domingo, dezembro 31, 2023

«Um Homem muito Procurado», John Le Carré

 

D. Quixote, 2008. Tradução de Isabel Veríssimo
Uma longa e complicada teia de interesses entre vários departamentos policiais antiterroristas ingleses e americanos que passam por Hamburgo e a Síria. John Le Carré lembra que foi nesta cidade alemã que permitiu a organização e preparação do ataque às Torre Gémeas de Nova Iorque no 11 de Setembro de 2001 o que não deixa de ser significativo. De resto, entram banqueiros suíços, uma advogada idealista de apoio aos refugiados, antigos membros do Exército Vermelho da ex-URSS e a forma maquiavélica como se podem utilizar os fanáticos e moderados islâmicos para, através de uma chantagem completamente imoral, para reforçar o estado policial nas democracias ocidentais. Lá aparecem o Hamas e o Hezbollah, os mercenários sírios, como peões no tabuleiro de xadrez que se movem consoante os objectivos dos governos.

Um bom 2024

 


sexta-feira, dezembro 22, 2023

Luta pelo Clima - Isto ainda vai acabar mal

 


Entre 1972 e 1974 os liceus deste país, pelo menos nas três cidades maiores de então, fervilhavam entre a raiva, o combate à incorporação na guerra colonial e a um governo cada vez mais violento e senil. Começávamos uma aprendizagem política a ferros. Está a acontecer, neste momento, uma exposição em Lisboa que lembra as lutas do Maesl e dos estudantes do secundário. A partir das "eleições" fraudulentas de 73 foram criadas as Cde, ou seja a Cdel, Cdep e em Coimbra a Cdec, Comissão Democrática de Estudantes de Coimbra. A UEC e o PCP decidiram que havia condições para aumentar as reivindicações estudantis no âmbito da criação de associações livres do fascismo. Foi então criada a Cpraac e nos liceus a Cpael (Comissão Pró-Associação de Estudantes Liceais). E atenção: alguns de nós já saíamos da caixa, éramos incontroláveis, uma espécie de "enragés" que nada tinham a ver com os objectivos programáticos dos universitários ou do partido. Tinham alguma razão. Muitos acabaram desirmanados. Mas esta história ainda não está feita.
Porque estou a lembrar isto? As comparações são perigosas e talvez pequem por extemporâneas, mas não é a primeira vez que refiro aqui a repressão completamente desproporcionada e criminosa contra os jovens estudantes que lutam decidida e corajosamente por um planeta melhor e mais limpo, lutando contra a Cop28, organizada, como sabemos, pela Opep. A polícia e a população motorizada reprimem juntos (!!) estes jovens de ambos os sexos, arrastando-os pelos cabelos, agredindo-os violentamente à vista de todos e das fotos como se a razão fosse a deles. Mas de relatórios a denunciar a nossa polícia sobre violência e tortura já conhecemos o suficiente.
Mais: nos artigos de opinião e na generalidade dos media e de jornais de referência, surgem juízes que, à pala da opinião, elaboram autênticos guiões para a acusação destes jovens, propondo até a pena para mais de 5 anos o que permitiria a prisão efectiva. Força! A polícia e a população (essa entidade esquisita) agradecem. Metê-los a todos na prisão depois de um enxurro de porrada é que é democrático e pedagógico. Quanto ao planeta, já vimos que apostam na Opep para, daqui a 20 anos, assinarem um acordo de viagens tipo Ryanair para Marte e botijas de oxigénio grátis, porque já não se poderá fazer nada aqui.
Esquecem contudo: que tal como em 73/74 o movimento não pára. Tende a crescer, tende a radicalizar-se, tende a fazer asneiras também, mas essencialmente a ganhar os avós, os pais e familiares, os amigos destes miúdos violentados por terem razão. Ou seja, dentro de 10 anos, ou menos, tendem a ter o poder. Ou a lutarem com violência contra ele.

Isto vai acabar muito mal. Primeiro com uma tragédia. Depois, a longo prazo, com uma radicalização para onde o Estado repressivo os está a empurrar, para esconder a sua própria incompetência e inconsciência climática. E é isto: as fotos de cabeças ensanguentadas de jovens manifestantes são retiradas à pressa daqui para fora. Tal como a censura fazia em 73 e 74. Acreditem, vai acabar mal.

segunda-feira, dezembro 18, 2023

«Linha da Frente» - Arturo Pérez-Reverte

 

Asa, 2022, Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra. 624pp
Não é qualquer um que escreve sobre guerra. Principalmente, sobre a Guerra Civil de Espanha e mantendo uma auréola de neutralidade absolutamente incongruente e incómoda para quem lê e que espera uma outra narrativa que não um insípido distanciamento sobre o confronto entre fascistas e republicanos, fossem estes últimos das várias tendências que na ocasião existiram. Os fascistas também tinham as suas, mas isso era questão de pormenor. Para eles Pátria, Deus e Família chegava como programa e matarem todos os vermelhos e anarquistas que lhes aparecessem pela frente, também. Mas a neutralidade de Reverte possivelmente deu-lhe o Prémio da Crítica Espanhola por este livro Parabéns ao homem, porque o livro não o merecia.

Falemos da guerra em si, desse estertor humano, o pior que a Humanidade pode mostrar de si própria. Pois bem, não exigimos que quem se propõe a descrevê-la e editar um livro sobre ela seja um Tolstoi, mas o mínimo dos mínimos é que tenha uma noção clara ou aproximada dos mecanismos psicológicos de quem participa nela. Do terror, do medo permanente, da vingança e da entreajuda, da luta entre os oficiais e dos soldados, dos soldados entre si, ou seja, tudo o que leve à desgraçada opção da vida e da morte. Toda a descrição da guerra, neste caso numa povoação catalã, numa margem do Ebro onde se deu uma das maiores batalhas da Guerra Civil, pode ser mantida numa toada que terá de tudo menos leveza. Aquilo que me parece é que lhe falta densidade psicológica às personagens, enquanto é reproduzido um gigantesco catálogo de armas, tanques, aviões, morteiros, toda uma panóplia de artefactos de morte, acompanhada das respectivas onomatopeias quando explodem ou são disparadas. Os diálogos são profícuos, talvez para dar esse cunho de leveza à leitura que poderiam ser perfeitamente dispensados. Alguns deles nem se compreendem porque lá estão. Não explicam, não projectam nada de novo, não reflectem o passado sequer. Tudo aqui é mecânico. Não são só os diálogos, mas as próprias personagens. Poderia ser a Inteligência Artificial a criá-las e os leitores mascarem uma chiclete que ia dar tudo ao mesmo.

Por outro lado, não creio que a neutralidade seja chamada para aqui. A Guerra Civil de Espanha é ainda demasiado recente, para nos esquecermos, ou fingirmos esquecer, quem foram os criminosos, os que se sublevaram contra uma república democrática, que embora não tenha conseguido sequer cumprir o seu programa social, foi eleita democraticamente. A neutralidade de que falo aqui é, possivelmente, o resultado de um jornalista de guerra que foi Reverte, mas na literatura não é assim que funciona. Queremos uma realidade, que pode até doer, mas uma experiência viva de um dos lados. Se assim não for, cai-se no risco, que acontece várias vezes neste livro, de fugir a narrativa para o deslumbramento de um «Arriba Espanha!» devido à «coragem» dos falangistas, do Tércio, ou dos legionários. Esses, ao menos, rezavam antes das batalhas, tinham farda, eram disciplinados e sabiam porque morriam, enquanto os «vermelhos», esse bando de mal-arranjados, poeirentos e sujos, vestindo à civil ou pondo sempre em causa as decisões do comando-geral republicano, consequência nefasta da luta de classes, claro, morriam para escavacar a ordem social estabelecida. Pois é. A neutralidade cai pela base e fica o rabo de fora. Mais a mais, essa disciplina nestes últimos, aparece por obra e graça de comissários políticos russos, de olhos azuis «frios como os olhos de um peixe», que metralham os que tivessem a ousadia de recuar do campo de batalha. A IV Brigada do Ebro, é tratada como um covil de marxistas, trotskistas, poumistas e anarquistas sem disciplina e quase sempre derrotadas por culpa própria. As Brigadas Internacionais idem. Conclusão de Reverte: os espanhóis, sejam fascistas ou comunistas, sabem lutar e não seria preciso um Hemingway «vir aqui, com arrogância, ensinar os espanhóis a combater». 

Volta-se a referir que não escreve sobre guerra quem quer, mesmo tratando-se de um jornalista habituado a ela. É necessário mais do que isso. Está a quilómetros de distância de um Johnatan Littell, de um Victor Serge, de um Céline ou de um Vassili Grossman. Para só citar alguns de memória.

Só uma questão sobre a tradução: os «Paseos» são tristemente conhecidos durante a Guerra Civil de Espanha. Os fascistas iam de porta em porta nas pequenas aldeias e vilas à procura de republicanos e fuzilavam-nos depois do que chamavam um «paseo» pelas redondezas das casas. Na Galiza, usou-se mais esse crime do que guerra aberta. Não se pode traduzir assim, sem mais, pelo português «passeio» sem sequer uma nota. Por outro lado, aparecem muitas vezes em diálogos entre membros republicanos, homens do povo, portanto, a grafia «fachistas», sem itálico, como para realçar o analfabetismo inerente à condição social desses homens. Não resultou.

