sexta-feira, agosto 26, 2022

«Antéchrista», Amélie Nothomb

 

Gosto de Amélie Nothomb. Belga a viver em Bruxelas, cidade de que gostei bastante de visitar por duas vezes, teve uma infância e adolescência na China e no Japão; deste último país, cuja língua fala e escreve fluentemente, ficou-lhe um traço que se nota nos seus livros que é, ao que julgo, uma grande capacidade de síntese ao mesmo tempo que consegue, com um aceitável domínio da escrita, caracterizar muito bem as personagens e os ambientes. Define-se não como escritora, mas como «grafómana», o que desde logo captou a minha simpatia. Ganhou vários prémios, tem 26 livros, até agora, e escreve muito bem, digo-vos. 
Este «Antéchrista» foi editado em português logo em 2003, ano em que foi publicado na Bélgica, França e em vários países. Trata-se de um thriller emocional em que uma miúda de dezasseis anos, solitária e com vários complexos da adolescência, se vê enredada numa teia montada por uma amiga de quem se aproximou e, sem medir qualquer consequência, a convida para sua casa julgando que esta não teria dinheiro para se sustentar na universidade que frequentam. 
Blanche, a miúda precoce que, com dezasseis anos se vê na universidade será aquilo que hoje se chama uma nerd e Christa a «buller» que se assenhoreia não só dos seus sentidos, como de toda a família. Pai e mãe que vêem, nesta, um exemplo que a filha deveria seguir. A narrativa traz-nos surpresas, mas não vale a pena aqui revelá-las. Mas a razão que leva Christa a maltratar psicologicamente Blanche tem uma forte razão que se pode ancorar numa surda luta de classes. Ao contrário, mas sempre luta de classes. E já disse muito.
Descrevo um pensamento de Blanche:
«Até ao meu encontro com Christa, uma das felicidades da minha vida de adolescente consistia em ler: deitava-me na cama com um livro e embrenhava-me na leitura. Se o romance era de qualidade, transformava-me nele. Se era medíocre, não passava menos horas maravilhosas, deleitando-me naquilo que não gostava nele, sorrindo nas passagens estranhas.
A leitura não era um prazer de substituição. Visto do exterior, a minha existência era esquelética; visto do interior, inspirava-me o que suscitam os apartamentos cujo único mobiliário é uma biblioteca sumptuosamente repleta: a alegria contemplativa para que o supérfluo não atrapalhasse a existência do necessário.
Ninguém conhecia o meu interior: ninguém sabia que eu não estava a protestar, somente eu - e isso bastava-me. Eu aproveitava a minha invisibilidade para ler dias inteiros sem que alguém se apercebesse.» (tradução minha, pág.61)

quinta-feira, agosto 18, 2022

4 policiais 4. O mundo mudou e o policial também

 


Gosto de policiais e se forem de bolso melhor ainda. Não gasto muito dinheiro, podemos tratá-los mal e lê-los de uma assentada sem grandes preocupações que a escrita dita literária obriga. 

Neste Agosto, contudo, observei uma regra: em dez dias levei para férias dois autores considerados antigos e dois «novos»; destes últimos só conhecia toda a saga dos «Homens que odeiam as mulheres» de Stieg Larsson e um de Camilla Läckberg de que já não me lembra o nome.

Os da conhecidíssima coleção Vampiro, agora nas mãos da Porto Editora, temos boas traduções e são bem revistos, coisa que não acontecia no passado. Li E.C.Bentley com agrado. Claramente socialista, o livro escrito em 1913, logo antes da guerra retrata como ninguém a voragem que já se fazia sentir em Wall Street por «capitalistas sem escrúpulos» cujo assassinato de um deles terá sido obra de um sindicato vingativo e arquivado pela polícia. Com alguma simpatia, dá-nos a verdadeira razão desse crime, mesmo que o relatório do detective esteja completamente errado. Por isso, acaba com a sua profissão num belo jantar com o verdadeiro homicida. Lindo! Psicologicamente algo denso, a trama é extremamente bem feita e obriga-nos a pensar, mas isso são contas de outro rosário. O Último Caso de Trent foi adaptado ao cinema nos anos 30 o que o obrigou a ressuscitar a personagem. 

