira sólida: trabalhos expostos nas Bienais de S.Paulo e de Berlim, na Documenta 14, no MAAT e na Gulbenkian, é igualmente professora na Universidade de Berlim onde se doutorou cum laude e no Departamento de Género da Humboldt Universität. Este livro creio que é uma adaptação da sua tese de doutoramento e baseia-se muito nos trabalhos de Frantz Fanon, bell hooks, Freud ou May Ayim, entre outros/as, mas que não lhe retira minimamente a sua original radicalidade e rigor conceptual.

Depois de apresentar-nos exemplos da linguagem como instrumento de poder, quer no caso do racismo, quer do género que, aliás, não separa, recorda-nos que o racismo do século XXI é bem diferente do racismo brutal e mais visível do século XIX e XX. Hoje, o racismo liquefez-se, torna-se escondido em palavras e atitudes aparentemente neutras. A desmontagem do racismo quotidiano é feito não só por Grada Kilomba, mas igualmente por entrevistas a Katlheen e a Alicia (nomes fictícios) de mulheres racializadas na Alemanha, sendo que a primeira é natural dos EUA e a segunda filha adoptiva de uma família branca.

Na pág. 39, Grada Kilomba abre o difícil jogo oculto do racismo através da psicanálise e citando Frantz Fanon: «(...) Os psicanalistas dizem que não há nada mais traumatizante para a criança do que o contacto com o racional. Pessoalmente, direi que, para um homem que só tem como arma a razão, não há nada mais neurótico do que o contacto com o irracional.» A autora, mais à frente, recorre ao étimo grego da palavra trauma como sendo uma ferida, um corte profundo na pele, que chega a ser dor física que aliás uma das entrevistadas disse sentir num episódio de racismo «leve» que experimentou na família branca e que a adoptou. Daí, na pág.44, Grada Kilomba propor ao indivíduo branco/a o seguinte: «Em vez de formular a habitual pergunta moral ''sou racista?'' e ficar à espera de uma resposta confortável, o sujeito branco deve antes perguntar ''como posso desmontar os meus próprios racismos?'', pois é a interrogação em si mesma que dá início ao processo.»

Esse processo terá de ser interiorizado pelo homem branco como factor, por vezes inconsciente, outras mais que consciente, das atitudes racistas para com pessoas racializadas principalmente as africanas (e mais à frente Grada Kilomba explica o porquê este ódio pelo africano, em vez do indiano ou do ameríndio do norte, por exemplo). Em «Pode a subalterna falar?» baseada na questão colocada por Gayatri C. Spivak (num livro também editado pela Orfeu Negro), a autora responde, tal como Spivak, com um rotundo «Não!». E mais adiante conclui retirando do exemplo académico: «Não é que não tenhamos falado, mas antes que as nossas vozes - por intermédio de um sistema de racismo - têm sido sistematicamente desqualificadas como conhecimento inválido; ou então têm sido representadas por pessoas brancas que, ironicamente, se tornam ''peritas'' em nós mesmas. Seja como for, fomos aprisionadas a uma ordem colonial violenta. Nesse sentido, a academia não é um espaço neutro nem mero espaço de conhecimento e sabedoria, de ciência e saber, é também espaço de v-i-o-l-ê-n-c-i-a.» 

Onde está a radicalidade do livro de Grada Kilomba? Começa pela própria definição do racismo de hoje. Resumindo, a autora caracteriza o racismo em três vertentes: 1) vê-o na construção da diferença. O/a negro/a é diferente, estabelecendo essa norma o branco. 2) Essas diferenças são constituídas em valores hierárquicos sendo construída e articulada «pelo estigma, pelo opóbrio e pela inferioridade.» Assim, o/a racializado/a é visto como «problemático, difícil, perigoso, preguiçoso, exótico, colorido ou incomum.» Esta construção da diferença produz o preconceito que se afirma de várias maneiras na sociedade ocidental, na chamada «Europa Fortaleza»; e essa fortaleza não se construiu por acaso; trata-se de recompor um espaço colonial perdido, substituindo-o pela expulsão do sujeito negro. 3) Todos estes processos são acompanhados pelo poder histórico, político, social e económico que consolidam a supremacia branca sobre o negro. E também pelo poder linguístico.

