quinta-feira, maio 25, 2006

Páginas de um Diário Alemão - IV, de João Pedro Mésseder


Nuremberga, 15 de Agosto

De manhã cedo, a temperatura caminhava já para os 30 graus do dia. Da janela do 13º andar, em Alexanderplatz, viam-se os telhados e as cúpulas em cobre. Em frente, três bandeiras azuis ondulando ao vento e a gigantesca torre de televisão da ex-RDA. Pela segunda vez, despeço-me de Berlim, dos fantasmas de Brecht e Heiner Müller que a esta hora ainda vagueiam nas imediações do Berliner Ensemble e da estação de Friedrichstraße. Recordo a frase de Marguerite Duras, pouco antes de morrer: «Et l’Alemagne me fait toujours peur».

Chegamos a Leipzig ainda de manhã. Na Igreja de S. Tomás, a capella, canta-se Bach cujos ossos, sepultados agora junto ao altar-mor, devem escutar quase diariamente a música do mestre, algébrica e celestial («la divine machine à coudre», lhe chamou Colette).
Outros fantasmas deambulam pela cidade, como o do jovem Goethe, os de Mendelssohn, Schubert e de Clara e Robert Schumann. Na Auerbach Keller, vibra ainda a presença de Fausto e Mefistófeles, o homem e o demónio que desde sempre habitam a Alemanha e de que aqui, em Leipzig, subsistem sinais: orifícios de balas nas paredes de algumas casas, a arquitectura estalinista a aguardar restauro ou exibindo já os símbolos do mundo capitalista: Kaufhoff, Macdonald's, Dresdenbank... Simpática Leipzig, com algumas ruas de bonitas vivendas, decrépitas umas, outras já renovadas.
Descendo para sul, entramos na Baviera e alcançamos Nuremberga pelas cinco e meia, colhendo ainda a luz dourada de um verão que caminha para o fim, capaz no entanto de assomos de calor inusitados nestas paragens.
Dou por mim a fotografar pacientemente as pontes e os reflexos das árvores e do Heiliggeistspital nas águas verdes do Pegnitz. Percorridas ruas e praças, a St. Lorenzkirche e a Frauenkirche, admiradas as fontes excessivas – como a Schönner Brunnen com seus profetas e evangelistas uns sobre os outros –, entramos na Igreja de S. Sebaldo quase por acaso. A magia, porém, vem ao encontro dos nossos ouvidos: no recinto praticamente deserto, uma oficiante de vestido comprido, voz doce e dicção perfeita dir-se-ia estar ali para nos reconciliar com o som da língua alemã, ao ler «Der Mond» dos Irmãos Grimm e, logo a seguir, um poema sobre a Lua. Um organista sábio vai entrecortando as frases, criando a atmosfera musical adequada a cada passagem.
Despeço-me contemplando estas casas belíssimas, reconstruídas no pós-guerra, os lados superiores das fachadas em degrau e os grandes telhados inclinados onde espreitam janelinhas com suas pálpebras de telha negra. Digo adeus aos espelhos do rio e à luz dourada, à voz que recita e a algumas mulheres elegantes que o sol atraiu para a rua.

*
Paisagem bávara

Abre sulcos no olhar, esta geometria de ondas rectangulares, o verde, o castanho, a cor do trigo. Em fundo, a disciplina florestal. No céu da estrada, um súbito pássaro negro rasga o ecrã da íris.

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