segunda-feira, junho 27, 2022

Flauta de Luz, nº9. A minha colaboração num número de excelente qualidade

 




Gosto de ver os meus desenhos para o artigo de José Janela, assim, como se tivesse num café a folhear uma revista que pela equipa de Júlio Henriques nos chega às mãos. Tal como no Jornal Mapa 34, ficam toscos, com luz difusa, cortados... mas que fiquei feliz, sim fiquei.

«História da Menina Perdida», Vol.IV, Elena Ferrante

 


E é isto: a saga chegou ao fim, com alguma pena minha que não me importava nada que continuasse. Mesmo que a parte final do livro se arraste um pouco em descrições psicológicas de que já tínhamos pressentido e (re)conhecido em volumes anteriores. Mas o mais interessante deste volume é não só a separação, muitas delas bem violentas, das famílias daquele bairro velho de Nápoles, mas igualmente a «separação» do povo italiano como um todo. As grandes famílias ligadas à intelligensia política caíram como um castelo de cartas que julgariam sólido na sua base. A corrupção era o mote, não só dos políticos, mas de juízes, procuradores, polícias, intelectuais. Tudo arrasava o Estado, servido logo ao pequeno-almoço para ser esbulhado. Mas também a esquerda caiu enredada na sua teia, dividida, arrependida, subserviente ao novo poder dos «novos» partidos que afundam ainda hoje a Itália. A violência, essa, continua sobre novas realidades, com leis e penas incompreensivelmente gravosas. A classe operária negociou a «pace» através de um reformismo que julgava ser a única saída. Não o foi. Não será nunca.

«Eram anos complicados. A ordem do mundo em que  nós crescêramos estava a dissolver-se. As velhas competências devidas a um longo estudo e à ciência da linha política certa pareciam, de repente, um modo insensato de passar o tempo. Anárquico, marxista, gramsciano, comunista, leninista, trotsquista, maoista, operaísta, estavam rapidamente a tornar-se rótulos retrógrados, ou pior, um estigma de brutalidade. A exploração do homem pelo homem e a lógica do lucro máximo, que antes eram consideradas uma abominação. tinham voltado a ser, por toda a parte, as bases da liberdade e da democracia.»(pág.376). 

E entretanto, toda a gente ia parar à prisão, cujas portas se abriam à repressão brutal e à discricionariedade da polícia e da «justiça». Bastava ser amigo de um «terrorista» e passava dois anos na cadeia para averiguações: Nadia, a «filha-família» de intelectuais de renome de Itália e florentinos (nos dois sentidos) e que tinha entrado nas Brigadas Vermelhas, cujo pai influente tinha sido apanhado também ele pelas teias da corrupção, denuncia Pasqualle das BV por crimes que fez e que não fez, a troco de uma redução substancial da pena. A partir daí lista nomes já por vingança, por invejas ou para pagar uma afronta. Denuncia outros amigos como Enzo e Antonio Pannucci que nada tinham a ver com as BV ou a Prima Línea. Os irmãos camorristas Sollara são mortos em frente à Catedral sem que ninguém visse quem foi e embora tenham dito que não tinham passa-montanhas, a heroína corroía os jardins de Nápoles, a filha de Lila foi raptada pelos Solara e passados anos nada se sabia dela, a carreira literária de Lenú tem outro alento e a vida continua, violenta, brutal, tanto no ódio, como no amor. No fim Elena Ferrante dá-nos conta da metáfora que liga a Praça Carbonaria de Nápoles com toda a Itália. No meio do lixo, de animais mortos de cadáveres insepultos, de legumes podres, lutam jovens até à morte e pela navalha e pela honra. Morre-se um pouco sem saber o porquê. 

Nada disto, todavia, me tenta saber quem é de facto Elena Ferrante. Não a procuro na net. Não me interessa nada. Que é uma boa escritora, é-o sem dúvida.