Perfeitamente dispensável.

quinta-feira, dezembro 14, 2023

«Pensar a Imagem, Olhar o Texto», Estela Rodrigues

 

Afrontamento, Março de 2019, 270pp.
Pode a poesia experimental e visual ser um instrumento de aprendizagem para as crianças? Pode. E a prova, mais que evidente, reside nas propostas descritas neste livro tão interessante, como imprescindível para quem tem contactos com crianças. A autora, Estela Rodrigues, terminou em 1978 o curso em Educação de Infância e em 1986 licencia-se em Estudos Portugueses pela FLUP. Em 2009 faz o mestrado com a dissertação «A Emergência da Literacia em contexto de Jardim de Infância», na área de Psicologia, na FPCEUP. Foi, durante 27 anos educadora, «intermediados por treze anos na formação de educadores de infância na Escola de Magistério Primário, na Escola Superior de Educação do Porto, nas Universidades do Minho e de Aveiro.» Envolveu-se desde 1983 na APEI, no Movimento Escola Moderna e no Instituto de Comunidades Educativas. Feita a apresentação passemos aos objectivos que podem ser bem resumidos nas suas palavras: 

«Os objetos de conhecimento/sentido estético e o carácter subversivo das Poéticas Experimentais são estranhos e, em certa medida, desconstrutores de estereótipos das culturas de pertença contagiadas por padrões veiculados por determinados estilos de vida e pelas indústrias de entretenimento. Assumo essa desconstrução como educadora que se demarca da tarefa de reprodução massificadora.»

Maria Assunção Folque, na apresentação do trabalho de Estela Rodrigues, esclarece que estamos perante uma obra que «é um dos textos mais inspiradores e desafiantes que tenho lido sobre o conhecimento profissional de uma educadora de infância.» Partilho totalmente esta opinião e a minha leitura de «Pensar a Imagem, Olhar o Texto» com o subtítulo «Experimentos poéticos na educação de Infância» constituiu de facto uma rajada de ar fresco na secura do que para aí anda de obras de carácter pedagógico, seja para a infância ou para outras idades. Aliás, a proposta da autora é clara quanto a isso: se a partir de Bruner podemos garantir que toda a complexidade poética pode ser trabalhada honestamente com idades infantis (a experiência de Estela Rodrigues foi realizada com 25 alunas e alunos entre os 4 e os 6 anos, num Jardim Infantil Público do Porto), nada impedirá que o seja igualmente para todas as idades e ciclos de aprendizagens e de todos os níveis de ensino. Queiram os professores e os mestres, porque nas opiniões registadas por poetas experimentalistas da PO.EX ou brasileiros referidos por Estela Rodrigues e alvos do trabalho com as crianças, estas foram ganhas de imediato, sem que isso signifique não afastar alguma complexidade e dificuldade na construção - desconstrução - construção dos poemas visuais, experimentais, espaciais ou concretos apresentados às crianças. O livro em si é uma pesquisa constante. Obriga-nos à consulta e à marcação de páginas, principalmente ao Capítulo I, «Aproximação às Poéticas Experimentais», para mergulharmos em alguns autores incontornáveis desta forma poética como Melo e Castro (Pêndulo, de 1962), António Aragão com o seu provocador (Telegramando, de 1965), Salette Tavares (Aranha, de 1964 e com mais poemas neste livro cuja ideia subjacente ao Brincar está sempre presente nas suas propostas), António Barros (com o seu icónico Escravos, de 1977), Ana Hatherly (O Mar que se Quebra, 1998) e muitos outros, como Emerenciano, Eurico Gomes, Manuel Portela ou César Figueiredo. Não conseguindo, aqui nesta ficha de leitura, dar conta de todas as expressões que foram (ou que poderão vir a ser) trabalhadas por alunos e analisadas por Estela Rodrigues não deixarei de prestar a atenção devida à referência da «Land Poetry», principalmente de Fernando Aguiar, cujos recursos, utilidade e emergência poderão via a dar frutos nas nossas escolas sujeitas a programas completamente desajustados, ultrapassados e enfadonhos. Este livro não deixa de ser, igualmente, um interessantíssimo e útil trabalho enciclopédico.

Rui Torres, coordenador do arquivo digital da PO.EX., e também ele poeta, assina o prefácio a «Pensar a Imagem, Olhar o Texto». Vale a pena assinalar o que escreve sobre a já referida Salette Tavares : «(...) Aliás, Salette Tavares terá sido quem mais insistiu nesta pedagogia do olhar da poesia e da infância como a tomada de consciência em relação à componente lúdica da linguagem. Brincar, dizia, ''é um estado natural e permanente. (...) [e] com poucos brinquedos, tudo era brinquedo, folhas, frutos, gafanhotos, terra, lata e até nada. E este nada é importantíssimo. [carta a Ana Hatherly]''. Como mãe e educadora, transmitia aos seus filhos esta relação entre palavras e coisas, derivando dessa educação grande parte da sua ''produção poética'' que esteve, aliás, presente na exposição ''Brincar'': objectos que fizeram juntos na descoberta da linguagem. Ao recriar o mundo no convívio dos objectos, Salette Tavares testemunhava uma aprendizagem pelos sentidos. O seu aviso foi muito claro: ''É preciso que não separemos as crianças dos jardins e não as deixemos morrer atrofiadas pelas lojas de brinquedos que, como todas as lojas da civilização de agora, com as suas mon(s)tras, comem as infâncias das crianças, dos papás e dos avós''» Este «brincar» é igualmente teorizado por Maria Assunção Folque na apresentação: «Quero realçar que o lúdico, o brincar, não devem ser vistos apenas como processos naturais de quem ainda é criança mas antes, como capacidade humana sofisticada, em que este processo de construção-desconstrução-construção implica conhecer as regras para as poder perverter». Todo um programa para as sociedades que se exigem mais felizes ou que ainda ligadas intimamente à Natureza, onde ainda se sente «o riso que vem das entranhas da terra» como registou o antropólogo Tobias Schneebaum em «Onde os Espíritos Vivem» (Antígona, 1991) quando esteve na Nova Guiné. Estela Rodrigues, talvez por isso, não se limitou a um livro de pedagogia em sentido estrito, mas acrescentou-lhe uma aura poética e de intervenção  político-social que lhe está indissociável e que beneficia claramente a obra. 

Para além de tudo (e do pouco foi aqui dito), não percam o Capítulo 8 «Experimentos Poéticos e saberes partilhados» que se apresenta com guiões de exploração pedagógica, experiências, pormenores textuais, ilustrações e fotografias do trabalho no terreno que Estela Rodrigues desenvolveu com as crianças a partir dos poemas visuais. As recriações que vemos são autênticas maravilhas feitas por crianças entre, repete-se, os 4 e os 6 anos e os diálogos que se estabelecem entre a educadora e aluno/criador, ou recriador, são uma lição para o leitor, que sendo complexa está bem longe de ser majestática. Sei porque faço esta afirmação. Na mesma carta de Salette Tavares a Ana Hatherly já referida atrás e evidenciada por Rui Torres. Numa vivita de estudo a uma exposição de Alberto Carneiro na Galeria Quadrum, em 1979, Salette Tavares lembrou: 

«(...) Aconteceu mostrar eu episodicamente uma exposição a crianças com cerca de seis anos. Fui várias vezes interrompida pelas duas professoras que as acompanhavam. Achavam tudo difícil para crianças daquela idade. Eu disse: - Isto é uma espiral e uma espiral é... Não me deixaram acabar de dizer, só acabei o gesto. Ora espiral é uma palavra linda, uma criança ainda mais pequenina do que aquelas pode saber o que é uma espiral porque já deve saber o que é um caracol. As crianças percebem muito bem a exposição de Alberto Carneiro. Quem não percebeu mesmo nada foram as professoras, era ri al mente muito difícil.»

«Pensar a Imagem, Olhar o Texto», de Estela Rodrigues, não se conforma com o estabelecido, antes questiona, subverte, ensina. Pela imagem, pelo texto, por anagramas que convocam a inteligência, a dedução, a comparação ou a indução. Até mesmo o nada. Seja. Mas creio que nenhum educador pode prescindir deste livro.

quinta-feira, dezembro 07, 2023

«Fechada para o Inverno», Jorn Lier Horst


D. Quixote, 2016, Tradução: João Reis
Bom, o que vale é que Horst foi polícia na Divisão de Oslo o que dá um carácter de veracidade a tudo o que lemos dele. Não só a questão administrativa a que são obrigados os detectives (creio que ainda bem!), mas a sua relação com os procuradores e juízes e igualmente com os métodos de investigação, embora mais que ajudados pelos capitalismo de vigilância. Já aqui se disse que a dedução, a memória, a inteligência de um detective do século XX já nada tem a ver com os quilómetros de imagens, mails, contas bancárias, telemóveis e discos duros dos computadores a que hoje começa e acaba toda uma investigação criminal no século XXI. Os crimes hoje são essencialmente económicos e deixa-se para trás o tráfico de droga ou outros equivalentes, como os humanos. Não há mãos para tudo, caramba! O Estado assim o obriga e tudo corre às mil maravilhas.

