sábado, outubro 29, 2022

«Clavicórdio» de Andreia C. Faria

 

Clavicórdio, Língua Morta, Janeiro de 2022
Livro de Andreia C. Faria e, socorrendo-me de uma pequena pesquisa na «Antologia do Esquecimento» de Henrique Manuel Bento Fialho e em mais alguns sites, fui sabendo que este é o seu quarto livro, o primeiro em prosa. Aliás, uma prosa que é muito influenciada pela poesia o que lhe dá, quanto a mim, um interesse acrescido. Gostei de a ler. Não me admirei que fosse do Porto. Eu conheço bem a cidade onde vivi 20 anos e adivinhei-a nas japoneiras, nas confeitarias, nas igrejas cheias de flores, nos parques e nos shoppings de geometria funcional, no S. João, logo em «Caderno, Clavicórdio». Sei que não é importante, mas «sentir» através de uma leitura uma cidade, um ambiente é porque, provavelmente de um modo involuntário ou não, a escrita cumpriu o seu papel. Porque nos fez sentir. É isso o mínimo que exijo de um livro. Tal como a existência do fogo ou de qualquer outro elemento unificador. Este fogo que atravessa toda a sua escrita. Está presente em brasas, em lenha, em árvores, nas fagulhas da siderurgia do pai que lhe marcavam a cara, no calor do corpo desmembrado de Eva e no calor cálido do corpo doente de David. Nos silêncios e nas vozes. Onde há fogo, há água e terra húmida ou incandescente. Li e reli «Clavicórdio» e tentei extrair o sentido que Andreia C. Faria lhe dá. O sentido final é de um resgate a uma entidade superior que construiu o amor e o ódio: «Um sonho range como um caixão, mas é lúcido como um aquário e sabe florir. Acontece ao contrário da vida e é a vida. O sonho está para a vida como o ódio está para o amor. O ódio é a raiz do amor, aquilo que nele cresce e se oculta. E é sempre a raiz que comporta a verdade.» (pág.6). Talvez a superação do amor e do ódio esteja na relação desenhada como um dos mais intrigantes e belos trechos de «Clavicórdio» no capítulo «O nosso melhor ouvido»: 

«Para poder cuidar de David passei a fazer o turno da noite no hotel. Sonhei com uma torre, disse-me quando cheguei a casa pela manhã. ''Sonhei com uma torre negra e dela víamos a cidade inteira a respirar. Já reparaste que nesta cidade não há cães, nem crianças, nem cemitérios? [Londres?] Há quanto tempo estás aqui? Lembras-te de que chegámos para partir, que a ideia de partir era o que nos fazia irónicos e vivos? Era o que nos fazia acordar. E, no entanto, a cidade, impossibilitada de ser outra cidade ou outra coisa qualquer que não ela mesma, foi sitiando a nossa vontade. Do topo da torre percebi a sua geografia. É um rochedo de ecos onde o calor esmorece, e nós aconchegamos os ouvidos e o peito para ovir melhor, para dormir melhor.'' Engoliu os comprimidos da palma da minha mão e continuou: ''Ouve, eu quero salvar-me. Quero encontrar Deus, ou uma solidão essencial e tranquila que me transporte para junto Dele.'' O transporte era eu. Negociava com Ele, como uma criança negoceia com a mãe para poder dormir sem pijama, a sua ida para os céus.» (pág.86)

Dois anjos provavelmente caídos que tentam negociar a sua própria existência num refúgio supraceleste, num mundo demasiado moderno que não lhes cabe: «Odeio este tempo (...) Odeio os boçais, os intelectuais, os hedonistas. Os pais que geram filhos num vagar de lobos, os filhos desdobrando a cara em lobo depois de terem depredado lobos. Odeio alegrias programadas, o que há de artificial e de fedor a solidão nas festas em que a multidão, como árvores abatidas, deixa de encobrir o vazio, a clareira.» (pág.7)

Uma autora a descobrir, sem dúvida.



quinta-feira, outubro 27, 2022

«Origem», de Dan Brown

Daqueles livros de bolso que servem para passar um bom bocado. A trama é bem desenhada. Numa Espanha que ainda não se libertou dos seus fantasmas, isto é, da guerra civil e da ditadura franquista, a Igreja católica ultra-conservadora tenta por todos os meios impedir a divulgação de uma descoberta da origem de uma vida física que se libertava da criação teosófica das religiões. O impacto seria igual, se não maior do que as descobertas de Pitágoras, Galileu, Copérnico ou Darwin. A resposta à questão «De onde vimos? Para onde vamos?» é o mote que nos avassala o espírito há que séculos! O assassínio do cientista Edmond Kirsh, que se propôs desvendar este pequeno grande mistério, vai desenvolver uma catadupa de acontecimentos que já vimos reproduzida no cinema em Código Da Vinci e Anjos e Demónios. Algumas coisas serão inverosímeis, é certo, mas a lógica científica é bem elaborada e as teorias da conspiração são uma realidade a que não poderemos fugir conhecendo, como conhecemos bem, as redes sociais e a prática dos media. Lá vemos o Professor Langdon e uma bela directora do Museu Guggenheim de Bilbau em maus lençóis mas que saem não totalmente vencedores e com a certeza científica de estar vivos. Nascemos nós por geração espontânea da sopa primordial da Terra, há 4 mil milhões de anos, a partir de um corpo unicelular que, através da dispersão da energia do sol, foi formando uma espiral de moléculas que por sua vez levou ao aparecimento e desenvolvimento ADN dos seres vivos? Et pourquoi pas? O pior não é saber de onde vimos; o pior, mesmo, é saber para onde vamos e a perspectiva sombria de que o Homo Sapiens vai dar lugar ao Homo Technius em que a Inteligência Artificial absorverá toda a nossa vida. Nada que não nos admiremos muito, mas até um escritor tem a imaginação limitada o que não acontecerá certamente a robots especializados em gerar policiais inimagináveis a ganhar todos os prémios em festivais literários e a ganhar milhões que distribuirão, com fervor altruísta, para o incremento do capitalismo verde. 700 páginas prós amigos, mas não cabe num bolso, como é evidente.