«A Eliminação», de Rithy Panh ou a utopia sangrenta dos khmers vermelhos

«Se és um libertário, se queres ser livre, porque é que não morres ao nascer?» Slogan Khmer, 1977

Há imbecis em todo o lado. Principalmente em intelectuais que escrevem para os jornais a troco de algumas prebendas sejam elas em dinheiro ou notoriedade no «Le Monde» como Alain Badiou, Edward Herman ou Chomsky para citar os mais conhecidos. Ou pior: por cumplicidade ideológica. Só que esta última pouco tem a ver com o comunismo ou coisa que o valha. Só que este slogan, repetido e expandido por muitos outros slogans completamente dementes tiveram consequências num povo inteiro, o khmer, ou melhor o cambojano, que entre 1975 e 1979, fizeram padecer em execuções sumárias ou à fome programada 1,7 milhões de pessoas. O seu objectivo, o objectivo do Angkar ou do colectivo 807 e principalmente do Camarada número 1, ou Pol Pot, era construir um 4 anos apenas uma pátria (ah, o nacionalismo!) de operários e camponeses. Evacuaram totalmente Phnom Penh, executaram os intelectuais, estudantes membros das profissões liberais, deslocaram em massa populações inteiras para as aldeias, criaram uma divisão entre «povo antigo» os da montanha e das florestas que conheciam um tipo muito particular de «comunismo primitivo» e o «povo novo» que em princípio era identificado como sendo os que tinham a influência da cidade, do pensamento burguês, da influência francesa ou americana. Quando os Khmers derrubaram o antigo regime corrupto foram recebidos com grande expectativa, embora se notasse já um autoritarismo singular que não permitia o contacto físico dos guerrilheiros com o povo que o vinha saudar. A partir daí, o Angkar (o comité central do PCK) foi dono e senhor dos destinos do chamado Kampuchea Democrático.

O autor é Rithy Panh, um cineasta premiado em Cannes, em 2013, com Un Certain Regard, mas foi com S21- A Máquina da Morte dos Kkmers Vermelhos, de 2003 que ele atingiu uma certa notoriedade que o levou à denúncia do verdadeiro genocídio do povo khmer. Para fazer desaparecer !/4 da sua população só com um método igual aos genocidas nazis. E é assim que Panh se senta, na prisão do Tribunal Penal Internacional (que até certo ponto foi vergonhoso) para entrevistar o Camarada Duch. Tenho de explicar: durante 4 anos do regime Khmer houve carrascos e o carrasco-mor era Duch. Panh (na ocasião, umjovem de 16 anos) passou 4 anos em várias situações de humilhações e violências indescritíveis: viu suicidar-se o pai, morrer de exaustão a mãe, as suas irmãs, um irmão e 3 sobrinhos de 3, 5 e 7 anos de idade através da fome. Viu morrer amigos em campos de arrozais. Nada que não saibamos de descrições similares noutras latitudes, infelizmente. Mas este livro tem um condão interessante: eu vi o seu primeiro filme há uns anos creio que na RTP2 e vi o camarada Duch que se ria bastante durante a entrevista, que assumia tudo o que se passava no campo de extermínio S21, mas que não viu nada, não ouviu os gritos dos supliciados, que cumpria ordens. Contudo, é diferente de Eichmann. Duch não é um burocrata. Duch era um assassino em nome da ideologia. Era a ideologia, melhor, os slogans que o comandavam ao ponto de enviar para execução familiares seus. Duch ri-se muito e exalta-se somente quando Panh lhe pergunta se a sua recém conversão ao cristianismo evangélico o vai salvar! A resposta é linear e mórbida: «Deus já me perdoou e, Sr, Panh, não brinque com a religião!» É evidente, para mim, que me passou ao lado estes pormenores no filme, onde há sempre elementos distractores, mas o livro, embora não estando muito bem escrito, mesmo com a ajuda de Cristophe Bataille, ajuda-nos a fixar momentos inesquecíveis e relermos pormenores que dantes não reparámos em imagens.
Uns dos momentos que mais me inquietou neste livro foi o facto de um único ténue protesto que nos foi dado a conhecer frente aos Khmers (com a devida retaliação a quem os fez) e devido à fome generalizada foi o recurso ao exemplo de Cuba e da China, países comunistas «onde não se passava fome e havia cuidados de saúde» e uma outra foi o facto de os torturados antes de serem executados terem de assinar a sua confissão que estavam ao serviço do KGB, da CIA ou do Vietname que o invadiu o Camboja em 1980, remetendo os khmers para a selva. Pol Pot morreu em 1985, em paz, numa aldeia do norte, em pleno «comunismo primitivo».
Quanto à ONU de Kurt Waldeim, um cretino que andou pelos Balcãs a exterminar guerrilheiros junto com o exército nazi, esse, assinou um relatório apresentado pelos americanos que afirmava que entre 1978 e 79 não teria havido uma única execução! As organizações independentes afirmam categoricamente que foi um ano terrível onde se poderiam contar mais de 500 mil vítimas das 1,7 milhões que o «regime» produziu! O Tribunal Penal Internacional assinou de cruz e o Camarada Duch e outros tiveram uma pena considerada leve. 