A história do livro em si não é má de todo. Mas os liberais deviam seguir a narrativa de Horst quando este vai à Lituânia numa investigação criminal. Longe de ser um autor que aborde a política, não deixa, contudo, de exercer a sua visão sobre a sociedade lituana há poucos anos saída da União Soviética. Como disse, os liberais, depois de um dia de trabalho árduo no Parlamento ou nas suas empresas e nos seus unicórnios, depois de passarem no ginásio ou no spa, ou mesmo durante os mesmos, sei lá, deviam ler o que ele conta da Lituânia neste livro. O liberalismo selvagem produziu pobres a esmo, 25% de desemprego, riquezas fabulosas, crime mais organizado que o Estado, mercados negros tão grandes como os maiores bairros de Oslo onde tudo se consome e vende sem que se possa criar riqueza para o Estado, porque a exercer o fisco nesses mercados era pior do que as suas consequências sociais. Fixe, não é? Claro que quem paga isso, em parte, são os países ricos como a Noruega, a Suécia, a Finlândia e a Dinamarca, por exemplo. Mas nem tudo é mau: produz uma literatura policial profícua e lucrativa nestes países, em troca de umas casas assaltadas (geralmente as segundas ou terceiras casas de férias de famílias viquingues), uns televisores LCD a menos e uns carros desviados dos seus donos. Nada que preocupe a social-democracia em descida inclinada para a extrema-direita, igualmente favorecida para o seu discurso político. Todo um programa liberal em poucas centenas de páginas. 

IA no genocídio de Gaza. Inquietante e previsível

 

Desenho elaborado por Inteligência Artificial (sem identificação)
Provavelmente passou despercebido ou foi um trabalho jornalístico de Sofia Lorena que foi remetido para as notas de rodapé das guerras actuais. Isto é sobre Gaza. Do genocídio que decorre em Gaza sob a enormidade da resposta de Israel ao ataque do Hamas e que castiga a população palestiniana de um modo completamente demente. O desenho em cima foi elaborado, sem identificação, por Inteligência Artificial (IA) e escolhi-o para demonstrar os perigos que a ciência tem colocado a esta forma de capitalismo de vigilância ainda sem nenhuma regulação. 

O artigo de Sofia Lorena, no Público de 4 de Dezembro, explica-nos a estratégia das Forças de Defesa de Israel (IDF) na pretensão de acabar com o Hamas, mesmo que para isso tenha de perpetrar um genocídio ainda não declarado pelo TPI e pela ONU que tem evitado utilizar este termo. A IDF tem usado a Inteligência Artificial (IA) para procurar alvos. Alvos esses que já vão em 16000 mortos sendo 6000 (dados de 4/12) de crianças. Dizem que metade dos comandantes do Hamas estão já mortos, embora sem confirmação de fontes independentes. Como se faz esta escolha de «alvos» pela IDF? Através, segundo, Daniel Hagari porta-voz do IDF, da selecção desses mesmos alvos (sempre entre aspas) por um sistema denominado Habsora, desenvolvido a partir de 2019 e comandado numa sinistra Divisão Administrativa de Alvos que, segundo um importante ex-militar de Israel, Aviv Kovachi, «é uma máquina que, com a ajuda da IA, trata muitos dados muito mais depressa e melhor do que qualquer ser humano e traduz isso em alvos de ataque.» Segundo este mesmo ex-chefe do Estado-Maior israelita «a partir do momento em que esta máquina foi activada, gerou 100 alvos por dia, quando, no passado era possível criar 50 alvos por ano». Outro ex-oficial, agora da Mossad, diz de um modo terrífico que o Exército «gere uma fábrica de assassínios em massa» e mais à frente afirma «É mesmo como uma fábrica. Trabalhamos mais depressa e não há tempo para avaliar profundamente o alvo.» Mas deve-se sublinhar que a culpa do morticínio que se está a dar em Gaza pelo Exército israelita não é só da IA. Poderão dizer que esta nova ferramenta não tem culpa por si só, o que é claro, mas é uma notável aproximação ao fordismo ou à produção em série...de mortes por assassínio! Termino com uma afirmação de uma das fontes da revista +972 israelita que não quis dar o nome: «Nada acontece por acaso. (...) Quando uma menina de 3 anos é morta numa casa de Gaza, é porque alguém do exército decidiu que não era muito importante que ela fosse morta - que era o preço a pagar para atingir mais um alvo (...) Nós sabemos exactamente quantos danos colaterais há em cada casa.» A demência assassina em todo o seu fulgor.

sábado, dezembro 02, 2023

«As Personagens», Ana Teresa Pereira


Relógio D'Água, Julho de 2023, 156 pp
Não é a primeira vez que escrevo sobre Ana Teresa Pereira, nem será certamente a última. A atracção do seu mundo particular, arrisco-me a dizer, é uma constante para um leitor que saiba conjugar o fantástico, o conto breve, embora este seja uma estrutura de um romance com capítulos religados entre si, como é o caso de «As Personagens», e o mistério que envolve toda a trama de um encontro fortuito (ou preparado antecipadamente?) entre quatro pessoas que se encontram numa noite de tempestade, nebulosa, fria e que se refugiam numa casa cinzenta, em contraste com uma fogueira acolhedora. Contraste e negação que se encontram em permanência no livro. A partir daí conseguimos vislumbrar as características psicológicas e o erotismo suave e emergente de duas mulheres e dois homens que tentam fugir ao imposto pelas normas sociais em forma de guião cinematográfico que, ao que se julga, é abandonado. Considero a necessidade de «entrar» neste conto tão estranho, como belo, conhecendo antecipadamente os Nocturnos de Chopin (serão os de Maria João Pires em particular?), as névoas constantes das charnecas de Conan Doyle ou alguns dos filmes de Hitchcock. Inquietante? Claro que o é, e uma história de Ana Teresa Pereira remete-nos para o desconforto e dúvida, através de uma linguagem depurada e diálogos credíveis. Sem querer revelar muito deste primeiro conto, não há uma só casa, mas uma outra dentro dela. Mas a possibilidade que Ana Teresa Pereira nos apresenta a meio do conto e pela voz de Diana (talvez a personagem central, mas que desaparece nos capítulos seguintes) é verdadeiramente inquietante: «-Talvez o mundo interior seja formado por pousadas, com dois lados iguais, rodeadas pelo nevoeiro, isoladas umas das outras...». Pousadas, labirintos, quartos aparentemente inabitados somos todos nós. 
«Talvez...talvez ainda haja um lugar para onde ir.» (pág.31)

Neste livro de Ana Teresa Pereira coexistem labirintos físicos e psicológicos que permanecem em cada um de nós e na relação com os outros; são as máscaras (personas) que utilizamos quer na leitura de um livro, quer no escapismo a que nos propomos nas diversas personagens de um filme: 
«Ela gostava por vezes de ler um livro como quem faz amor., excluindo o pensamento, sem o pensar, quase não o compreendendo. Ler um livro apenas com o corpo. Sentir prazer físico ao ver um filme, ao ver a chuva caindo em latas velhas, sentir vontade de gemer alto. Seria ele capaz dessa forma de erotismo?» (pág.58). 
Sabemos que assim é na realidade vivida, mesmo que a irrealidade se imponha como as névoas, a chuva ininterrupta ou as tempestades constantes em toda a acção do livro. É esse o perímetro, a paisagem, que nos leva aos labirintos de nós próprios, alguns sem saída possível como sejam os jogos de sedução e de crueldade entre os homens e mulheres que povoam as narrativas soltas de «As Personagens». Essa crueldade que nos é mostrada não é feita de sangue, mas de ímpetos e aproximações em que as palavras têm um papel fundamental. Estas, cortam como facas: 
«Quando as palavras vêm cheias de fantasmas, elas metem medo. Quando as palavras abrem alçapões de subterrâneos repletos de fantasmas, quando escrever é ver-se ao espelho e não gostar...as palavras metem medo. Quando se aprendeu a ver no fundo das palavras o que elas escondem, escrever já não pode ser um acto inocente.
Escrever nunca é inocente.» (pág.52)

E quando esses labirintos a que nos atrevemos a entrar, carregados de erotismo e crueldade, são construídos por altas muralhas a que não vemos a percepção do fim, em nós ou nos outros, nos que amamos, Ana Teresa Pereira atira-nos com a violência inerente às personagens que povoam o livro com um «Rosebud», síntese possível de uma vida plasmada, a preto e branco, em Citizen Kane.

«- É um mundo estranho, o da minha imaginação. Por vezes parece-me que vivo duas vidas, e é terrível passar de uma para a outra. Quando deixo a caneta e venho para fora, sinto-me perdida durante muito tempo. É...uma sensação de irrealidade total.» (pág.105)

Qualquer leitor que leia os livros de Ana Teresa Pereira, intui (a intuição é um pressentimento da verdade, como é referido algures no livro), porque sim, que ela é extremamente genuína, verdadeira, o que a transforma numa grande escritora. Deixa-nos este livro com uma doce inquietação.

quarta-feira, novembro 29, 2023

28 de Novembro: Traço, Viagem, Insular, Memória no Centro Cultural Penedo da Saudade, Coimbra


Eis o vídeo de apresentação de Traço, Viagem, Insular, Memória facultado pelo Centro Cultural Penedo da Saudade, em Coimbra:

https://fb.watch/oD9gny5BZ6/

António Alves Martins, Cristina Faia e António Luís Catarino
Foto Paulo Góis


A 17 de Novembro, no portuense Gato Vadio, a apresentar Traço, Viagem, Insular, Memória

 

A apresentar alguns argumentos para a edição dos meus oito desenhos em Traço, Viagem, Insular, Memória em co-autoria com António Alves Martins e Susana Paiva. Aqui estiveram a Estela Rodrigues, a Helena Isabel Lopes (autora das fotos), a Andrea Peniche e a Helga, o Jorge Velhote e o Tó Zé que nos recebeu na Gato Vadio. Estiveram igualmente mais pessoas que não sei identificar, mas foi muito bom o debate que se seguiu.
Aqui, o António Alves Martins e a Anabela. Ele foi o responsável pela edição do livro com a chancela da sua Artes Breves Edições e também pelas fotos que compõem o Traço, Viagem, Insular Memória, juntamente com os quimigramas e cianotipias de Susana Paiva.