JORNAL MAPA: Coimbra: uma metáfora esquisita num país esquisito: o massacre de 663 árvores à vista de todos

Coimbra: uma metáfora esquisita num país esquisito: o massacre de 663 árvores à vista de todos

SÁBADO, 22 OUTUBRO 2022

As obras do Metro Mondego, um elétrico articulado que se propõe circular na cidade de Coimbra e chegar a Semide, passando por Ceira, Miranda do Corvo e Lousã, ameaçam abater 663 árvores no seu trajeto. O mesmo trajeto que um comboio assegurou durante dezenas de anos e que, sem ser articulado, não precisou de abater árvores nenhumas.

No dia 9 de julho de 2022, Coimbra atingiu um recorde notável: ultrapassou os limites de ozono que podem causar sérios problemas de saúde aos seus habitantes. Podia ler-se no Jornal Público que «a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Centro informou que na estação do Instituto Geofísico do concelho de Coimbra foi registada uma concentração média horária de 188 microgramas por metro cúbico de ozono no ar, afetando quem se encontra nas freguesias de Almedina, Santa Cruz, São Bartolomeu, Sé Nova, Eiras, Santa Clara, Santo António dos Olivais e São Martinho do Bispo», isto é, na maior parte da cidade. Arredondando levemente o problema, aconselhavam a que não se fizesse exercício físico ao ar «puro» (que é como quem diz!). Afinal, não eram só os «vulneráveis» que estavam em perigo, como dizia o comunicado da CCDR do Centro. Repentinamente tornámo-nos todos vulneráveis: éramos todos velhos, crianças e portadores de doenças graves. Isto não é novo numa cidade virada exclusivamente para o automóvel que é dono e senhor das vias apertadas e das avenidas onde se acelera muito para além dos 40 ou 50 km/h, em que os peões são tidos por inimigos e os ciclistas são vistos como seres anormais que devem ser apertados e apartados das estradas e vias urbanas. Por isso apita-se, insulta-se e manobra-se contra o peão e o ciclista. As ciclovias, com alguns troços partilhados com peões, são um perigo porque se partilham igualmente com automóveis em dois sentidos, têm curvas a 90 graus e escorredores pluviais onde se enfaixa com facilidade um pneu de bicicleta. Azar para o ciclista! Tal como o estacionamento: caótico é pouco para o descrever como, aliás, pode atestar quem conduz um carrinho de bebé, uma cadeira de rodas, seja ela mecânica ou elétrica, ou mesmo os estudantes com os carrinhos fanados nos supermercados completamente ébrios de praxe e de álcool marado.

O ICNF e os massacres de inverno e de verão

No início de 2021, a senhora responsável pelo ICNF convoca os jornalistas para a Mata do Choupal. Eles comparecem. Logo a seguir a senhora fala e eles ouvem. Proclama, na sua pusilanimidade, o vigoroso Plano de Recuperação da Mata do Choupal que, para admiração de muitos dos seus utentes, não necessitava de plano nenhum, muito menos de recuperação. Mas, sendo um espaço verde e havendo o dinheiro do PDR para gastar, havia que solucionar um problema inexistente. Anunciam-se 98 mil euros e a plantação de 5000 árvores cujas espécies a senhora não soube identificar, nem tampouco a sua numerosa comitiva. Até hoje não se sabe que espécies eram, mas plantaram-se em março, mesmo com avisos sérios de que as árvores não iam aguentar serem plantadas em plena primavera. Hoje o Choupal mirrou. As plantas secaram e a erva rasteira vingou abafando as plantadas. Ficaram as canas espetadas que as haviam de suportar e grandes clareiras. Por falar em canas, outra das matas mais conhecidas de Coimbra, Vale de Canas, também teve a sua intervenção podando à toa, desmatando e, até certo ponto, impedindo a sua regeneração natural. Aliás, as podas de árvores completamente dementes são um ex-libris das autarquias da região de Coimbra, ainda que obriguem a regas e enormes gastos de água que não aconteceriam de outra forma. Também os relvados caríssimos e de regas constantes pertencem a um novo-riquismo conimbricense que, como é evidente, não se revê em ervas naturais que não necessitam de água e que alimentam abelhas e outros insetos que não são nocivos. Sobre este aspeto, leia-se o agrónomo Vasco Paiva que tem denunciado sistematicamente a política incompetente das várias câmaras da região de Coimbra: «Em Coimbra existiam muitas plantas espontâneas de sabugueiro que foram erradamente eliminadas em ajardinamentos públicos. Chega-se ao disparate de se eliminarem muitas plantas e flores silvestres espontâneas porque acham que é preciso limpar… Exemplos de espécies nativas para os nossos jardins? Aqui vão alguns: alecrim, alfazema, erica, madressilva, medronheiro, murta, pascoinhas, pilriteiro, rosmaninho, sabugueiro e tantas outras. Já imaginaram os cheiros, as cores, as pequenas aves que se vão alimentar dos seus frutos?».

É evidente que para o poder autárquico isto é completamente absurdo. Os relvados e os vasos de flores com as cores da bandeira em rotundas da cidade são muito mais tocantes na psique dos automobilistas e dos funcionários da câmara.