Dashiell Hammett é outro que tal: membro do Partido Comunista Americano, nem por isso se deixa acometer por algum racismo em relação aos negros e «mulatos» como lhes chama... mas a história deixa antever os ricos como os maus da fita, tipos vulgares, odiosos, que não se detêm perante nada, passando por cima de tudo e todos. Assassinos com fartura e sangue aos borbotões. Mas ainda assim é um gosto ler Hammett e vê-lo no cinema com um Bogart a fazer de Marlowe. A Maldição dos Dain foi igualmente levado ao cinema nos anos 30, claro.

Jeffrey Archer pia mais fininho com um livro de 2019, não fosse ele um ex-vice-presidente do grupo parlamentar torie, dos conservadores, para os mais desatentos. Atenção que isto não é uma história inventada. Faz parte da autobiografia do autor: apanhado nas teias da bolsa de Londres, o tipo fica a dever meio milhão de libras a uma data de gente e indo a tribunal cometeu perjúrio o que lhe valeu 4 anos de prisão onde escreveu, em 3 volumes, os Diários da Prisão, pois claro! Hoje voltou à política, pagou as suas dívidas e é um milionário por vende 250 milhões de livros em 37 países. Portanto, o livro que li titula-se Quem Não Arrisca... caso para dizer que sabe-la toda, o homem!

John Grisham, escreveu o manuscrito e é outro que tal: é lido aos milhões pelo universo conhecido, mas é honesto pelo que se sabe. Escreveu O Manuscrito e pode dizer-se que é um bom escritor. A história envolvem milhões de dólares e são fruto da especulação alfarrabista (!?) de 1ª edições assinadas. Sendo o livro um objeto mais apetecível que o ouro, acções da bolsa ou mesmo os dólares, dá que pensar ao amante de livros que se viu sempre rodeado deles, certamente. Que sejam objecto de especulação nos States é de abrir a boca de espanto. Mas estamos aqui para aprender sempre.

Qual a diferença entre os «novos» e os «velhos» policiais? É que, nestes, os criminosos geralmente pagam sempre os seus crimes hediondos ou talvez nem tanto, conforme a moral e a ética de quem os escreve. Quem com ferro mata, com ferro morre é o bíblico refrão que se aplica aqui. A trama policial é composta pelo desenrolar de mentes inteligentes o que obriga a equacionarmos possíveis soluções à medida que as páginas avançam. Há tiros a rodos e frieza dos detectives que prendem belas mulheres e homens de fora de qualquer suspeita social. A polícia científica é a de laboratório de vão de escada. Lá ajudar, ajuda, mas pouco. A mente é que descobre, desfaz a teia construída com denodo pelos criminosos e somos convidados a participar na descoberta da coisa.

Já com os «novos» não se vislumbra castigo nenhum para os criminosos. Antes pelo contrário. É tipo «Ocean's Eleven», topam? Os ambiciosos se forem espertos continuam as suas actividades com ambição e inteligência. A polícia científica toma o lugar da dedução ou indução do leitor. As câmaras de vigilância sabem tudo. A mínima lã deixada numa carpete é caso para levar um tipo 30 anos para a prisão. A marca de batom nos cigarros é mentira porque já ninguém fuma.  A observação mórbida dos cadáveres dizem mais do que os desgraçados que são abertos ao ritmo das anedotas dos médicos legais que é para descontrair! Os dólares já não são o objetivo, nem os milhões ou ouro, mas sim a arte e os manuscritos e 1ª edições valiosos que sempre valorizam a cada dia que passa. Livros e quadros? Museus a serem assaltados? É claro como água e todos os que se arrebanharam à grande contra os bens públicos têm a medalha dos bons e intocáveis. «Quem não arrisca...», não é? Mesmo assim, a polícia perde sempre. Sim, os policiais mudaram muito, mesmo com as câmaras de vigilância e a chafurdice nos cadáveres que nos permitem preguiçar na solução dos crimes. Querem alimentar a mente? Joguem xadrez!

terça-feira, agosto 16, 2022

«Rien ne Résiste à la Joie de Vivre», de Raoul Vaneigem


Edições Grevis, 2022
Creio que é o último livro de Raoul Vaneigem. Síntese à maneira situacionista, livro de 63 páginas muito condensado, mas nem por isso isento de analisar os males da sociedade atual e o modo de os superar. No entanto, penso que alguns temas precisariam de mais aprofundamento, quer na análise da catástrofe planetária, como da pandemia do coronavírus, sobre a não-violência ou o feminismo. De resto, a matriz das ideias e das teorias de Vaneigem estão aqui bem consolidadas.