«Marcada para a Vida», Emelie Schepp

 

D.Quixote, 2023, Tradução de Ana Costa
Um policial norueguês a reboque do «nórdico». Dá para tudo e o seu contrário, o nada. Muito sangue, pouco sexo talvez por uma postura muito protestante e púdica da autora sabe-se lá, desaparecimentos, vinganças a rodos, uma procuradora que foi treinada em criança para assassinar tudo o que mexesse e que perdeu convenientemente a memória dessa infância, refugiados mortos em contentores... um longo bocejo. Pena minha gostar de policiais, porque às vezes surgem banhadas destas. Mas há que os ler até ao fim. Não sendo uma promessa, não façam como Marx que os lia só pela metade quando não lhe cheirava a literatura da boa. Mas gostava do poeta Heine!

quinta-feira, novembro 23, 2023

«As Benevolentes», Jonathan Littell (o artigo que faltava, escrito em 2012)

 


A leitura de As Benevolentes de Jonathan Littel não é um exercício fácil. Não só porque se lê «bem», isto é, com interesse e curiosidade, mas também porque recusa exemplarmente o entretenimento fácil. Quase 70 anos após a II Guerra Mundial, o autor fala-nos dela (e de todas as guerras, por sinal) como só Céline o fez. Suja, malcheirosa, sanguinária, impiedosa. Falar de crueldade é pouco. O pior de tudo é que seguimos a personagem de Max Aue, um SS responsável junto ao Reichfuhrer Himmler e ao também tristemente célebre Eichmann, na solução do «problema judeu». Aue não gosta do que vê nos campos de concentração e na condição dos judeus nos diversos campos que visita. Não nos iludamos: o seu repúdio é porque é mão-de-obra inútil que poderia dar frutos junto das fábricas de armamento de Speer. Poderiam ser mais bem tratados, os judeus, até porque a solução final de Hitler nunca mais poria a «raça» judaica em pé. Sinistro. Como sinistro é sabê-lo professor de Filosofia numa das melhores universidades de Berlim, admirador de Jünger e Platão e da literatura de Flaubert que o acompanha, aliás, na frente russa e no cerco de Estalinegrado. Homossexual recalcado, ama a sua irmã gémea donde surgem igualmente gémeos que são escondidos na Suíça. Assassina a mãe e o padrasto com a cobertura das mais altas individualidades SS. Mata igualmente, já no final da guerra, um aristocrata que tocava Bach numa igreja simplesmente por ser um burguês culpado da agonia do nacional-socialismo.

No entanto, o que me deixou mais apreensivo passa-se nas últimas páginas do livro: o encontro terrífico de Aue e de mais dois SS que fugiam dos russos já às portas de Berlim com um grupo de adolescentes recrutados à pressa pela Wermacht. Assassinavam tudo o que se mexia desde russos por serem invasores a alemães por fugirem. Não tinham chefes, nem moral ou sombra de piedade humana. Tudo se resumia a matar, a violar e a roubar. Aue dá consigo a pensar que estes jovens adolescentes tiveram acesso, até há pouco tempo atrás, de uma escolaridade humanista, sensível, na melhor tradição iluminista. Eram, agora, feras. Como se Aue, ele próprio, não o fosse também. Todo o livro para mim resume-se a esta cena final. Senti incómodo ao tentar saber a resposta

quinta-feira, novembro 16, 2023

«Silverview», John Le Carré

 

D. Quixote, 2021. Tradução de Maria de Fátima Carmo 
Um dos pesos-pesados da literatura policial ou, simplesmente, da literatura anglo-saxónica. Silverview tem, contudo, a particularidade de ter sido o último publicado por John le Carré, postumamente e em 2021, após a sua morte por pneumonia. Silverview é um romance escrito por quem está em paz com o mundo, mesmo que esse mundo que ele tão friamente descreveu estivesse bem longe dessa mesma paz. John le Carré foi um espião da Guerra Fria e nela se despediu na década de 60. O que nos legou foi a narrativa do cinismo dos serviços da sua majestade, da inumanidade das guerras, da preparação aturada e ao pormenor de novos conflitos, dos interesses económicos inconfessáveis das potências, dos povos sacrificados sem que isso impedisse o sono aos chefes e às elites. Lá está Gaza, a Palestina e Israel, a Jordânia, Cuba, o embuste do Iraque, a CIA, feroz e omnipotente (e omnipresente), a África repartida pelos ocidentais. Tudo isso, mas não só, é descrito em Silverview numa toada tranquila como quem espera a sua morte pessoal que é talvez pensada ao milímetro transposta para um funeral de dois capítulos, dos mais inquietantes que poderemos ler no livro, revisto e terminado por Nick Cornwell, o filho mais novo de le Carré. É ele que escreve no posfácio:

«Silverview faz uma coisa que nenhum outro livro de John le Carré fez: mostra um serviço fragmentado, repleto das suas próprias facções políticas, nem sempre amável para quem devia acarinhar, nem sempre muito eficaz e alerta, e, em última instância, já não seguro de poder justificar-se a si mesmo. Em Silverview, os espiões da Grã-Bretanha perderam, como tantos nós, a certeza quanto ao significado do país e de quem somos para nós mesmos. Tal como Karla em A Gente de Smiley, também aqui com a nossa própria facção: é a humanidade do Serviço que não está à altura da tarefa - e isso começa a pôr em causa o facto de a tarefa valer o custo.»

quarta-feira, novembro 15, 2023

«Cosmos - Uma Ontologia Materialista», Michel Onfray

 

Edições 70, 2015. Tradução de Pedro Elói Duarte
Este é o primeiro volume de uma trilogia fundada por Michel Onfray, sendo que o segundo já é o nosso conhecido «Decadência» publicado em 2019 e já comentado aqui no blogue: https://derivadaspalavras.blogspot.com/2019/12/o-estado-morreu-o-cristianismo-tambem.html . O último da trilogia não está ainda disponível em português e tem o título de «Sagesse».  Nietzschiano de esquerda (embora afastando-se de Deleuze), ateu, hedonista e vitalista, livre pensador e libertário, nem por isso Onfray deixa de ser por vezes desconcertante e provocador, mas, sem essa qualidade, poucos o leriam e o comentariam. É mais do que necessário, num mundo ocidental em clara ruptura, saber dos pressupostos filosóficos que o norteiam e que são apresentados com grande clareza ontológica. O mais interessante em Onfray, para além de uma honestidade e seriedade que podemos sentir em todas as ideias apresentadas nas perto de 500 páginas de «Cosmos», é o seu apego ao materialismo. Não um materialismo básico, daquele que nos reenvia para a mesma fé cega das igrejas e mesquitas ou do monoteísmo das religiões do livro, mas, paradoxalmente, para um materialismo primitivo, hedonista, epicurista, cosmológico. É neste sentido que nos identificamos com as propostas de Michel Onfray porque não cai na vulgaridade, embora não seja nada meigo para com o legado judaico-cristão. Legado esse que ainda é observado em múltiplas reminiscências quer na filosofia, quer na arte contemporânea, mesmo naqueles que propõem o afastamento das religiões. Não é contraditório. É, antes, complexo tudo isto e o olhar de Onfray remete-se para essas pequenas grandes manifestações em que a religiosidade é apanhada em falta, envolvendo-nos na sua negatividade com uma capa de «provocação» e «novidade». A proposta de uma ontologia materialista, sub-título de «Cosmos», não é fácil: a vida em comunidade com o cosmos, com o universo é muito mais difícil de interiorizar do que ir à missa e crer em algo impossível de provar a existência. A materialidade do universo está connosco e não só com o corpo, mas com os átomos de que tudo é feito. Para lá caminhamos (para o universo) e essa fusão final está carregada de uma ontologia que vem dos inícios dos tempos da Humanidade. Basta conhecê-la e compreendê-la, por vezes afastando-nos das pesquisas oficiais e académicas, e preparar a vida merecida de ser vivida em comunidade activa com a Natureza e com os outros. A minha proposta é conhecer esta obra com alguns trechos breves e escolhidos no desejo que seja lido na íntegra.