No dia 9 de julho de 2022, Coimbra atingiu um recorde notável: ultrapassou os limites de ozono que podem causar sérios problemas de saúde aos seus habitantes. (…) Arredondando levemente o problema, aconselhavam a que não se fizesse exercício físico ao ar «puro» (que é como quem diz!).

Entra em cena a novel Câmara de Coimbra

A Câmara de Coimbra tem como presidente José Manuel Silva, que capitaneou a coligação «Juntos Somos Coimbra». Logo antes das eleições, um terço dos seus membros independentes saíram para dar lugar a um verdadeiro albergue espanhol que já apontava, por isso mesmo, para uma espécie de ditadura pessoalista e presidencialista. A coligação tem apoios do PSD, CDS, Nós Cidadãos, RIR, PPM, Aliança e Volt. Sete partidos que na maior parte não conheciamos nem tinhamos ouvido falar e que arredaram um PS arrogante, igualmente pessoalista e incompetente. Mas não nos fixemos na política partidária, embora ela explique esta propensão do senhor ex-bastonário da ordem dos médicos para se olhar a si próprio como imprescindível na corrida para uma cidade em vias de sufocar ainda mais.

Vale a pena fixarmo-nos no Diário de Coimbra de 23 de setembro (o abate de árvores iniciou-se a 12!) para conhecer os autos de consignação e o protocolo de todas as obras do Metro Mondego inseridas no Sistema de Mobilidade do Mondego (SMM), em que a Metro Bus apresentará um «elétrico articulado» que irá «servir» a cidade e que chegará a Semide, passando por Ceira, Miranda do Corvo e Lousã, tal como um comboio o fez durante dezenas de anos, servindo populações diariamente até interesses inconfessáveis o terem banido, levantando as linhas e deixando as populações à mercê de um serviço rodoviário com estradas repletas de centenas de curvas e muito mais morosas! A verdade é que, nessa ocasião, se constituiu uma empresa durante perto de 30 anos que serviu para nada fazer em prol das pessoas, mas mais que pródiga em ordenados chorudos de ceo’s que se iam alternando conforme os interesses partidários.

Ora, o presidente da câmara de Coimbra resolveu apresentar o plano no único barco turístico do Mondego como o nome muito acertado de «Basófias» (!!), chamando os jornalistas com pompa e circunstância, não fosse o facto anedótico de o barco encalhar em plantas aquáticas invasoras que se meteram no sistema de propulsão do barco! A planta (qual metáfora embainhada a tempo) é a elódea-africana que coloca em risco toda a biodiversidade autóctone do rio e das margens. Mas o projeto não encalhou, tal como a dobragem do Cabo Bojador. O abate de árvores não estava comprometido, portanto.


O massacre dos plátanos

No dia 6 de setembro, o Jornal Público noticiava que Coimbra iria abater 5 plátanos centenários junto ao Parque Manuel Braga, no centro da cidade. Esse corte aconteceria seis dias depois. Imediatamente, algumas dezenas de cidadãos protestaram no local apresentando um plano alternativo a um «elétrico articulado» cujo traçado abateria não só os 5 plátanos centenários, alguns de 30 metros, mas também 663 árvores no novo traçado até Semide, na chamada Linha da Lousã. Veríamos, mais tarde, que já se tinha perdido a conta às árvores abatidas dentro da cidade e por todo o lado. As pessoas perguntavam-se por que razão um elétrico que é articulado necessitava de massacrar tal hecatombe de árvores, quando anteriormente um comboio não articulado nunca tinha estado em conflito com qualquer árvore nesse mesmo traçado. A resposta aos cidadãos que apresentaram à SMM um plano que evitaria este verdadeiro crime (não sabemos ainda, nesta fase, se é ou não um crime ambiental) foi abismal, segundo o mesmo jornal: «A Sociedade Metro Mondego (SMM) olhou para a proposta de quem queria evitar o abate de cinco árvores de grande porte na avenida Emídio Navarro, estudou uma alternativa e concluiu que nada muda em relação ao plano inicial.» A SMM «olhou» e disse «não!». Mais tarde, com uma contestação fraca e muito localizada, estando já em campo a ClimAção Centro, a empresa pública dá mais umas achegas: é «facilmente constatável» que a proposta do movimento resultaria em «externalidades e implicações que se traduzem no abaixamento expressivo dos padrões de qualidade do projecto». Não se percebendo de imediato o que é «facilmente constatável», as «externalidades» eram tão só a interferência com uma estação de gasolina no local e com uma estação elevatória das Águas do Centro Litoral em construção. Já antes, no dia 6 de setembro, a Agência Lusa tinha dado conta das verdadeiras razões da recusa da SMM, que jurava a pés juntos que queria um traçado verde mas que era obrigada ao abate. Qual a razão? «Alterar projetos consignados e em fase de execução tem implicações extremamente penalizantes em termos de financiamento, as quais podem levar à sua inviabilidade e encerramento definitivo». Portanto, o caso que acredito ter chocado e até comovido milhares de cidadãos ao ver, no dia 12, as motosserras a cortar os primeiros cinco plátanos de muitos que hão de vir ao chão, é que as prioridades financeiras estão à frente de qualquer motivo verde, ainda por cima com as alterações climáticas existentes e que nos levam a temperaturas recorde.

A ClimAção tenta agir

Pode dizer-se que a ClimAção Centro tem sido a única entidade em Coimbra que se opõe a esta verdadeira desgraça, a um crime que ainda não está configurado e a que os responsáveis se esquivam de uma maneira canhestra, ora dizendo que a responsabilidade é da SMM, da presidência da câmara ou da Infraestruturas de Portugal. Afiançamos aos leitores que cada uma destas instituições fala por si, ou astutamente combinadas, e, de facto, a ClimAção que tenta uma oposição eficaz conflitua com esta fuga à responsabilidade por parte de quem é culpado desta hecatombe arbórea.