Sabemos hoje o quão difícil é lutar contra o Estado seja ele «democrático», totalitário ou autoritário. A violência a que o Estado recorre é inversamente proporcional às razões mais pacíficas dos manifestantes atuais. Mas dedicar o livro aos zapatistas e aos Gilets Jaunes deixará muita gente perplexa, mesmo entre aqueles que não apodam os GJ de simples fanáticos fascistas. Sabemos que são centenas de milhares de desesperados que querem sobreviver a todo o custo, quer nas cidades que os afastam, quer nas zonas rurais abandonadas. Pessoalmente, vi-os em França, em pleno Inverno, nas rotundas onde vigiavam a polícia e se aqueciam nas fogueiras, comunicavam entre si e via que despontava ali uma solidariedade comum invulgar que nada tinha de militarizado ou fascista. Conviviam alegremente e convidavam as pessoas a juntarem-se-lhes.

Dizer que o livro é mais do mesmo pode parecer pretensioso, mas quem conhece a obra de Vaneigem desde há 40 anos, sabe ao que me refiro: o apelo à desobediência civil e à resistência individual e coletiva (falou uma única vez nas ZAD's), por uma «vida plenamente vivida» talvez tenha substituído a revolta como o único estado decente e honesto de todo o indivíduo, proclamado por ele em 1968. 

Do livro: «A força do indivíduo autónomo vem dele próprio e da solidariedade dos seus semelhantes. O individualista é um adepto do cálculo egoísta, um vulgar predador, um puro produto do capitalismo.

»Desconstruindo a liça dos combates fácticos, os povos aprenderam no sofrimento que somente os negociantes de armas ganham com a guerra. O nosso combate não é concorrencial, resume-se a tentar viver através dos nossos desejos reivindicando para todos e todas um direito idêntico à felicidade.
 
»A alegria de viver é uma inclinação natural. É na sua soberania que a Natureza deverá ser libertada do homem predador.

»Só uma liberdade absoluta aniquilará o absolutismo que nos mata.»
(tradução minha)

A tónica, contudo, de Vaneigem neste «Rien ne Résiste à la Joie de Vivre» vai para a redação universal de uma Carta dos Direitos do Ser Humano. Que se faça, então!

De qualquer maneira, um livro a ler e talvez a debater em conjunto.

quarta-feira, agosto 03, 2022

«O Cão de Deus», Louis-Ferdinand Céline

 

Hiena, 1995, Trad. Alberto Nunes Sampaio

Não há quem não se refira a Céline sem que nos lembre o seu passado ou o homem. Mas há poucos que analisem, ao menos, a sua escrita. Não vou fazer uma coisa, nem outra. Nem poderia. O que me leva a escrever estas linhas nas fichas de leitura que faço aqui é o não esquecimento do que li e das emoções que geri ao longo dos anos. Uma delas chama-se Louis-Ferdinand Céline.

«Cães de Deus», era como os dominicanos se chamavam a si próprios em defesa do altíssimo. O epíteto relacionado com Céline está longe desse conceito medieval. Céline era o que era, mas ao mesmo tempo um poderosíssimo escritor. Evidentemente, mal compreendido porque o anátema cola-se-lhe à pele.

«Língua Morta» é como ele chama ao francês utilizado pelas academias que detestava e que, segundo ele, o empobreciam cada vez que saía um romance da chamada elite intelectual parisiense, seja ela quem for e o que for. Ainda hoje é assim. E o francês empobrece cada vez mais. Tal como o português, diga-se. Mas não chamaria, como alguns o fazem, de «inovador» a Céline. Acho que se estivesse a ouvir este termo lhe daria uma apoplexia. Ele sabia bem o que fazia. De origens pobres teve de trabalhar muito cedo e ajudar a mãe viúva. Enquanto se despedia tumultuosamente de treze patrões antes de se formar em medicina, nunca o deixaram evoluir na profissão, exercendo-a em dispensários e até em navios mercantes. Dessa vida conheceu a língua francesa, o calão forte, a palavra atirada sem o sentido literal que a burguesia lhe dava, as pragas, que assustavam o repimpado burguês. O argot. Não bebia, mas os bares de prostituição eram o seu poiso habitual, embora sem relações habituais com mulheres. Tal como usou o francês puro de Rabelais que ele citava como dos melhores escritores franceses e nunca ultrapassado, a não ser talvez por Voltaire, mas sem mudanças desde aí. Não pensem que este livro é uma defesa em sua «honra». É um doloroso ataque a quem lhe desejou a morte, o fuzilamento, a que Brasillach não conseguiu escapar, mais os 200 mil que os encostaram à parede, logo após a libertação em 44. Tinha uma filha cujo marido não lhe deu a conhecer os 5 netos. Nunca os viu. Vivia pobremente em Meudon onde nasceu. Deixou a medicina muito antes e vivia rodeado de cães e gatos. E um papagaio. Paradoxalmente, era gentil para quem o procurava, mas as entrevistas que dava eram fogo puro de desespero ou talvez ódio. Ele negava. Mas continuava a escrever? Sim porque a Gallimard exigia-lho para pagar as suas pretensas dívidas!