Sobre o tempo:
«(...) O esquecimento do tempo virgiliano é causa e consequência do niilismo da nossa época. Ignorar os ciclos da natureza, desconhecer os movimentos das estações e viver apenas no betão e no betume das cidades, no aço e no vidro, nunca ter visto um prado, um ampo, uma mata, uma floresta, uma mata de corte, uma vinha, uma pastagem, um rio é já viver no jazigo de cimento que um dia alojará um corpo que nada terá conhecido do mundo. Assim, como encontrar o nosso lugar no cosmos, na natureza, na vida, na nossa vida, se vivemos num mundo de motores poluentes, de luzes eléctricas, de ondas insidiosas, de sistemas de viodeovigilância, de ruas alcatroadas, de passeios cheios de dejectos de animais? Sem outra relação com o mundo senão a de um objecto num mundo de objectos, é impossível sair do niilismo.» (páginas 30 e 31)

Sobre  a «construção de um contratempo»:
«(...) este tempo dissociado das suas ligações ao passado e ao futuro, este tempo não dialéctico, este tempo intemporal define o tempo morto. Vivemos no tempo morto construído pelas máquinas de virtualizar o real. (...) Este tempo morto, portanto, nada mais permite que não a morte. Não é o tempo suspenso do místico pagão ou do sábio que sabe alcançar o sublime, o êxtase e o sentimento oceânico, mas a presença vazia e oca neste mundo como se fosse já um nada. Da mesma maneira que encontramos o silêncio no próprio coração da música descascada como uma cebola, encontramos a morte quando retiramos as escamas deste tempo do niilismo. No vazio mais íntimo do plano da televisão, na sinuosidade mais indetectável da fala radiofónica, no epicentro da mensagem do Twitter ou de correio electrónico, só há magia, ilusão, ficção tomada por realidade - a realidade, a única realidade. Somos sombras que vivemos num teatro de sombras. A nossa vida é geralmente a morte.» (Pág. 109)

Sobre Nietzsche:
«Nietzsche, justamente. Quem quiser sabe, agora sabe: A Vontade do Poder não é um livro de Nietzsche, mas um produto de marketing e de política antissemita e fascista posto no mercado pela sua irmã amiga do Duce e de Adolfo Hitler. Há tudo e o seu contrário neste livro volumoso confeccionado com notas de leitura, citações de autores não referenciadas, pistas de trabalho, esboços de demonstração, ensaios de pensamento, tentativas de reflexão abortadas e até, provavelmente, acrescentos da irmã do filósofo sob o pretexto de recopiar as páginas manuscritas perdidas (!) do irmão - tudo menos aquilo que define habitualmente um livro.» (pág.112)

Sobre o «vitalismo»:
«O Ocidente tem dificuldade em olhar de frente a materialidade da natureza e em encarar o que subsistiria de culturas vitalistas no planeta. O cristianismo praticou um etnocídio planetário a partir de 1492. As civilizações ameríndias do Norte, de Centro e do Sul, os índios e os Maias, os Astecas e os Olmecas, os Maias e os Toltecas, os Zapotecas e os Mixtecas, as civilizações árticas inuítes, as numerosas civilizações africanas colonizadas e depois destruídas pelos militares e missionários vindos dos países europeus, como a França, a Bélgica, a Alemanha, a Inglaterra, o islamismo, também destruidor da cultura dos países que conquistou, todos esses povos que mantêm uma relação sagrada com a natureza e não com o seu hipotético criador.
Antes das devastações efectuadas pelo Ocidente, a África foi a grande terra do sagrado na natureza e da natureza no sagrado, sem que houvesse transcendência alienante: os espíritos dos mortos viviam entre os vivos e vice-versa, tudo nesta terra (...).» (pág.125)

segunda-feira, novembro 06, 2023

«Os Palestinianos», artigo de Jean Genet em 1971 para a Revista Zoom. Em «L'Ennemi Déclaré», Gallimard

Fedayn palestiniano em treino da OLP num campo da Jordânia. 1969
Foto de Bruno Barbey (1941-2020) Magnum

Este artigo de Jean Genet (1910-1986) saíu na Revista Zoom,  no longínquo ano de 1971, tendo como base a exposição fotográfica, em Paris e sobre a Palestina, de Bruno Barbey, um fotojornalista que fez vários trabalhos para a Magnum. Vista a exposição por Genet publica-se agora parte desse artigo que fui encontrar no livro da Gallimard de 1991 - «L'Ennemi Déclaré» todo dedicado a entrevistas e pequenos artigos de jornais de Jean Genet e sob a responsabilidade de Albert Dichy. A foto exposta aqui é referida explicitamente pelo autor. Aqui fica a tradução (possível) do francês:

    «(...) Dois mil anos de humilhações permitiram compreender os comportamentos - ou os mecanismos - da Psicologia e a sua utilidade à distância cronológica. Dois mil anos passados em guetos, ou sob falsa identidade civil, os judeus foram ameaçados de extermínio. Conhecem agora as mentiras dos que foram os seus mestres. Satânica ou divina, a Igreja Católica bate-os aos pontos em hipocrisia, em chantagem evangélica e em ameaças. Era necessário esperar. A contrapartida aos vexames é o conhecimento dos actos dos poderosos. Aqui cumprem-se agora dois mil anos de diáspora, morta a infame lenda de cobardia física. Os judeus não querem nem desaparecer, nem serem ''assimilados''. A nação judaica terá o seu território. Onde? No que é ainda, talvez, colonizável. Procura-se. Talvez no Uganda, na Argentina, na Rússia, mas Herzl tem o seu projecto, o retorno à ''terra prometida''. E, segundo a História escrita por um idiota mas ensinada às crianças, se os Judeus foram expulsos pelos romanos, os árabes pagarão por isso. A Palestina, camponesa, populosa, empobrecida pela administração otomana, resistirá às infiltrações de Judeus do mundo inteiro e finalmente enganada e dominada pelos ingleses em acordo com os movimentos sionistas nascentes, será invadida. Muito antes, mas sobretudo entre 1880 e 1940, na Europa cristã ou laica, o antissemitismo desenvolver-se-á entre pequenos progroms até Dachau e Auschwitz. A Europa massacra ou ameaça os Judeus quando, simultaneamente, Judeus massacram e ameaçam os árabes com a ajuda de soldados ingleses que pretendem uma ligação ao Médio Oriente de modo a proteger a rota da Índia. Desprezo, repressão, compra usurária, confisco de terras cultiváveis. Os Judeus aterrorizam, matam os árabes. Que europeu poderá reagir a isto?: a França mata os árabes da África do Norte, os malgaches, os indochineses, os negros de África subsaariana. A Inglaterra faz precisamente o mesmo fora do seu território. A Bélgica também. A Holanda na Indonésia, a Alemanha no Togo, a Itália na Etiópia e na Tripolitânia [Líbia], a Espanha em Marrocos, Portugal, nós sabemos onde (sic). Os sionistas são culpados e a Europa inteira é culpada do sionismo. Quando a Europa está obrigada a terminar com o colonialismo, a arte clássica da substituição, Israel soube descolar-se habilmente da protecção britânica para se prover, com bastante astúcia, sob o manto protector americano.
    Os palestinianos, massacrados no seu próprio território, pegaram em armas para lá retornarem. Mas a Palestina tem agora o nome de Israel. Os palestinianos estão vivos. Encontrarão a Palestina, mas após um longo percurso que os obrigará, talvez, a conseguir provocar a revolução em todo o mundo árabe. O que não diz o feddaïn - o mártir - que se vê na imagem, é que ele sabe que não verá essa revolução cumprida, mas que a sua própria vitória é de a ter começado. Talvez ele não saiba que a sua imagem, malgrado os boicotes sionistas, vos está a ser facultada. Quanto a Israel, imaginado no final do século XIX para segurança, segundo é dito, dos Judeus tornar-se-á, bastante rapidamente, naquela parte da Ásia, a maior ofensiva e ameaça imperialista ocidental.» (páginas 89 e 90)

«Fome», Knut Hamsun

 


Cavalo de Ferro, 5ª edição, 2022. Tradução do norueguês de Liliete Martins

A fome tal como ela é. Este livro do norueguês nobelizado em 1920 e falecido na miséria em 1952 devido às suas simpatias nazis durante a II Guerra Mundial (não foi o único na Noruega, antes pelo contrário, mas disso já tratámos aqui) é de uma violência nada condizente com a chamada sociedade de abundância com que vivemos hoje no Ocidente. Mas que ela existe, existe. Anda por aí, disfarçada, e como tema ou experiência é arredada para debaixo do tapete como em qualquer sociedade de bons costumes liberais que se preze. Tenhamos a noção, ao acabar de ler este livro, que a fome descrita desta maneira crua, só pode ter sido vivida por quem a sentiu e desesperou com ela: a fome. Tanto física, como psíquica a fome apresenta-se com toda a verdade que lhe é inerente. Não há escapatória ou purgante para a fome. O desespero de quem não tem hipótese de comer naquele momento e, pior, de quem não vê qualquer perspectiva de o fazer num futuro próximo. A contagem dos cêntimos, a venda de produtos colados ao corpo, por vezes a venda do próprio corpo ou dos órgãos, a riqueza imensa de ter um bocado de pão mesmo recesso. O esvaziar lento dos valores de sociabilidade, o ódio crescente aos passantes, a todos nós chega a invectiva de quem tem fome. A fome fica, permanece, não será nunca esquecida por quem a viveu, nem que fosse por um só dia.