Coimbra cidade-dormitório. Ela dorme, o capitalismo verde sossega-a.

Coimbra não contesta. Coimbra é uma enorme cidade-dormitório. Literalmente. Coimbra não tem estudantes contestatários, embora de vez em quando clamem por Greta Thunberg. Preocupam-se com as praxes, mais do que com os crimes que lhes passam pelos olhos. Os conimbricenses olham pelo seu umbigo, levando o seu corpo a ginásios que se multiplicam, pela sua imagem, pela sua cátedra e pelos seus serviços públicos e privados. Coimbra é a sua universidade fechada e menoscabada. Coimbra preocupa-se com os seus automóveis e com as pistas de velocidade em que transformaram as vias rodoviárias. Coimbra expulsou os operários das suas fábricas. Agora expulsa a natureza. Coimbra exulta a sua decadência.

Chega a ser comovente ver a desmotivação dos que mais ativamente se opõem a esta ação da SMM, do presidente e da IP, não reparando sequer que a oposição institucional da Câmara vai apelando aqui e ali para que não se faça o abate indiscriminado de 663 árvores. O papel da oposição institucional é exercer esse combate, ténue é certo, mas o mais importante, e é isso que muitos ingénuos e ingénuas não compreenderam ainda, é ver o Metro a andar! Com árvores abatidas ou sem elas, o importante é que em 2024 o Metro Bus, esse «elétrico articulado» que não se consegue articular com as árvores, comece a funcionar. Estaremos nas vésperas de mais umas eleições autárquicas e a coisa tem de render votos, puxando para si o «progresso» baseado no capitalismo verde.

O caso que acredito ter chocado e até comovido milhares de cidadãos ao ver, no dia 12, as motosserras a cortar os primeiros cinco plátanos de muitos que hão de vir ao chão, é que as prioridades financeiras estão à frente de qualquer motivo verde.

Uma câmara maoísta?

Lembrar-se-á a campanha levada a cabo por Mao e que acabou mal – «Que mil flores desabrochem! Que mil escolas de pensamento floresçam!» -, mas o comunicado de 5 de agosto de 2022 da coligação camarária é de um mau gosto e de uma demagogia que configura inclusive uma impossibilidade real em que só os mais incautos podem acreditar. Esse comunicado promete que a CM de Coimbra e a SMM chegaram a um acordo: por cada árvore abatida, três florescerão! As contradições são tantas que não podem caber no espaço deste artigo, mas sobressaem estas, socorrendo-me agora de algumas perguntas que o agrónomo Vasco Paiva coloca na sua página de Facebook a 10 de setembro: «Outra falácia é de que vão substituir cada árvore abatida por três novas! Claro que uma árvore adulta (algumas centenárias) de elevado porte e de larga copa não é substituível por jovens plantas ou árvores que, no máximo, terão 2 ou 3 metros de altura. Quantas décadas serão necessárias para atingirem a mesma dimensão e cumprirem os meus serviços ambientais (despoluição, fixação de carbono, sombra, abrigo para pássaros ou outros animais)? Outra falácia: Segundo foi afirmado na comunicação social, e não desmentido, está previsto o abate de cerca de 600 árvores. No Plano, apresentado pela “Metro Mondego” à Assembleia Municipal, intitulado “Plano para o Reforço da Estrutura Arbórea”, está prevista a plantação de 1.326 árvores, sendo 151 em 2022; 575 em 2023 e 600 em 2024. Alguém me explica como é que 3 x 600 não são 1.800?»

As razões da anestesia conimbricense e o modo sempre pacífico de a contrariar: o bystander effect!

Perante a pobre contestação que se tem vindo a observar, a universidade socorre-se da Psicologia, não fosse Coimbra propagandeada como a cidade do conhecimento! No dia 19 de setembro, no site CoimbraCooletiva, e adivinhando já a desmotivação e abandono da contestação ao crime que se evidencia cada vez mais, a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra coloca aos cidadãos as seguintes perguntas: «Por que é que as pessoas boas ficam paradas e não lutam a favor do que defendem? Como é que deixamos que se destrua património, como zonas verdes, lamentando e criticando mas não fazendo nada? A psicologia chama-lhe efeito do espectador e tem cura»; e ainda «o bystander effect é o fenómeno onde a difusão da responsabilidade («os outros fazem…») e o medo do risco envolvido (ficar mal visto, perder emprego, ser criticado, ser preso…) leva à inação por parte de pessoas que poderiam rectificar a situação». Qual é a cura, então? A resposta que vai levantar em peso a população conimbricense é esta: «É para contrariá-lo que o InterDito se junta hoje à Secção Experimental de Yoga da Associação Académica de Coimbra, ao Encontro da Paz e a quem na comunidade também estiver preocupado com o abate de árvores no centro da cidade numa manifestação pacífica, sob a forma da criação de cordão humano».

É evidente que a cidade está perdida, as suas árvores estarão condenadas a morrer pelo crime de existirem e colidirem com interesses financeiros públicos, privados e de fundos europeus. No entanto, quer-nos parecer que a anestesia de uma franja muito significativa da população da cidade que vira literalmente as costas a este crime, ainda que com algumas lágrimas (de crocodilo?), tem um carácter local muito vincado. Fica por perceber como é que não houve providências cautelares contra o abate enquanto se apresentavam alternativas concretas, assim como mais apoios no país e mesmo na cidade, ganhando com isso tempo inestimável. Se este facto ocorresse em algumas outras cidades ou vilas portuguesas as coisas não seriam assim, e seria mesmo impensável numa qualquer cidade europeia. Mas, em Coimbra, é sempre possível a aventura do capitalismo verde!