Surge então o que Grada Kilomba chama de «racismo quotidiano» que se revela pelo vocabulário, discursos, imagens, gestos, acções e olhares que posicionam o sujeito negro e as «pessoas racializadas não apenas como ''outras/os'' - a diferença contra a qual se mede o sujeito branco -, mas também como alteridade, ou seja, a personificação dos aspectos reprimidos pela sociedade branca.» Neste aspecto, o sujeito negro está reflectido em itens claramente racistas como a infantilização, a primitivização, a descivilização, a animalização e, inclusive, a erotização.

Grada Kilomba estabelece um debate sobre o género algo polémico, mas a quem não me custa dar-lhe a razão, principalmente pela coerência com que aponta o feminismo negro diferente do feminismo branco, adiantando que uma mulher negra tem não só de lutar contra o racismo, como igualmente pela condição de mulher livre e contra os estigmas com que são atingidas diariamente.

Não deixa de ser sintomático que um país cujo império colonial com todas as suas arbitrariedades, violências e atrocidades e que foi o último a cair, em 1974, ainda se rogue no direito de dizer que não é racista. E não é só a extrema-direita portuguesa que o diz, o que não deixa de ser um contrassenso vindo de quem vem. É comum dizer-se o mesmo sabendo, conscientemente, que é mentira. A questão das estátuas colonizadoras que povoam as nossas ruas e que foram alvo de tentativas de destruição originando uma onda de repúdio caseirinho são disso exemplo, mas igualmente pelo racismo cultural que se apodera das escolas e universidades impondo um qualquer direito à diferença que não é mais do que a imposição de uma lógica colonial branca de que não conseguimos sair. Provavelmente, faremos a catarse do nosso colonialismo interior e quotidiano tarde demais. 

Um livro obrigatório.

António Luís Catarino



domingo, março 13, 2022

«Poemas em Prosa», de Stéphane Mallarmé

 

Assírio & Alvim, fev. 2022, Tradução de Diogo Paiva
Estes poemas pertencem à primeira parte de Divagações, datado de 1897. Mallarmé tem o condão de se divorciar por inteiro do objecto dos pequenos poemas em prosa e dá-nos indicações imprecisas sobre a situação concreta em que se desenrola um acontecimento; cabe por isso ao leitor deixar-se levar pelas palavras encadeadas e flutuantes, como Mallarmé o faz de modo tão desconcertante como hipnótico. Livrinho imprescindível que tem um segredo: se o lermos repetidamente, sem grandes barreiras temporais, o poema que lemos antes já é um outro, as sensações são diferentes de poema para poema. Poesia viva, portanto. Reparem, como se inicia o poema «Fenómeno Futuro»:

«Um céu pálido, sobre o mundo que acaba em decrepitude, vai talvez partir com as nuvens: os farrapos da púrpura gasta dos poentes  destingem-se num rio dormente no horizonte submerso em raios e água. As árvores entediam-se, e, sob a sua folhagem embranquecida (mais da poeira do tempo do que daquela dos caminhos), ergue-se a casa de lona do Mostrador de Coisas Passadas: numerosos candeeiros aguardam o crepúsculo e reavivam os rostos de uma desgraçada multidão, vencida pela doença imortal e pelo pecado dos séculos, de homens acompanhados pelas suas definhadas cúmplices, grávidas de frutos miseráveis com os quais perecerá a terra. (...)» (pág.7) 