Em Portugal, não sei se conhecemos a sua obra completa (certamente que não!) ou sequer que a exijamos conhecer. No fundo, o que conhecemos melhor é o Viagem ao Fim da Noite e o Morte a Crédito, os seus dois primeiros livros. É manifestamente pouco. 

Sobre o papel de Jean-Paul Sartre sobre a amnistia de 1951 que ele recusou porque não se poderia defender das acusações de antissemitismo, patentes em dois panfletos que editou, aí, teríamos muito que falar. O que posso dizer é que, segundo Céline, ele não foi o defensor do seu não fuzilamento, antes pelo contrário: escreveu um artigo acusador logo em 1945 que o ia levando ao enforcamento ainda na prisão na Dinamarca. Jean-Paul Sartre de uma maneira cobarde e sem provas acusa-o de estar ao lado do ocupante por ter sido pago! Safou-se por pouco, mas defendia que queria ser julgado e apontar alguns nomes ditos colaboracionistas e agora na tal elite da «merda seca do olho do cu», quais resistentes encartados. Não pôde! Acho, ainda hoje, a defesa de Sartre, Beauvoir ou Aragon para com Céline uma história muito mal contada. Acredito mais na possibilidade De Gaulle, aliás como Céline aventa neste livro.

Sobre o estilo: «As grandes civilizações mudaram muitas vezes de estilo. Falo das grandes civilizações desaparecidas, esquecidas, quer a dos Sumerianos, quer a dos Arameanos; de todas estas civilizações entre o Tigre e o Eufrates, há uma quarenta, cinquenta que tiveram poetas que tiveram escritores, que tiveram legisladores. E mudaram muitas vezes de estilo. Os franceses, esses, estão de pedra e cal; (...)» pág.82

Sobre política já em 1933: «A posição dos homens ao meio da sua confusão de leis, costumes, desejos, instintos aceites, repelidos, fez-se ao mesmo tempo tão perigosa, tão artificial, tão arbitrária, tão trágica e tão grotesca, que a literatura nunca foi tão fácil de conceber como agora, mas nunca foi mais difícil, também, de suportar. Estamos rodeados de países totalmente cheios de embrutecidos anafilácticos; o mais pequeno choque precipita-os em convulsões assassinas que nunca mais acabam.
    Chegámos, pois, ao final de vinte séculos de grande civilização, e no entanto não há regime que resista a dois meses de verdade. Tanto estou a referir-me à sociedade marxista como às nossas sociedades burguesas e fascistas!
        De facto, o homem não pode persistir em nenhuma desta formas sociais, que são brutais ao máximo, completamente masoquistas, sem a violência de uma mentira permanente e cada vez mais maciça, repetitiva, frenética, totalitária, como lhe chamam. Privadas deste freio desmoronar-se-iam, as nossas sociedades, na pior anarquia. Hitler não é a última palavra, talvez cheguemos a ver um género ainda mais epiléptico.» Fala nas linhas seguintes das «berrarias ditatoriais» Pág.39

Morre em 1961.
        

terça-feira, agosto 02, 2022

Livro preso por um fio

Não tenho por hábito escrever ou fazer qualquer ficha de leitura de livros que não gosto, ou que ache mal feitos, com erros de português ou escritos com interesses inconfessáveis. Li com algum tédio «Presos por um Fio» sobre as FP25, de Nuno Gonçalves Poças. Com prefácio de Paulo Portas! São os dois entendidos em tudo, portanto tudistas. O nome do autor nada me dizia até encontrá-lo na televisão falando célere, mais célere que os pensamentos que lhe vinham à boca. Creio ser na SIC que o homem vai buscar os recibos verdes. 