Texto de  António Luís Catarino | Imagens de António Barros

https://www.jornalmapa.pt/

https://www.jornalmapa.pt/2022/10/22/coimbra-o-massacre-de-663-arvores/

domingo, outubro 23, 2022

«O Homem que caiu na Terra», Walter Tevis

Não sei o que deu ao Expresso de 2 de Setembro de 2022 em chamar ao autor de «O Homem que caiu na Terra» Walter Travis, quando o homem se chamava Tevis. Portanto, Walter Tevis. São erros imperdoáveis em jornais ditos de referência! O livro teve muito impacto em 1963 e voltou a dar que falar em 1976 por ter sido vertido para cinema no filme «The man who fell in Earth» protagonizado por David Bowie, quando, na ocasião, pontificavam as músicas de «The Man who sold the Earth» ou «Space Oddity». As músicas de Bowie sucediam-se na minha cabeça ao ler o livro de Tevis, falecido em 1984, e seguindo com atenção a personalidade de Tom Newton, um alien vindo do planeta Anthea, cujos recursos, desaparecimento da água e guerras aniquilaram a sua população. Tentava sobreviver arquitectando uma viagem interplanetária dos seus últimos habitantes para a Terra, rica em água e em combustíveis, como o urânio e plutónio. 

Só Bowie poderia dar corpo a Newton tal como o autor o desenhou psicológica e fisicamente. Figura algo frágil, andrógina, albina, envolto na sua solidão e mistério. A sua relação com os primeiros três trabalhos musicais também o catapultaram para o papel e por mais que eu tente não vejo outra personagem para Tom Newton. Talvez um Iggy Pop ou um Lou Reed, mas nos anos 60... ainda haveria a possibilidade remota de um Andy Warhol se ele não estivesse sempre a espremer borbulhas da cara... De qualquer modo, os editores pensaram o mesmo que eu e colocaram David Bowie na capa. A mesma capa do cartaz que deu nome ao filme de 1976 e que, quando o vi, não me entusiasmou por aí além. Tinha outras preocupações certamente. Como por exemplo esticar o Prec até onde fosse humanamente possível. Acabou mal.

Estávamos em 1963, um ano após a crise dos mísseis de Cuba que ia levando a uma verdadeira e gigantesca guerra nuclear e só agora passados quase 60 anos temos a certeza, após a desclassificação de documentos americanos e soviéticos, que a devastação nuclear esteve mais perto de deflagrar do que nunca. Nos anos 60, a ficção científica abandonava os insectos radioactivos do tamanho de prédios e a devorar pessoas, aranhas enormes que engoliam táxis novaiorquinos ou legumes que abafavam aldeias inteiras em busca de carne humana. A partir de uma real ameaça nuclear deseja-se uma invasão alienígena que ponha fim à demência de uma humanidade ainda na idade de uma infância autodestrutiva cuja salvação ou destruição poderia vir do espaço por via de uma vida inteligente que pudesse pôr fim ao pesadelo. Isto é: fossem bons ou maus digam ao que vêem ou fiquem e arrasem isto tudo! Salvem-nos ou destruam-nos! É esse o objectivo de Newton: na aniquilação do planeta Anthea, derivada das guerras nucleares sucessivas, desiste de salvar-se a si, aos antheanos que ainda restam num planeta em fim de vida e aos humanos que prevê o fim numa guerra nuclear arrasadora no prazo de dez, vinte ou mesmo trinta anos. No fim, deixou-se de importar. Torna-se niilista: bebe gim e passeia os milhões de dólares ganhos com as corporações de vendas de armas. Destrói a única possibilidade de salvar os seus desistindo de fabricar uma nave espacial quase pronta, enquanto despreza igualmente os habitantes da Terra igualando-os a macacos um pouco mais inteligentes, é certo. É a conquista do espaço que seis anos após a edição deste livro começa com as primeiras pegadas na Lua com um Armstrong aos saltos. Pobre conquista, diria Major Tom!

Didn't know what time it was, the lights were lowI leaned back on my radioSome cat was layin' down some rock 'n' roll"Lotta soul, " he said
Then the loud sound did seem to fadeCame back like a slow voice on a wave of phaseThat wasn't no DJ, that was hazy cosmic jive
There's a starman waiting in the skyHe'd like to come and meet usBut he thinks he'd blow our mindsThere's a starman waiting in the skyHe's told us not to blow it'Cause he knows it's all worthwhileHe told meLet the children lose itLet the children use itLet all the children boogie
I had to phone someone, so I picked on youHey, that's far out, so you heard him tooSwitch on the TVWe may pick him up on channel two
Look out your window, I can see his lightIf we can sparkle, he may land tonightDon't tell your poppa or he'll get us locked up in fright
There's a starman waiting in the skyHe'd like to come and meet usBut he thinks he'd blow our mindsThere's a starman waiting in the skyHe's told us not to blow it'Cause he knows it's all worthwhileHe told meLet the children lose itLet the children use itLet all the children boogie
Starman waiting in the skyHe'd like to come and meet usBut he thinks he'd blow our mindsThere's a starman waiting in the skyHe's told us not to blow it'Cause he knows it's all worthwhileHe told meLet the children lose itLet the children use itLet all the children boogie
Letra de «Space Odity», de David Bowie

quarta-feira, outubro 19, 2022

«Sobre o Mal», de Terry Eagleton

 
Edições 70.Tradução: Pedro Elói Duarte.2022

Para quem se define marxista é demasiado descritivo, contemplativo. Parece ignorar Marx quando este dizia que aos filósofos não bastava descrever o mundo mas sim transformá-lo. Mas para falar do mal vai buscar muitas e diversificadas referências, citando quando quer exemplificar uma ténue opinião sua. Juntamente com um humor (o Independent chama-lhe «refrescante», o Irish Times de «divertido» e o The Observer agradece-lhe «comos cristãos» o contributo que dá para a compreensão do mal) que resvala por vezes para a stand-up comedy. Chega a exemplificar uma imagem do Éden em que a Kate Winslet era a vizinha dele! Ou esta frase com montes de riso: «Não torna a escravatura, Bob Hope ou a Guerra dos Trinta Anos retrospectivamente toleráveis!», ah, ah, ah... pois não, man, pois não! E aquela de ires buscar o Terramoto de Lisboa como a justificação da teodiceia que castigava os homens (sic), ah, ah, ah... andas a ler Voltaire, camarada!, e não o citas nem nada, que fixe!, expressão que o teu filho usou quando lhe disseste que ias escrever um livro sobre o Mal!