    «Entrei e voltei a subir. O coração batia-me violentamente. 
    Entrei furtivamente na passagem Smedgangen o mais fundo que pude chegar e parei diante de um portão deteriorado, junto de um pátio traseiro. Não se via qualquer luz em parte alguma, à minha volta estava escuro, felizmente. Pus-me a roer o osso.
    O osso não sabia a nada, mas soltava um cheiro áspero a sangue e tive de vomitar logo a seguir. Tentei de novo. se ao menos conseguisse aguentá-lo no estômago, faria de certo algum efeito; tratava-se de lograr que se mantivesse lá dentro. Mas voltei a vomitar. Zanguei-me e mordi a carne com brusquidão, arranquei um pedacinho e engoli-o violentamente. Não me serviu de nada; assim que as migalhinhas de carne tinham aquecido no estômago, lá vinham elas para cima outra vez. Cerrei os punhos com louca exasperação, desatei a chorar desamparado e roí como um possesso. Chorei, vi o osso ficar molhado e sujo pelas lágrimas, vomitei, praguejei e voltei a roer. Em voz alta amaldiçoei todos os poderes do mundo e mandei-os para o inferno.
    Silêncio. Nem uma pessoa por perto, nem uma luz, nem um ruído. Encontrava-me numa violenta agitação dos sentidos, a minha respiração era pesada e ruidosa e eu chorava pungentemente de cada vez que era forçado a vomitar aquelas migalhas de carne que talvez pudessem dar-me um pouco de alimento. Como não foi possível de todo, por mais que tentasse, arremessei o osso contra o portão, impotente de raiva; a fúria pôs-me desvairado, ameacei e gritei violentamente contra o céu, berrei o nome de Deus com voz rouca e cortante e curvei os dedos como garras...
    - Digo-te, ó divino Baal do céu, que tu não existes; e se  existisses, eu amaldiçoar-te-ia de tal modo que o teu céu seria assolado pelo fogo dos infernos. Digo-te que te ofereci os meus serviços e tu recusaste, digo-te que me afastaste de ti e que agora te viro as costas para todo o sempre, porque não te apeteceu manteres-te informado das tuas horas de visita. Digo-te que sei que vou morrer e, no entanto, ó Deus do Céu e Ápis, ouso afrontar-te com a morte nos dentes. Digo-te que prefiro ser lacaio no Inferno a homem livre nos teus domínios; digo-te que nutro o mais glorioso desprezo pelo teu ridículo Céu e que prefiro escolher para eterna morada o abismo, para onde são empurrados Satanás, Judas e o Faraó. Digo-te que o Céu está cheio de todos os idiotas, com as cabeças mais boçais deste reino terreno, e de indigentes espirituais, e digo-te que encheste o Céu com todas as gordas meretrizes daqui de baixo, quem na hora da sua morte, ajoelharam perante ti por cobardia. Digo-te que tens usado de violência contra mim, mas não sabes ó Nulidade do saber absoluto, que jamais me curvarei na adversidade. (...)» (páginas 133 e 134)

Este continuum de impropérios ao criador (não acaba aqui) lembra em grande parte Nietzsche o que não será, de todo, surpreendente sendo o autor quem foi. Mas todo o livro é uma descrição verdadeiramente impressionante sobre a fome que anda sempre junto com a pobreza. À fome, às alucinações provocadas por ela, ao delírio dos sonhos e de sonos mal dormidos, à agressividade latente de quem jejua por falta de dinheiro, juntam-se os lugares desprovidos de aquecimento, a humidade e o frio e vento cortantes como facas. As feridas que não saram por fraqueza geral do corpo já não imune. Mais grave ainda é a indiferença das pessoas. Se a vida de um jovem escritor em princípio de carreira, nos finais do século XIX, é descrita por Knut Hamsun como um ataque elaborado aos nossos sentidos, conseguiu-o plenamente. Cumpriu o seu papel como objecto literário. E isso importa.

quinta-feira, novembro 02, 2023

«Cáustico Lunar, seguido de Ghostkeeper», de Malcolm Lowry


Sistema Solar, 2019. Tradução e apresentação de Aníbal Fernandes
Sobre o período mais decadente de Lowry já se falou aqui e a maioria de vós já o conhece. Este «Cáustico Lunar» tem, contudo, uma particularidade que devemos valorizar: o tratamento psiquiátrico que era dado aos chamados «marginais» ou simplesmente incómodos para a sociedade do século XX. «Cáustico Lunar» descreve-nos uma descida a um inferno seráfico, tão hipócrita como violento nos seus pressupostos, incutidos sempre por «pessoas de bem» e a coberto da ciência médica que internavam homens e mulheres em instituições criadas inteiramente para os aprisionar e afastar dos «normais». Doentes ou não, pouco importava desde que a família pagasse o internamento ou que os juízes da lei obrigassem à exclusão social e à tortura dos «doidos». Foi assim com Lowry que tornou «Cáustico Lunar» um título incontornável sobre a psiquiatria prisional e que retrata a sua experiência como alcoólico que tenta, em fim de ciclo e em desespero, a sua própria recuperação; que não consegue, aliás, e, segundo Aníbal Fernandes que mais uma vez faz acompanhar um livro de Lowry numa excelente apresentação do autor, resgata essa prisão com uma bebedeira de 48 horas seguidas. Mas porquê este título «Cáustico Lunar» que sempre me activou a curiosidade sem que eu conseguisse encontrar uma explicação convincente? Aproveito a apresentação de Aníbal Fernandes que aí nos esclarece o título deste conto a todos os títulos inesquecível:

«Todas as línguas têm destas coisas. Por isso um alquimista -  alquimista que andava aos sais - misturou o ácido e a base, precipitou uma maciez branca que assentava em flocos no fundo da proveta, e daí nasceu a tentação de um nome acasalado com o céu e terra, sublime, e daí aconteceu um sal que, sossegado na secura da linguagem técnica com a designação insípida e química de «nitrato de prata», soube fabricar um nimbo, soprar-se ao mesmo tempo gelado e quente, obrigando o alquimista a baptizá-lo de:
Cáustico Lunar.
(Neste passo o tradutor hesita, com a bic parada no ar.)
Pois não quis o autor Lowry pedir ao cáustico lunar o nitrato nem a prata, antes o sentido perverso que lá desencantou e soube trazer ao de cima, e vingá-lo gloriosamente de uma injusta subalternidade. Se é nitrato e mancha a pele de negro, diz à letra que é cáustico e lunar; prevê um acto corrosivo e a matéria causticada com assombrações de lua, com lunáticos; quer isto dizer que será, por metáfora, os do manicómio.
Há, assim, os corrosivos solares que ardem, queimam e destroem<, mas este outro - lunar - que procede com a lua, em silêncio e com luz fria, mesmo quando inspira fúria. Os lunáticos sofrem com um cáustico de lua.» (páginas 5 e 6 da apresentação de Aníbal Fernandes).

«Ghostkeeper» é outra coisa. Mas está bem acompanhado com «Cáustico Lunar», visto que, coisa comum aos dois contos, trata de impossibilidades; de travagens no processo criativo da escrita que muitos deveriam obrigatoriamente ler, principalmente os que se abalançam a fazê-lo, mesmo que para isso lhes faltem atributos. Leiam este extracto que escolhi de «Ghostkeeper»:

«Agarra num papel, num lápis; e, tomado pelo frenesi que o inspira, senta-se e escreve. Tinha de pôr toda a subectividade de lado e contar a história exactamente como acontecera; ou antes, exactamente como ainda não tinha contecido até a fim. É porém estranho o que sucede quando tenta escrevê-la. A falta de material costumava deixá-lo aborrecido e doente, mas agora tem-no numa quantidade muito superior à necessária. (Talvez haja aqui uma parte inicial em diálogo, excitado e entusiasmado, com Mary).
Mas as coisas não são bem assim. Todos os jornalistas trabalham a partir de uma base que é uma pletora de materiais, e fazem aí a sua selecção; durante muito tempo ele próprio se disciplinou para passar ao papel as suas quinhentas palavras diárias. Além disso, os contistas que mais admirava, o O'Flaherty dos primeiros tempos, o Tchekov, o Sodeborg, o Jensen, o Pontoppidan, o irlandês James Stern, O Hermann Bang, o Flaubert dos textos breves, o Maugham, O Pieskov, o Kataev, até o Faulkner de uma ou duas histórias, o James Thurber, O Bunin, o Saroyan, o Hoffmansthall, o autor do livro de Job que só Deus sabe quem é, todos estes escritores visavam a economia de palavras, mesmo que às vezes a não alcançassem. (...)» (páginas 138, 139).

domingo, outubro 29, 2023

"Tchétchénie, An III", Jonathan Littell

 