Publicação da Antígona, Janeiro de 2022

domingo, junho 19, 2022

«A Possibilidade de uma ilha», de Michel Houellebecq

 


Este livro foi-me antipático no início. Nessa ocasião afastei-me dele, digamos, com o ruído possível para um facebook que está na sua grande maioria de costas voltadas para os livros. Voltei a ele desde o início e fui reparando nos seus inúmeros alter ego que constroem a narrativa. Parece-me que o que me levou à expulsão imediata do livro de Houellebecq foi a personagem inicial de um Daniel «humorista» que procurava o seu primeiro milhão de euros através de piadas sobre as palestinianas, sobre as mulheres, os homossexuais, sobre o suicídio do seu próprio filho ou a tristíssima frase «lambe-me a faixa de Gaza». Mas conseguiu o seu milhão depois multiplicado por muitos, mais tarde quando entra no cinema porno de choque e ainda por cima com laivos políticos contra árabes, negros, jovens e mulheres. Às vezes não aguentamos, o leitor ainda não é um tipo anódino, inócuo aos sentimentos (a sua aniquilação é um objetivo do neoliberalismo autoritário). 
Provavelmente, fui impulsivo na minha reação às primeiras páginas. Mas um bom livro provoca-nos. Houellebecq pode não ser nada disso. Pode não ser (não é) um Céline ou um Pound. Politicamente não é um maurrasiano, nem lepenista. Não é decididamente um fascista. Odeia a guerra. Compreendi melhor o que pretende (e já não é o primeiro livro que leio dele): é provável que exija exasperadamente um regresso à humanidade (não ao humanismo!) ao que ela tem de mais positivo nas relações sociais pré-industriais. O escritor é contraditório? Sim, também é. Mas e então? A sua vida, aquela que ele expõe publicamente, é constituída por um consumo obsessivo por produtos exclusivamente agro-industriais? Pela mesma marca de bacon ou de presunto e vinho da mesma marca; pelas mesmas parkas verdes e calças castanhas? Por botas Timberland? Que temos nós com isso? Vista o que quiser, mas este «A possibilidade de uma ilha» é um livro de amor. Nunca verdadeiramente atingido, mas de procura incessante de amor e de liberdade. Não vos conto mais, porque lhe devo isso devido à minha primeira reacção. Seria, talvez, mais honesto colocar aqui trechos que ilustrassem o que digo aqui e em contradição com a minha primeira crítica a Michel Houellebecq. Mas há uma que não posso deixar de vos lembrar: a procura da imortalidade e o seu êxito (o tema central do livro num planeta destruído por guerras inter-humanas) por induções genéticas pode ser uma possibilidade não tão longínqua como isso. Pouco importa, nem valeria a pena introduzir essa questão já que o livro o faz com propriedade e com bases científicas plausíveis, mas o corpo procura o desejo sexual. O fim da vida, mesmo com a imortalidade ali mesmo e disponível para os mais ricos vem quando já procuramos «desejar o desejo». Aí, já morremos, sem que se saiba bem como. Um livro que vos recomendo, mesmo em contraciclo. 

terça-feira, junho 14, 2022

«História de quem vai e de quem fica», Elena Ferrante, vol.III

 

«Na fábrica - percebera logo isso - a grande fadiga fazia com que as pessoas desejassem foder, mas não com a mulher ou com o maridos nas suas casas, onde regressavam extenuadas e sem desejo, mas ali, no trabalho, de manhã, ou de tarde. Os homens davam apalpões sempre que tiham oportunidade, faziam propostas ao passar; e as mulheres, sobretudo as menos jovens, riam-se, roçavam neles o peito grande, apaixonavam-se, e o amor tornava-se uma diversão que atenuava o cansaço e o tédio, dava uma impressão de verdadeira vida.» (pág.82)