Para quem escreve sobre o mal é fastidioso lê-lo. Lá vem a Bíblia e o Antigo Testamento com o desgraçado Job, marioneta de Deus omni tudo e que nem aceita a pergunta mais que legítima de «porquê eu?» do castigado, porque Este estava para além da sua compreensão. E não porque Job fosse falho de inteligência. A pergunta em si do «quem és?» é uma afronta humana que Deus não está para aturar. Mas quem não sabe esta história e, principalmente, a tão estafada questão do Deus que cria o Bem é o mesmo que criou o Mal e o Diabo? Bocejo longo... Agarrem-se que vêm aí as referências: Milton e o Paraíso Perdido, que afinal não era paraíso celeste nenhum, mas a própria Inglaterra após a sua Revolução do século XVII que se finou num instante em sangue, Santo Agostinho que topou o Mal muito antes de todos os medievalistas, incluindo o aristotélico Tomás de Aquino que depois da tal visão divina achou que tudo o que escreveu antes era «palha seca» mas que não inibe Eagleton de o citar, Shakespeare, Thomas Mann, Hitler, Eichmann, Arendt, Sartre, Shopenhauer (este dizia que a condição humana era uma boa merda), Kiekergaard, Freud, Lacan, Adorno, Marx, Graham Greene, Thomas Hardy, Goethe (não podia deixar de ser, claro!), Baudelaire e Rimbaud (esses bebedolas e dissolutos que fustigavam a carne como salvação, valha-nos Deus!) e ainda mais... ah, Estaline e Mao também lá estão. Dois terços do livro são colagens de citações e algumas «tiradas» e reenvio de humor para os marxistas seus colegas como Perry Anderson e F. Jameson muito mais cientes que ele do que é a teoria de Marx.

Mas o Mal! Nenhuma tese ou antítese de Eagleton, visto que sem tese não pode haver antítese. Agora sou eu a tentar ironizar com algum humor falhado que é o que ele faz no livro. Nenhuma saída ou ideia nova, o que o envia direitinho para as mãos dos conservadores que tal como Hobbes (não o cita e é estranho) só pode haver o Bem e a Liberdade que o protagoniza com fortes estados e instituições porque o mal é intrínseco à Humanidade. Aos que acham que desde que há História, ou seja, domínio, guerra e poder de uns sobre os outros, o Mal de instalou nas sociedades e desejam utopias ele clama contra a ingenuidade esquerdista porque visa a construção de sociedades cheias de tédio e bondade! Portanto, uma pitada de mal até vinha a calhar nesta pasmaceira que seria um socialismo a-histórico como as sociedades primitivas. Ou seja, uma teia de confusões e meias-verdades que nem sequer conflituam com meias-omissões e meias-mentiras. Um livro pela metade, pois.

segunda-feira, outubro 17, 2022

«Aqui, onde acaba a estrada», de Igor Lebreaud. Na Escola da Noite

 

Pela Escola da Noite. De Igor Lebreaud

Penso em algumas arestas a limar depois de ver com interesse «Aqui, onde acaba a estrada», de Igor Lebreaud, talvez um conhecido do teatro, não tanto do público. Pelo menos como encenador, pois terá sido a sua primeira vez a encenar uma peça escrita igualmente por si.

O tema, esse, é de imediato entendido visto que o choque entre duas culturas é bem explícito. A tragédia dos refugiados está à nossa frente, incontornável, absurda. Mas igualmente absurdo é o facto do comandante da fronteira estar de camuflado, botas altas e ser tratado como «professor». Professor de quê, ao certo? O seu comportamento nazi é histriónico e não se consegue perceber o objectivo da sua recusa em deixar entrar quer o homem, quer a caixa. Ou seja, há algum sentido na peça que conseguimos ver, mas há zonas de algum nevoeiro que gostaríamos de ver mais claras. E aquela do soldado bom e do soldado mau não é coisa já estafada? E não há ressentimento entre o dominado e o dominador? Não que fosse obrigatório, mas...

«O Pássaro de Peito Vermelho», de Jo Nesbo

 

Gosto de livros de bolso e creio que não é a primeira vez que o digo. São mais baratos, guardam-se mais facilmente e o facto de quase caberem na mão dá-lhes uma certa intimidade que um livro de formato normal, terá mais dificuldade em conseguir. Já se não gostarmos de um livro de bolso é-nos mais fácil atirá-lo janela fora que o prejuízo não será muito. Uso-o, na maioria das vezes, para ler policiais e ficção científica. Mas parece que, definitivamente, entrou nos hábitos dos portugueses que lêem. 