Vem isto a propósito pela confusão (pensada e repensada?) que ele faz de organizações, datas e situações, misturando tudo no mesmo saco personagens que nada tiveram a ver com o processo. O que faz ali Camilo Mortágua relacionando-o com as gémeas deputadas, suas filhas, não consigo atingir. Se há alguém que está longe das FP é ele, mas assim como assim lá vai o nome que talvez cole. Tal como a LUAR, que nada teve a ver com a FP, mas sim com o PS nos anos quentes do PREC. Mas embora lá, que esta organização dividiu-se em dois o que dá sempre jeito para que a fação dita «conselhista» esteja por detrás da luta armada dos anos 80! Creio não errar afirmar que já não existia, assim como o MES com nomes como o Jorge Sampaio, Ferro Rodrigues e coiso e tal... para ousar ligá-los ao chamado terrorismo, também se lá põe o nome, assim como como o de Catalina Pestana que saiu logo no congresso inaugural das FUP/OUT. 

Não se trata aqui de defender o que quer que seja, mas lembrar ao tudista Poças que o país esteve à beira da guerra civil e que houve crimes da extrema-direita que ele, só muito a custo, cita, mas não enumera, nem diz nomes. Aliás só fala de dois: Ramiro Moreira e Cónego Melo. E fá-lo depois de citar o livro de Miguel Carvalho «Quando Portugal Ardeu»! Como se fosse possível desligar um processo violento de assassinatos, bombas e ataques a casas particulares e sedes pela extrema-direita do aparecimento da violência da extrema-esquerda. Chega ao ponto de quase tornar uma nota de rodapé a assassinato em Vila Real do Padre Max e da estudante Maria de Lurdes, sem sequer lhes citar os seus nomes! O que está aqui presente é uma tentativa de levantar o espectro do «terrorismo de esquerda» como se fosse o alfa e ómega de todo o processo de luta armada e de violência organizada em Portugal. Não foi, como Poças sabe, mas não quis dizer.

Sobre os «arrependidos» baralha e torna a jogar como se fossem «dissidentes». Há nomes que são confundidos propositadamente, ou então e o que me parece mais verosímil é que este livro tem como objetivo uma nova cruzada de caça à esquerda. E feito em cima do joelho. Com a profundidade de um trabalho elaborado por uma turma do 12º ano e com fontes muito problemáticas de aceitar.

Ah, e onde se «escondem» os que assaltaram bancos, carrinhas de valores, fábricas e empresas? Aliás, diga-se que o livro a certa altura parece um deve e haver de contabilidade tal é a obsessão do autor pelas quantias roubadas em contos e o que valeriam hoje em euros!! Mas onde estão os criminosos? No BE, claro que lhes dá guarida, alguns em Assembleias Municipais e outros, vejam bem, directores de Agrupamentos! Repito que fosse bom, para um livro sobre o tema ter referido e procurado melhor outras fontes mais fidedignas, confrontá-las e usar uma cronologia coerente. Alvitrar nomes de eventuais operacionais na morte de um diretor prisional também não me parece ser uma boa prática para quem se quer pôr em bicos de pés na História ou no Jornalismo. Fique-se pelo tudismo... 

Malina, de Ingeborg Bachmann

 

Antígona, 2022. Tradução: Helena Topa

Ingeborg Bachmann - Getty Images

Por vezes pergunto-me, mas só a mim, o que os germânicos, e particularmente os austríacos, têm contra as mulheres livres. A resposta está não só na sociedade fortemente patriarcal do interior da Áustria (não propriamente de Viena, a cosmopolita) como no nazismo que ainda perdura, lá e na Alemanha. «O fascismo é a coisa primeira a vigorar na relação entre um homem e uma mulher...» disse Ingeborg Bachmann citada por outra escritora «maldita» Elfriede Jielinek de quem já falámos aqui, por mais de uma vez neste blogue, e que faz um posfácio datado de 1983, «pago e não publicado» pela Spiegel! Diz Jielinek que os editores não esperavam que ela dissesse bem de Ingeborg.

Vejamos: Ingeborg nasce em 1926 e vê desfilar à sua frente as hordas nazis com verdadeiro «horror». Com 9 ou 10 anos começam as perseguições a judeus  e a Noite de Cristal que podia ser o título de uma bela história infantil que o pai lhe devia ler na cama, não foi mais que o assassínio consentido por milhões de alemães e também pelo pai que adere ao NDASP e por quem alimenta um verdadeiro ódio, em capítulo sonhado, mas extremamente violento. Por essa altura dá-se o Anschluss e lá vai a Áustria integrar o III Reich que inicia a II Guerra Mundial terá ela 13 anos. No final da guerra tem Ingeborg 18 anos, idade de todas as utopias, só que as dela são bem diferentes das delicodoces esperanças do pós-guerra. Em 1946 nasce Jielinek que a conhece e contacta com ela. Por aquilo que li de uma e de outra tornam-se amigas. São verdadeiras escritoras do pós-guerra que puseram os dedos em várias feridas e que são ostracizadas por isso mesmo, já que, falando de literatura, estamos perante o melhor que tenho lido.