Gallimard, Folio documents, 2009
Jonathan Littell não é propriamente conhecido por ser um repórter de guerra, mas é sem dúvida um dos melhores escritores contemporâneos desde o seu "As Benevolentes" um dos livros mais crus sobre a guerra e os seus protagonistas, ocupantes e ocupados, algozes e vítimas, que alguma vez li. Não exagero. Reparei neste livrinho em Agosto e, por impulso, comprei-o num alfarrabista. Nem sequer sabia que existia, mas compreendi desde logo que a literatura escrita por Littell não é seguida por acaso. Ele sabe do que fala, isto é, do horror da guerra e das redes que a suportam. E são muitas: desde a corrupção gigantesca que lhe é associada a todos os níveis, até aos "desaparecimentos" selectivos, à tortura institucionalizada, às vinganças, aos raptos, à morte. Aqui o caso descrito, com alguma loucura dos repórteres, é a Chéchenia em guerra e a normalização e reconstrução que foi imposta por Kadyrov filho, talvez bem pior que a guerra de 2006 e 2009. Por outro lado, há questões que são pertinentes e levantadas por Littell fora da violência de Estado, mas ligada e este: trata-se da islamização forçada das instituições e particularmente sobre as mulheres nas repúblicas ex-soviéticas do Cáucaso. Este tipo de submissão é tanto mais grave quanto estas mulheres estavam há gerações afastadas de qualquer tipo de charia na antiga URSS. Mesmo que esse tipo de normalidade seja uma forma de estrangular o islamismo radical da jihad e aceitada pela Rússia de Putin. Trata-se de um jogo perigoso. Mas desses jogos estamos nós esclarecidos há muito. Desde o apoio de Bush e dos americanos a Bin Laden. E, por mais cínico que isso seja, eles sabem que nós sabemos. O povo do Cáucaso está claramente entalado entre duas escolhas más: os déspotas corruptos por um lado e o radicalismo islâmico do outro. Resta a resistência, sabendo que o preço dessa escolha é altíssimo. 

quinta-feira, outubro 26, 2023

«Europa Medieval», Chris Wickham

 

Edições 70, 2019, Tradução de Marian Toldy e Teresa Toldy
Sendo uma história generalista da Europa, não deixa de ser um livro muito interessante e até certo ponto imprescindível se nos ativermos às questões novas que nos coloca. Chris Wickham, professor medievalista em Oxford, não entra numa ruptura completa com a História do século XX, citando várias vezes os trabalhos fundamentais de Marc Bloch, Le Roy Ladurie ou Georges Duby para só falar de alguns referidos por ele. A sua proposta é outra: a partir desses dados e das fontes utilizadas, portanto sérias, ele parte para outras conclusões que não deixam de nos surpreender pela lógica dos grandes movimentos estruturais da História da Europa. Não sendo taxativo nas afirmações, questiona, recompõe, critica, inova no sentido de se basear em novas fontes e na arqueologia. A interpretação que faz ao nível da cultura e das mentalidades medievais é onde reside o seu principal foco científico, mesmo que essa transmissão seja essencialmente baseada nos escritos das elites. 

Wickham provoca o leitor de uma forma responsável avançando com questões que nos incomodam pela novidade e mesmo pela sua verosimilhança. Só darei poucos exemplos, mas resume-se alguns deles: «Se o Império Romano não tivesse caído? Se o Império, que não caiu do lado oriental até ao século XV, tivesse igualmente permanecido com as suas instituições reformadas e pequenas mudanças ou retraimentos na Europa Ocidental cimentando-se no direito romano e canónico?»; «E se a tomada (e destruição) de Constantinopla do Império Otomano na Quarta Cruzada não foi um retrocesso grave no desenvolvimento global da Europa Ocidental?»; «E se a tributação fiscal e centralização do poder no Império Bizantino, juntando-se a um comércio de longo curso fosse adoptado pelos reinos belicosos da Europa Ocidental o protocapitalismo não teria chegado mais cedo obrigando a uma necessária revolução industrial, mesmo que incipiente?»; «E se o chamado desenvolvimento económico do século XII na Europa Ocidental não o foi assim tanto, tendo predominado muito mais as trocas directas entre as pequenas cidades e o campo, muito mais dinâmico que o comércio externo das ligas hanseáticas, das feiras de Champanhe ou das cidades italianas, sobrevalorizadas pelos historiadores até agora?»; «E, retirando o cinismo inerente à hipótese, se a Peste Negra de 1348-50 fosse antes um alívio face ao aumento demográfico exponencial do século XII e XIII, sem que houvesse tecnologias para aumentar a produção agrícola ou a desflorestação que teve necessariamente de se pôr cobro devido ao esgotamento de recursos disponíveis?»; e continua as suas «provocações» sendo que há uma delas que não posso deixar de citar. Trata-se de muitas vezes olharmos para as cidades como sendo um espaço de liberdade para os camponeses e artesãos face à extrema exploração tributária dos senhores da terra nos campos. Ora se olharmos para as leis municipais veremos uma elite burguesa muito associada à aristocracia terratenente com leis e práticas dominantes nada simpáticas aos migrantes internos sujeitos a leis brutais. A circulação de moeda, principalmente de prata, ao contrário do Império Bizantino que a cunhava em ouro e de circulação abundante, continuou a perpetuar a troca directa em detrimento do propalado «desenvolvimento» deste século.

O interesse deste livro tem a ver, igualmente, com a visão global que temos de uma Europa Ocidental que permaneceu tempo demais com instituições e economias cuja necessária transformação não acompanhou estados e regiões que seriam muito mais dinâmicos durante a Alta e Baixa Idade Média, como a China, a Índia ou o próprio Império Bizantino este último muito mais sólido cultural, política e economicamente falando. A perspectiva eurocêntrica é assim abandonada e não deixa de ser curiosa a posição de Chris Wickham sobre a expansão do século XVI (data limite do estudo) iniciada por portugueses e espanhóis cuja contribuição para o desenvolvimento do capitalismo comercial foi claramente sobrevalorizada, ajudando mais à riqueza dos seus próprios reis o que para o crescimento mundial. Ou seja, esse desenvolvimento já estava em marcha desde há um ou dois séculos antes da expansão marítima ibérica que fez baixar os preços dos produtos orientais transaccionados desde há muito.

Essa visão global da História da Europa Ocidental na Idade Média é dada pelo autor pela descrição detalhada sobre os pequenos ou grande estados que a formavam, com fronteiras sistematicamente elásticas consoante as guerras permanentes que aconteciam desde os impérios de Rus, Kiev e Novgorod, pela junção e separação dos estados balcânicos, da Bulgária, da Boémia, do Sacro Império Romano, do Reino da Lituânia e Polónia ou do Francês e Inglês sempre em conflito. Também Portugal e Castela não são esquecidos, comparando, com alguma ironia, a nossa relação com o poderoso vizinho com a Escócia e Irlanda com a Inglaterra. 

quarta-feira, outubro 25, 2023

Artes Breves: Traço Viagem Insular Memória


AB: Traço Viagem Insular Memória: o quinto título do p...:   Algumas palavras (iniciais), escritas no fim de um processo de produção Desde o seu início,  o projecto de livro Traço Viagem Insular ...

terça-feira, outubro 24, 2023

«Le Silence de la mer», Vercors

 

Albin Michel, Le Livre de Poche, 1951
Pacifista em 1914, Jean Bruller deixa de ser somente ilustrador em 1940 e torna-se escritor na resistência francesa contra os nazis com o nome de Vercors. É evidente que ser pacifista perante Hitler não teria sentido e ele compreende-o rapidamente não hesitando em juntar-se activamente à luta contra os alemães, abandonando as suas anteriores convicções. Por isso mesmo, este livro de contos editado pela igualmente clandestina Éditions de Minuit tem um cunho político muito particular.

Falo por mim, mas não achei particularmente entusiasmante a leitura dos contos que compõem o livro, mas o conto homónimo que lhe dá o título, Le Silence de la mer é um caso diferente. Quando foi publicado nos finais de 1941 houve alguns equívocos relacionados com a sua publicação, oriundos da própria resistência, que se perguntava sobre a identidade do autor, isto é, de Vercors que não poderia usar o seu nome, obviamente, até porque o seu trabalho político era vigiado de perto pela Gestapo. A trama passa-se numa casa de uma pequena vila onde vive um francês e a sua sobrinha e que é requisitada por um oficial alemão. Militar esse que reconhece a «superioridade» da cultura francesa e que, sendo compositor na vida civil, a conhece bem. Tenta, então, estabelecer um diálogo com as duas personagens sobre a possibilidade real de juntar as duas culturas, a alemã e a francesa, como um projecto plausível que o leva, embora levemente, a criticar toda e qualquer violência para com os ocupados. Está implícita uma descolagem ao plano paranóico dos nazis por parte do oficial alemão. A resposta que tem, contudo, é um silêncio determinado pelo tio e sobrinha franceses. Quando o oficial parte é para a frente russa. Morte certa, portanto. Assim acaba o conto.

A questão que se levanta é universal, ou seja, o de saber qual deverá ser a intensidade da resistência perante um ocupante que utiliza a violência como razão última para a guerra e genocídio de povos. E essa universalidade é colocada, infelizmente e ainda hoje, no planeta em convulsão. Vercors conheceu essa violência de bem perto, visto que viu muitos companheiros serem fuzilados como Politzer ou Decour e outros que lutaram nos maquis abandonando a clandestinidade das cidades como Pierre de Lescure, seu amigo e que foi substituído na resistência literária e panfletária por Paul Éluard nas Éditions de Minuit. O que sobressai nas críticas que então foram arremessadas a Vercors, em plena II guerra, foi exactamente o factor «silêncio». Segundo alguns, quem poderia defender o silêncio como arma contra o ocupante só poderia ser um colaboracionista! Ora, se analisarmos bem o papel da resistência francesa sabemos que muitos dos escritores resistentes só o foram de facto a partir de finais de 1943 e em 1944, quando a derrota alemã já era inevitável. Antes, muitos deles mantiveram-se, ironicamente, em silêncio que a não existir acção era quase confundida com neutralidade, essa sim criminosa! É isto que afirma Yves Beigbeder no posfácio de Silence de la mer que ataca um deles, Arthur Koestler, que no cómodo exílio de Londres tem a ousadia de «demonstrar» o colaboracionismo do conto de Vercors defendendo que o silêncio não seria a táctica a utilizar mesmo que o opositor fosse um oficial alemão antinazi. 