Por vezes, quando o autor é bom como é o caso de Jo Nesbo este, através de uma trama policial tão verosímil, como enredada em teias políticas e sociais que nos prendem à leitura, sabemos muito mais quando acabamos o livro, do que a descoberta de quem assassinou quem. Por exemplo, que a Noruega nunca foi o exemplo de paz e bonomia democrática com que a olhamos vulgarmente. Até foi o contrário, segundo o seu compatriota Jo Nesbo. Durante a II Guerra Mundial e a partir dela, a Noruega passou de um país relativamente pobre em recursos para um dos países mais prósperos do mundo. Isso não foi ao acaso. Nunca o é. Mas a fuga do seu monarca para Londres e depois América juntamente com as reservas de ouro, abandonando à sua sorte o povo da invasão nazi, levou a que a «protecção» de Roosevelt contra a URSS fosse traduzida num apoio monetário substancial à construção dos riquíssimos poços de petróleo com que as suas «elites» se deleitam. E por falar em «elites» devemos dizer que não foi por acaso que o rei fugiu. Essa fuga desprezível, para Nesbo também, aponta para uma clara capitulação sem guerra a Hitler, como o foi a «neutralidade» sueca ou a rendição em 3 dias da Dinamarca. Todos eles estiveram, de uma maneira ou de outra, ao lado de Hitler, sendo o caso da Finlândia uma outra conversa. Não se pense contudo que não houve resistência norueguesa. Haver houve, mas foi fraquíssima e com pouca organização. Remeteu-se aos bosques e a algumas cidades, mas aumentou exponencialmente em 1944, já os soviéticos avançavam sobre Berlim. Astutos, não puderam contudo esquecer-se dos números de antes da guerra: a fria estatística apontava para 3 ou 4 vezes mais mobilizações nas Waffen SS na frente oriental contra os russos do que na débil mas honrosa Resistência. Depois da derrota da Alemanha nazi os soldados vivos voltaram para a Noruega e logo nos dias seguintes da libertação o Forte Akershus abateu milhares de traidores como uma fúria, segundo Jo Nesbo, muito maior do que países cuja resistência foi bem maior. Conta perto de cem mil encostados à parede em todo o país. Cem mil num país com menos de 4 milhões em 1950! Percebemos agora a brandura dos tribunais para com os «traidores» que estiveram na frente oriental e que apodaram de «peixe-miúdo»! Era necessário parar com os fuzilamentos e deixar que a economia funcionasse já que as perspectivas americanas mais o Plano Marshall eram as melhores.

Só que, entretanto, e é disto que trata «O Pássaro de Peito Vermelho», passaram três gerações após a II Guerra Mundial e soldados da frente oriental não tinham motivos para pensar que eram traidores de coisa nenhuma e que lutarem ao lado dos alemães foi lutar ao lado do nacionalismo norueguês contra o inimigo russo! E vieram os filhos e depois os netos a ouvirem estas histórias. Não nos admiremos pois, e o autor não se admira nada, que a Noruega juntamente com outros países nórdicos, sejam onde mais cresceu a extrema-direita e está mais arreigado o clima anti-imigração. Já há governos nórdicos com fascistas declarados. Mesmo que angelicamente a Krippo, a polícia norueguesa, tenha contado somente 59 militantes de extrema-direita no país! 

Não se viu o «Ovo da Serpente» de Bergman, um sueco? Não lemos igualmente um outro sueco que já não está entre nós: Stieg Larsson? Jo Nesbo escreve tão bem como ele. Tem as mesmas preocupações que ele! Triste social-democracia que não tiveste engenho, arte ou energia para veres a incubação lenta de um ovo!

António Luís Catarino

segunda-feira, outubro 10, 2022

«Montaillou - Cátaros e Católicos numa aldeia occitana, 1294-1324», de Emmanuel Le Roy Ladurie

 

Edições 70, 1975, 2ª ed.1982
Tradução de Nuno Garcia Lopes e Pedro Bernardo

É um trabalho mais que pormenorizado: estamos perante um verdadeiro «cusco» que faz, no papel de historiador, um levantamento do quotidiano de uma aldeia occitana - Montaillou entre os séculos XIII e XIV. Esta aldeia faz parte de uma grande rede de aldeias pirenaicas e (hoje) do sudeste de França quase completamente tomadas pela heresia cátara, embora com uma presença minoritária católica. Não se pense que uma e outra apresentavam práticas totalmente «puras». Essas práticas cruzavam-se: por um lado recusava-se a extrema-unção, mas pedia-se o consollamentum e a endura cátaras à hora da morte e inversamente também. Havia padres católicos que eram hereges e que não confessavam, nem davam hóstias porque não acreditavam na transubstanciação. Havia, por sua vez, perfeitos ou homens-bons cátaros que embora imbuídos de maniqueísmo oriental rezavam o Pater Nostrus ou a Ave Maria. Nada é tão simples como parece nesta região occitana onde a luta de classes se diluía num ódio cada vez maior partilhado por nobres, burgueses, camponeses e pastores contra os poderes políticos e religiosos da Île-de-France e Paris, ou seja, do Norte de França, para com os impostos senhoriais e dízimos clericais. Nunca se perdoará a brutalidade de Simon de Monfort contra as cidades, vilas e aldeias occitanas no século anterior e com os massacres correspondentes bem mais violentos do que fez contra Constantinopla. Os levantamentos não eram raros e aí víamos igualmente cátaros e católicos juntos.