Deprimida, arrasadora, violenta e paradoxalmente submissa para com Malina (é um homem, sendo o nome de sonoridade feminina, propositado) e Ivan, cria um triângulo amoroso, que me atrevo a comparar com a sua vida real entre Paul Celan e Max Frisch. Pouco importa. Tais minudências não são para aqui chamadas. O que sobressai é o jogo de domínio exercido pelos dois sobre ela, que a destrói. O final do livro é composto por uma só palavras: «assassínio».

Existe, quanto a mim, uma estranha, quanto assustadora coincidência: durante o livro deparei-me várias vezes com a descrição de fogos. Na Universidade onde faz um doutoramento tem os pés em chamas e o cheiro a queimado invade os corredores, tem preocupações constantes com o fogão, com as velas, com a queima de documentos e cartas, de lume para os seus cigarros. Sabendo, pela sua biografia e pelo belíssimo ensaio de Jelinek que ela faleceu com queimaduras graves devido a um incêndio em sua casa, fico a pensar que isto só acontece a almas atormentadas, mas infinitamente altivas, cujo orgulho que lhe restava ainda se sobrepôs a todos os que a quiseram derrubar. Mas isto, como disse no início, sou eu a pensar. Como se ela fosse o anjo de Klee.

«Surge um tumulto de palavras na minha cabeça e depois um lampejo, algumas sílabas já cintilam, e de todas aquelas frases encaixadas voam vírgulas coloridas, e os pontos, que já foram pretos, sobem-me à cabeça, cheios como balões, porque no livro magnífico que estou prestes a descobrir tudo vai ser como um EXULTATE JUBILATE. Se este livro vier a existir, e um dia terá de existir, as pessoas vão atirar-se ao chão de alegria ao fim de uma página apenas, vão pular de contentes, vão ser confortadas, vão continuar a ler e a morder a mão para não gritarem de alegria, é impossível resistir, e quando se sentarem no parapeito da janela e continuarem a ler, atirarão conffetti às pessoas qua passam na rua, para que se detenham de espanto, como se tivessem ido parar a uma floresta de Carnaval, atirarão maçãs e nozes, tâmaras e figos lá para baixo como se fosse o dia de S. Nicolau, debruçando-se da janela, sem sentir vertigens, e gritando: Ouçam, ouçam! vejam, vejam só!, li uma coisa maravilhosa, posso ler-vos cheguem-se mais perto, é deveras maravilhoso!» págs.45 e 46

«Vivo neste mundo animado como uma mulher semi-selvagem, libertada pela primeira vez dos juízos e preconceitos do mundo à minha volta, incapaz já de fazer um juízo sobre o mundo, capaz apenas de dar uma resposta imediata, de choro e gemido, felicidade e alegria, fome e sede, porque durante muito tempo não vivi. (...)» pág.64

«A História ensina, mas não tem alunos» pág.76

«Um dia virá em que as pessoas terão olhos-negros dourados, em que verão a beleza, em que serão libertadas da sujidade e de todas as cargas, elevar-se-ão nos ares, mergulharão nas águas, esquecerão os seus calos e as suas privações. Um dia virá em que serão livres, todos os seres humanos serão livres, até da liberdade que tinham presumido. Haverá uma liberdade maior, ultrapassará todas as medidas, durará toda uma vida.» pág.104

«Um dia virá em que as nossas casas cairão, os automóveis terão sido transformados em sucata, em que teremos sido libertados dos aviões e dos foguetões, em que renunciaremos à descoberta da roda e da cisão do átomo, em que o vento fresco descerá das colinas azuis e expandirá o nosso peito, em que estaremos mortos e respiraremos, será por toda uma vida.» pág. 122

«Nunca mais,
É sempre guerra.
Aqui há sempre violência.
Aqui há sempre luta.
É a guerra eterna.» pág.207

«Malina» foi escrito em 1971 e faria parte de uma trilogia que, infelizmente, ficou incompleta com a morte trágica da escritora em 1973. Foi agora editado pela Antígona e traduzido por Helena Topa.