Não deixa de ser impressionante, ao ler o conto de Vercors, como se pode inverter toda uma interpretação (explicada nesta edição por um prefácio do autor bem esclarecedor!) e a mensagem constante em Silence de la mer. Mas isso pouco importa, visto que os tempos eram outros, bem difíceis onde a vida e a morte caminhavam juntas não se sabendo se se estaria vivo no dia seguinte. O que importa é que estamos perante um conto notável, seguido de outro, Le Songe, com laivos claramente surrealistas, embora tenhamos por certo que já se denunciava o horror dos campos de concentração e das marchas da morte no final da guerra. Afinal, sabia-se.

Existe uma publicação em português na Editorial Presença datado de 1986 e reeditado este ano. O site da editora não informa da tradução. Também existe um filme homónimo de Jean-Pierre Melville, datado de 1949.

sábado, outubro 21, 2023

As acções dos activistas climáticos são necessárias e urgentes

 

Lisboa, Maio de 2019, 2ª greve climática estudantil
Não subestimem as acções climáticas que se propagam cada vez mais na Europa e particularmente em Portugal. Quase sempre muito jovens, estudantes, portadores de uma cultura própria, são determinados a levar até ao fim os objectivos a que se propõem, mesmo com consequências legais graves para a sua vida futura. Levem-nos a sério, porque nada têm a perder. Olham para o lado e para cima, neste último caso para as instituições que nos governam e é com um grande cansaço e revolta que ouvem as suas palavras vazias. Se reparam em nós é para nos acusarem de inércia e desprezo pelo planeta e pelo ambiente. No fundo deixámos-lhes «isto». E não é agradável o que deixámos, mesmo que desde os anos 80, no início dos movimentos ecologistas, tenhamos avisado o que eles agora denunciam. Nessa altura também ouvimos o que eles ouvem agora, mas numa dimensão nunca vista hoje. Não os subestimem.

A repressão sobre eles é completamente desproporcionada por parte das forças policiais e da população. Vimo-los a serem barrados no direito de expressão pública, a serem presos e identificados, a serem denunciados por directores e reitores de instituições, a serem enxovalhados, agredidos e arrastados pelos cabelos na via pública quer por polícia, quer por público motorizado. 

Pior são os comentadores políticos. No dia 11 de Outubro, no Público, um juiz que é presidente de uma Associação Sindical dos Juízes Portugueses dá-se ao luxo de editar um artigo de «opinião» que não é mais do que um guia para a acusação destes jovens activistas.  O juiz-presidente-sindicalista afirma, sem qualquer problema de consciência sobre o que é a realidade, que as ações dos jovens que lutam por uma política ambiental que nos salve de um apocalipse anunciado, apresentam semelhanças com «atentados das organizações terroristas»; em ambos os casos, ou seja, das acções dos militantes ambientalistas e das organizações terroristas (ele não concretiza quais) tratam-se «de grupos organizados de pessoas unidas por uma ideologia comum, que planeiam e executam acções subversivas ilegais...», embora, mais à frente, declare que não é comparável uma «miúda partir a montra de um edifício» com um «bombista suicida»! Arrepende-se logo: «Mas o princípio é exactamente o mesmo...». Depois arrepende-se novamente e diz que os movimentos por um planeta melhor devem ser acarinhados e mete-se onde não deve que é a defesa de um mundo possível, ambientalmente são, mas «com aviões, automóveis e fábricas», coisas que os jovens querem erradicar da face da terra! Terra essa já em convulsão, mas o juiz-presidente-sindicalista quer a chuva no nabal e o sol na eira. Deixem a solução para a Ciência, diz ele.

O sr. juiz avança, lesto, após algumas considerações sobre esta coisa de pintar ministros de verde, a lista de crimes a que os jovens estão sujeitos não vá a polícia esquecer-se de os nomear nos relatórios. Cito: «Pintar montras e pintar fachadas é crime de dano. Interromper a circulação em estradas é crime de atentado à segurança de transporte rodoviário. Atirar tinta para cima de um ministro (sic) em exercício de funções é crime de ofensa à integridade física qualificada. Fundar, dirigir, ou pertencer a grupos ou organizações que se dediquem à criminalidade (sic) é crime de associação criminosa. Estes crimes são puníveis com penas de prisão elevadas (sic) e quem os pratica arrisca-se a consequências sérias.» Não subestimem igualmente o poder repressor dos tribunais, da polícia e dos comentadores como este juiz. Não se deixem levar pelas piadas jocosas dos ministros pintados de verde. Ninguém sabe das ordens dadas ao MAI por eles no segredo dos deuses. Mas essencialmente não deixem de levar a sério o activismo militante dos jovens ambientalistas pelo clima. Eles têm razão. E esperemos todos que levem a bom termo a denúncia das empresas com mãos sujas e de políticos que empurram os problemas para as calendas. Mesmo pintados de verde.

sexta-feira, outubro 20, 2023

«amarga ironia esta de um povo que está neste continente apenas há 235 anos recusar-se a reconhecer aqueles que vivem nesta terra há mais de 60 mil anos»

 

Mais uma derrota do povo aborígene australiano hoje reduzido a 3,8% da população com perto de um milhão de pessoas, muitas delas vivendo em condições de pobreza de que não conseguem sair devido às políticas de discriminação social e de racismo oficiais. Ao contrário da Nova Zelândia e do Canadá que já reconhecem na Constituição os direitos dos povos autóctones (tarde piaram!), a aposta do primeiro-ministro Albanese na Austrália era criar um conselho consultivo dos Primeiros Povos (isso da deliberação ainda não é para os «primitivos»!) denominado A Voz. Em referendo os australianos foram a votos e em meados de Outubro de 2023 disseram «não». Nem deliberativo ou consultivo - nada! Torna-se evidente que um conselho daquele tipo nada mudaria, mas era um primeiro passo para a necessária, quanto desejada, forma de verem o povo aborígene como mereceria ser visto: portador de uma cultura ancestral, ligada fortemente à Natureza, que nos daria lições de vida a uma civilização no seu estertor - a nossa. Como disse um dos principais representantes dos aborígenes após a vitória do «não»: «amarga ironia esta de um povo que está neste continente apenas há 235 anos recusar-se a reconhecer aqueles que vivem nesta terra há mais de 60 mil anos».

Mas há um caso que se passou comigo que ilustra bem a violência latente neste «não» ao referendo para, ao menos, se considerar a existência do povo aborígene australiano, primeiro passo para reconhecer a infindável lista de horrores por que passou este povo levado à escravatura e a todo o tipo de torturas psicológicas e físicas. Encontrei-me em Junho deste ano, por motivos familiares, num almoço que juntava toda uma diáspora dos seus membros. Durante o almoço, e à minha frente, estava presente um casal australiano. Ela de origem irlandesa (há seis gerações na Austrália) e ele indiano de Goa. Ambos falavam inglês e encontravam-se em Portugal, percorrendo em turismo a Europa. Em junho, preparava-se então o referendo. Reproduzo o diálogo que ia dando para o torto, não fosse ainda a prevalência do que se chama a boa convivência familiar:

- It's a madness, the fucking referendum! - afirmou algo revoltado o australiano goês (a partir de agora traduzo) 

- O que é que é loucura? Não entendo, desculpe - afirmei eu honestamente, visto que não sabia nada do referendo.

- Como é possível que uma minoria da população possa ser ouvida sobre as leis de uma grande maioria. Os aborígenes não têm esse direito. Que façam partidos e concorram às legislativas!

- Desculpe, se é uma minoria e concorrerem às legislativas está à espera de uma maioria absoluta para governarem o que é seu por direito histórico?

- Que direito histórico? Se eles eles se portarem bem, se seguirem as regras da sociedade e cumprirem as leis, deixando o crime, a prostituição, o alcoolismo, então integram-se e a conversa é outra! Assim, como estão, it's a madness!

De repente reparei que estava a falar com uma irlandesa de seis gerações na Austrália (claro que os seus antepassados estavam livres de todos os crimes imputados na Irlanda, estava-se mesmo a ver!) e com um goês de origem indiana que, por casamento, estava no país e que tinha idade para ter conhecido a colonização portuguesa (também não entendia por que razão não falaria português tendo a minha idade, caraças!). Eram eles que se achavam no direito de ditar leis aos povos aborígenes e a ditarem as regras civilizacionais que acharam por bem imporem, desde o rapto de crianças para conventos católicos, os massacres em massa, as violações ou a escravatura generalizada como mostra a fotografia. É uma madness, sim. Acabei assim a conversa, deixando-o a ruminar alguma coisa contra mim que, evidentemente, não estava a par da realidade australiana! Quando lhe dei boleia no final, pediu-me para não ir pela autoestrada, antes por uma estrada nacional. Assim foi. Para o degelo se dar, ele entendeu dirigir-me uma palavra simpática sobre a paisagem de Portugal. Olhando para a mancha de eucaliptos que bordeava a estrada ele atirou-me com um «It's like Australia!». Não lhe dirigi mais a palavra.