É verdade que Le Roy Ladurie teve fontes históricas incríveis e uma sorte que não se deve desdenhar ao encontrar os registos minuciosíssimos de Jacques Fournier, inquisidor-mor contra o catarismo que não tolerava e que chegou a papa (talvez por isso mesmo) com o nome de Bento XII. Deixava a violência dos interrogatórios para outros. Preferia que o pormenor do interrogatório, as contradições, a delação e o medo do acusado de catarismo ou de valdismo seguisse o seu caminho. E apontava tudo em grossos volumes. São esses registos que foram parar às mãos do historiador que não se fez rogado. Está lá tudo: as amizades, as inimizades, a alegria, o ódio, as fratrias, as domus, as locus, os olhares, os casamentos, o sexo adúltero ou não, a comida, os animais. Enterramos os nossos pés nas vias das aldeias, sentamo-nos à lareira das domus, ouvindo estórias, bebendo um copo de vinho e um pão feito ao forno com peixe frito ou com um naco de perna de porco, animal demoníaco é certo, mas se estivesse presente um perfeito cátaro dar-lhe-íamos um fígado de bode. Um cura católico comeria de tudo! O papel da mulher é de tal modo importante que se pode dizer que estamos perante um matriarcado. Se na infância e na adolescência a mulher está numa situação perigosa (as violações e os raptos consentidos ou não, eram frequentes) à medida que ultrapassa a adolescência vai tendo um papel primordial nas comunidades por duas ordens de razões: os casamentos escolhidos por mulheres sucedem-se porque a esperança média de vida do homem é quase metade do da mulher (sessenta anos é o máximo a que o homem pode aspirar, mas a média é de 40 anos) e aumenta-lhe assim os recursos materiais e voz nas assembleias e finalmente porque uma mulher velha é mais respeitada do que um homem velho, isto na boa tradição kabila ou mediterrânica, como quiserem.

Não será de religião propriamente dita que se falará aqui. Mas falaremos de comunitarismo pré-capitalista onde não havia sequer moeda. A única que havia veio tardiamente e era a moeda francesa do norte, o parisis. Em plena Idade Média havia um poder dual: o senhorialismo e o comunitarismo aldeão e pastoril. O nomadismo transumante estava nas mãos dos pastores que se sentiam realmente livres e pobres, ao ponto de recusarem astutamente o casamento, devido ao facto de o serem, embora a poesia trovadoresca da língua de oc (que influenciou a nossa poesia) nos dê bons exemplos de grande fraternidade com as mulheres de muitas aldeias occitanas! Fraternidade aqui é um eufemismo, visto que o pastor era partilhado por várias mulheres de aldeias diferentes com consciência disso mesmo. O tabu do incesto ia até à prima de primeiro grau e, evidentemente, aos irmãos. Já mais misterioso é o tabu entre cunhados.

As decisões eram tomadas por assembleias livres comunitárias onde se partilhava o gado bovino, ovino e a respetiva lã e carne. Havia pastos e campos cerealíferos comuns. Isto não queria dizer que os pastos e os campos eram de toda a região de Sabhartès, onde pertence Montaillou. Para os usarem era necessário que o pastor ou camponês tivesse de ser casado com alguém da terra ou aldeia a que pertencesse os pastos ou os campos. Este comunalismo já existia desde o século XIII e no XVIII e mesmo no início do século XIX era possível assistir a estas práticas que não deixavam de ser algo rígidas para que pudessem vingar. E vingou. Durante muito tempo não se pagou o dízimo ou impostos senhoriais ao rei francês o que fez com que a Occitânia pagasse bem caro com uma repressão brutal a que a própria heresia serviu de causa aparente para uma regulação fiscal por parte do Estado. Antes da Inquisição que retirou terras quer a nobres, quer a camponeses, sob a acusação de heresias, engordando a nobreza e clero do norte, as assembleias é que serviam de mediação fiscal para com o estado central. 

É notável o registo da vaga de refugiados que a repressão inquisitorial provocou. Fala-se da Lombardia, Sicília, Catalunha, Espanha. Na minha opinião essa onda enorme de fugitivos veio até Portugal onde os recebemos como povoadores altamente necessários para um país despovoado. E a toponímia já nos ajuda com algumas corruptelas: Proença/Provence, Montalvão/Montauban, albi-castrense/Albi, Tolosa/Toulouse, Rodão/Ródano, Nisa/Nice e por aí fora. Quanto aos patronímicos como «Catarino» já aqui falámos, mas não deixa de ser estranho que exista na raia espanhola, como no litoral de arroteias onde este nome prolifera.

Caso notável era que esta comunalismo se estendia  por todos os Pirenéus inclusivamente para a Catalunha e Aragão. Com esta regiões se faziam trocas comerciais e de pastoreio quer de um lado, quer de outro. Para Navarra e País Basco não temos notícia nos registos de Jacques Fournier, mas sabemos que aí havia um forte comunalismo mas aparentemente sem contactos com a Occitânia. Havia portanto cátaros desde as regiões hoje espanholas até Toulouse e Montpellier. 

Há uma figura central em todo o livro que, habilmente, Le Roy Ladurie nos apresenta. É Pierre Maury, pastor, cátaro, não muito praticante é certo, mas portador de uma filosofia muito própria que nos remete para a existência de um espírito verdadeiramente livre e acerrimamente crítico dos padres e mesmo dos frades menores. A página 160 e seguintes são todas elas um manifesto de um ideal igualitário e democrático (até nómada) possível nos século XIV. O que se questiona é por que razão este tipo de vida foi usurpado pelas cidades das confrarias e do corporativismo mercantil e usurário. Até à derrota do comunalismo que, astutamente, o poder o fez confundir com a pobreza e ignorância. Ironicamente, este livro tão pleno de fontes históricas e no período em questão, não foi registado qualquer período de fome, embora houvesse tempos de penúria em anos agrícolas não muito bons, mas fome generalizada como em outros contextos não houve. A solidariedade e hospitalidade entre as domus e as locus eram obrigatórias para os que estivessem em dificuldades. 

Numa época de colapso a todos os níveis como a que estamos a viver hoje talvez fosse uma fonte de bom senso e prazer ler este livro, atentando com a minúcia de um Jacques Fournier, o que de bom e útil comunidades inteiras foram capazes de criar durante séculos. Conseguiremos reerguer essas experiências?

António Luís Catarino