E em «Lamento de Outono»:
«(...) Assim, durante o ano, a minha estação preferida é a dos derradeiros dias enlanguescidos do Verão, que precedem imediatamente o Outono, e, durante o dia, a hora em que passeio é quando o Sol se torna a pôr, antes de se sumir, com raios de cobre amarelo nas paredes cinzentas e de cobre vermelho nas vidraças. Do mesmo modo, a literatura à qual o meu espírito pede uma volúpia será a poesia agonizante dos derradeiros momentos de Roma, contanto não respire de modo algum a chegada rejuvenescente dos Bárbaros e não balbucie o latim infantil das primeiras prosas cristãs.» (pág.9)

António Luís Catarino


quinta-feira, março 10, 2022

«Pan», de Knut Hamsun

 

Knut Hamsun
Knut Hamsun (1859-1952) foi um nazi norueguês que apoiou a invasão alemã ao seu país. Isto é importante? É. Não me custa nada dizer que é um bom escritor, mas não consigo deixar de pensar que é um traste humano. Também é um prémio Nobel atribuído logo em 1920. Em 1945 retiraram-lhe tudo e expropriaram os seus bens tendo morrido louco e na miséria num lar de idosos. Bem feito? É-me indiferente, só não o sendo completamente, porque gostaria de saber se esse pecúlio foi para as mãos dos resistentes noruegueses ao domínio nazi. Espero que sim. No entanto, não posso deixar de pensar em Ezra Pound, Céline, Carl Schmit (sim, escreveu um livro para a sua querida netinha), D'Annunzio, Mishima e tantos outros que se deixaram levar pela vergonha totalitária. Mas eram bons escritores.

Dito isto, a obra não pode ser separada do homem que a escreveu. Knut Hamsun é um panteísta que chama por vezes por Deus e a sua personagem em «Pan», Tenente Thomas Glahn,  vive na natureza, numa cabana do Norte da Noruega, longe de tudo e de todos, mas perto de uma pequena cidade - Sirilund. Não vou descrever as personagens que lhe caem no caminho, mas é evidente o carácter brutal que Hamsun imprime a Glahn. Se iniciamos a leitura de «Pan» lembrando-nos de «Walden», depressa reparamos que nada terá a ver com Thoreau ou William Morris. Glahn mata e caça por prazer. Para alimentar-se, mas mata igualmente para recordar-nos a supremacia sobre a natureza e os animais. E essa supremacia aumenta quando está com mulheres que ou são submissas perante ele, meros objectos de prazer, ou se lhe resistem, fere-se a si próprio com um tiro num pé, mata o seu próprio cão, Esopo, enviando o cadáver à que o rejeitou, vinga-se constantemente de outros que considera rivais e mostra sempre a sua força bruta perante eles (por acaso ? um médico, um grande comerciante, um barão e um cientista), mata uma mulher a quem mostrou um amor fugaz sem querer, através de uma derrocada de pedras sobre um barco que afunda. Foge para a Índia tamil e aí terá a oportunidade de mostrar mais uma vez a força perante uma natureza ainda mais selvagem: mata leopardos, panteras, aves de toda a espécie, quase perdoa um tigre que tinha «despedaçado e engolido uma criança», vive com uma tamil «mais linda que uma verdadeira branca» e, por fim, provoca a sua própria morte, atirando e falhando propositadamente um compatriota para que este respondesse. 

A editora, numa badana, escreveu que tinha sido inspiração de Gide, Hemingway, Thomas Mann, Fitzgerald, Kafka e, vejam bem, de Gorky! Tenho o direito de não acreditar. Mesmo que o considere um bom escritor.

Foi esta a vida de Glahn, envolta em violência constante, numa tensão permanente, numa revoada de morte e domínio brutal que nos é transmitida por Hamsun. Que a terra lhe seja leve.