Os Anos de Chumbo:
«Ah, sim, antifascismo militante, nova resistência, justiça proletária, e outras fórmulas a que ela, que por instinto sabia esquivar-se à cassete do partido, era sem dúvida capaz de dar consistência. Imaginei que aquelas acções fossem obrigatórias para entrar, sei lá, nas Brigadas Vermelhas, na Primeira Linha, nos Núcleos Armados Proletários. Lila desapareceria do bairro como já fizera Pasquale. Talvez fosse por isso que tentara entregar-me Gennaro, aparentemente por um mês, mas na realidade com a intenção de mo dar para sempre. Nunca mais a veríamos. Ou seria presa, como acontecera aos cabecilhas das Brigadas Vermelhas , Curcio e Fransceschini. Ou escaparia a todos os polícias e à prisão, fantasiosa e temerária como era. E quando a cosa grande se realizasse, ela reapareceria triunfante, pelas suas proezas, com indumentária de chefe revolucionário, e dir-me-ia: tu querias escrever romances, eu fiz o romance, com pessoas de verdade, com sangue de verdade, na realidade.» (pág.243)

Jornal Mapa 34. Ilustrações a preto e branco.









Ilustrações para Jornal Mapa 34. Junho de 2022

 



Jornal Mapa, nº 34, Junho de 2022. Ilustrações para o artigo de Júlio Gomes «Mil e uma diatribes e um sopro de vida - (Neo)Fascismos, democracia liberal e o devir-esperança (Parte III)



«Rachador», de Hélder Folgado, com posfácio de António Barros.

 





"Rachador", do madeirense Hélder Folgado, mas feito a várias mãos, foi-me oferecido pelo António Barros e logo o tornei "meu" no sentido mais emocional do termo. Trata-se de uma colectânea que é "um tributo ao artesão do vime da Camacha". Conto 1890 como a data mais antiga dos rachadores que aparecem em excelentes fotografias e para mais com o nome dos artesãos seus proprietários. Para que servia um rachador? Para descascar o vime e dividi-lo em três ou em quatro para que se utilizasse no artesanato da mobília característica da Camacha, tal como explica o autor, Hélder Folgado; é num texto final do próprio de que retiro o seguinte trecho: "(...) A mão é a ferramenta, motor de toda a transformação, e a ela associa-se o podão, o passador ou o martelo. Contudo, é o rachador que de entre as demais ferramentas me desperta interesse, não só por se tratar de um objecto talhado em madeira (de pedreiro, urze, bucho entre outras), por cada um dos artesãos - para se adequar ao formato da sua mão e servir de extensão desta - mas, também, pela sua forma e função: este objecto cilíndrico, ligeiramente arredondado no topo e com incisões nas faces laterais, era tudo quanto bastava para abrir agilmente, mas com a necessária mestria, uma haste de vime em outras três, por vezes quatro (em concordância com a espessura do vime), e assim obter a liaça. (...). " No texto final de António Barros "Mão Segura" pode ler-se " Se há uma mão que afirma hirta e incisa gerando o deslumbramento e a proliferação, há outra mão que segura precisa na delicadeza do equilíbrio e sustentação do rigor.
Esta lição, gerada no resgate que o olhar formula sobre o gesto, resulta estruturante, denunciando um ponto de tensão. Esta disciplina dos limites com que a mão, a outra mão, nos contempla, traz-nos a consciência de raiz. De raiz que comunga com o corpo e, nesse tanto, faz voltar ao corpo e à importância deste como lugar. (...) "
Ter este livro na mão é igualmente a extensão da nosso pensamento em objectos extraordinários, desconhecidos da sua utilidade por continentais, nós todos, mas reconhecidos como autênticos objectos de arte pura, primitiva, durável pelos tempos passados e futuros.

Não sei onde se pode adquirir este livro maravilhoso, mas tente-se a Câmara Municipal de Santa Cruz, na Madeira. Creio que haverá resposta.