Pan é uma edição da Cavalo de Ferro de 2010, sendo a 2ª edição de 2015.

terça-feira, março 08, 2022

«Nó», de Daniel Jonas

 

Não consigo imaginar alguém que goste de poesia e não tenha lido ainda Daniel Jonas. Este livro de sonetos rigorosos feito e de um sarcasmo muito particular, também nos atinge pela surpresa e desconcerto que produz. Não sei que «nó» é este com que Daniel Jonas nos prende, nem ouso sequer aventar hipóteses. Nunca o faço em poesia, porque não quero arriscar-me. Só a leitura me interessa e as emoções que produzem em mim. Logo, prevejo um nó de marinheiro de várias pontas onde sobressaem ventos poderosos que se ouvem em flautas de juncos, com a morte e os jogos de espelhos da vida e do amor, com o clássico pagão e o bíblico onde o erotismo está sempre presente. Deus está presente de um modo raro, em que Jonas joga com Jonas e com a baleia, tal como adiante com Job e Jacob, ou o coxo Hefesto que martela o ferro na ausência de Afrodite ou com Maria e Cristo:

DO VENTRE DA BALEIA ERGUI MEU GRITO:
Senhor! (Dizer teu nome só é bom),
Em fé, em fé o digo, mesmo com
Um coração pesado e contrito
Que és de tudo verdade e não mito,
O coração do amor, de todo o dom,
Conquanto seja raro o bem e o bom
E toda a luz aqui me falhe, és grito
Que chama toda a chama de esperança
E acorda a luz que resta à réstia eterna,
Conquanto viva o mártir na espelunca
Da vida (quem espera amiúde alcança)...:
Possa o nazireu preso na cisterna
Sofrer de ser só tarde mas não nunca.
(pág.9)

E com a toada lírica camoniana, Daniel Jonas apresenta-nos este interessantíssimo poema, de uma ironia tão fina como tão efémero é o amor:

SE NÃO TE AMAREM FINGE QUE NÃO AMAS
E se te amassem outro amariam:
E só a si, se bem que fingiriam
Amar-te e dar-te a ti o que reclamas.
Pois mesmo que te amassem mentiriam.
E se amam outro a si outrossim amam
E noutrem só a si mesmo reclamam,
Que amante e coisa amada se diriam...
(...)
(pág.14)

E se todas as orações fossem assim, como a que Daniel Jonas o faz, não sem algum sentido de pessoa perdida, sem ânimo, ou assaltado por uma euforia louca, que a faz tentar voltar ao colo, a um útero materno:

DEIXA-ME ESTAR AO PÉ DE TI, MEU DEUS,
Sem que te diga nada, sem que fale,
Apenas acoitar-me, e nisso cale
Intercessões, louvores, os meus eus.
Ensina-me a encostar-me, estou cansado;
Raiz que arrancaram e sublevam,
Qual planta em que vivo enxertado.
Deixei o ferro em brasa de rapaz
E um horizonte extenso de poentes
Ardendo, avivando o sangue aos rentes
Cadáveres do que fui sem sê-lo, atrás.
Da queda de onde vim as mãos me doem;
A queda de menino é erguer-se em homem.
(pág.34)

Um livro inesquecível em sonetos feito.

António Luís Catarino


terça-feira, março 01, 2022

Pietà, Miguel Ângelo e Rilke

 

A leitura existente no desenho foi o impulso para o fazer tal como se apresenta aqui. Existe nas páginas 67 e 68 da edição de Bolso da Minotauro de «História do Bom Deus e Outros Contos» de Rainer Maria Rilke. Já não é a primeira vez que o abordo. Aconteceu-me na exposição «Anjos do Desespero» onde pontificava um desenho meu que lhe era destinado e um poema com colagens. Hoje, encontra-se com a minha filha e está no catálogo com o mesmo nome da exposição que aconteceu em Maio de 2018.

Já o livro é do início da sua carreira, se assim se pode dizer, e destinam-se sobretudo a crianças ou era isso que Rilke julgava. A simplicidade, as histórias, as personagens são de uma grande leveza, mas pleno de metáforas que nos permitem variadas interpretações, embora o caminho da paz, do conhecimento, do saber e da amizade entre humanos e a sua relação com Deus, seja uma realidade. 

Rilke é inseparável.