quarta-feira, novembro 29, 2023

28 de Novembro: Traço, Viagem, Insular, Memória no Centro Cultural Penedo da Saudade, Coimbra


Eis o vídeo de apresentação de Traço, Viagem, Insular, Memória facultado pelo Centro Cultural Penedo da Saudade, em Coimbra:

https://fb.watch/oD9gny5BZ6/

António Alves Martins, Cristina Faia e António Luís Catarino
Foto Paulo Góis


A 17 de Novembro, no portuense Gato Vadio, a apresentar Traço, Viagem, Insular, Memória

 

A apresentar alguns argumentos para a edição dos meus oito desenhos em Traço, Viagem, Insular, Memória em co-autoria com António Alves Martins e Susana Paiva. Aqui estiveram a Estela Rodrigues, a Helena Isabel Lopes (autora das fotos), a Andrea Peniche e a Helga, o Jorge Velhote e o Tó Zé que nos recebeu na Gato Vadio. Estiveram igualmente mais pessoas que não sei identificar, mas foi muito bom o debate que se seguiu.
Aqui, o António Alves Martins e a Anabela. Ele foi o responsável pela edição do livro com a chancela da sua Artes Breves Edições e também pelas fotos que compõem o Traço, Viagem, Insular Memória, juntamente com os quimigramas e cianotipias de Susana Paiva.

«Marcada para a Vida», Emelie Schepp

 

D.Quixote, 2023, Tradução de Ana Costa
Um policial norueguês a reboque do «nórdico». Dá para tudo e o seu contrário, o nada. Muito sangue, pouco sexo talvez por uma postura muito protestante e púdica da autora sabe-se lá, desaparecimentos, vinganças a rodos, uma procuradora que foi treinada em criança para assassinar tudo o que mexesse e que perdeu convenientemente a memória dessa infância, refugiados mortos em contentores... um longo bocejo. Pena minha gostar de policiais, porque às vezes surgem banhadas destas. Mas há que os ler até ao fim. Não sendo uma promessa, não façam como Marx que os lia só pela metade quando não lhe cheirava a literatura da boa. Mas gostava do poeta Heine!

quinta-feira, novembro 23, 2023

«As Benevolentes», Jonathan Littell (o artigo que faltava, escrito em 2012)

 


A leitura de As Benevolentes de Jonathan Littel não é um exercício fácil. Não só porque se lê «bem», isto é, com interesse e curiosidade, mas também porque recusa exemplarmente o entretenimento fácil. Quase 70 anos após a II Guerra Mundial, o autor fala-nos dela (e de todas as guerras, por sinal) como só Céline o fez. Suja, malcheirosa, sanguinária, impiedosa. Falar de crueldade é pouco. O pior de tudo é que seguimos a personagem de Max Aue, um SS responsável junto ao Reichfuhrer Himmler e ao também tristemente célebre Eichmann, na solução do «problema judeu». Aue não gosta do que vê nos campos de concentração e na condição dos judeus nos diversos campos que visita. Não nos iludamos: o seu repúdio é porque é mão-de-obra inútil que poderia dar frutos junto das fábricas de armamento de Speer. Poderiam ser mais bem tratados, os judeus, até porque a solução final de Hitler nunca mais poria a «raça» judaica em pé. Sinistro. Como sinistro é sabê-lo professor de Filosofia numa das melhores universidades de Berlim, admirador de Jünger e Platão e da literatura de Flaubert que o acompanha, aliás, na frente russa e no cerco de Estalinegrado. Homossexual recalcado, ama a sua irmã gémea donde surgem igualmente gémeos que são escondidos na Suíça. Assassina a mãe e o padrasto com a cobertura das mais altas individualidades SS. Mata igualmente, já no final da guerra, um aristocrata que tocava Bach numa igreja simplesmente por ser um burguês culpado da agonia do nacional-socialismo.

No entanto, o que me deixou mais apreensivo passa-se nas últimas páginas do livro: o encontro terrífico de Aue e de mais dois SS que fugiam dos russos já às portas de Berlim com um grupo de adolescentes recrutados à pressa pela Wermacht. Assassinavam tudo o que se mexia desde russos por serem invasores a alemães por fugirem. Não tinham chefes, nem moral ou sombra de piedade humana. Tudo se resumia a matar, a violar e a roubar. Aue dá consigo a pensar que estes jovens adolescentes tiveram acesso, até há pouco tempo atrás, de uma escolaridade humanista, sensível, na melhor tradição iluminista. Eram, agora, feras. Como se Aue, ele próprio, não o fosse também. Todo o livro para mim resume-se a esta cena final. Senti incómodo ao tentar saber a resposta

quinta-feira, novembro 16, 2023

«Silverview», John Le Carré

 

D. Quixote, 2021. Tradução de Maria de Fátima Carmo 
Um dos pesos-pesados da literatura policial ou, simplesmente, da literatura anglo-saxónica. Silverview tem, contudo, a particularidade de ter sido o último publicado por John le Carré, postumamente e em 2021, após a sua morte por pneumonia. Silverview é um romance escrito por quem está em paz com o mundo, mesmo que esse mundo que ele tão friamente descreveu estivesse bem longe dessa mesma paz. John le Carré foi um espião da Guerra Fria e nela se despediu na década de 60. O que nos legou foi a narrativa do cinismo dos serviços da sua majestade, da inumanidade das guerras, da preparação aturada e ao pormenor de novos conflitos, dos interesses económicos inconfessáveis das potências, dos povos sacrificados sem que isso impedisse o sono aos chefes e às elites. Lá está Gaza, a Palestina e Israel, a Jordânia, Cuba, o embuste do Iraque, a CIA, feroz e omnipotente (e omnipresente), a África repartida pelos ocidentais. Tudo isso, mas não só, é descrito em Silverview numa toada tranquila como quem espera a sua morte pessoal que é talvez pensada ao milímetro transposta para um funeral de dois capítulos, dos mais inquietantes que poderemos ler no livro, revisto e terminado por Nick Cornwell, o filho mais novo de le Carré. É ele que escreve no posfácio:

«Silverview faz uma coisa que nenhum outro livro de John le Carré fez: mostra um serviço fragmentado, repleto das suas próprias facções políticas, nem sempre amável para quem devia acarinhar, nem sempre muito eficaz e alerta, e, em última instância, já não seguro de poder justificar-se a si mesmo. Em Silverview, os espiões da Grã-Bretanha perderam, como tantos nós, a certeza quanto ao significado do país e de quem somos para nós mesmos. Tal como Karla em A Gente de Smiley, também aqui com a nossa própria facção: é a humanidade do Serviço que não está à altura da tarefa - e isso começa a pôr em causa o facto de a tarefa valer o custo.»

quarta-feira, novembro 15, 2023

«Cosmos - Uma Ontologia Materialista», Michel Onfray

 

Edições 70, 2015. Tradução de Pedro Elói Duarte
Este é o primeiro volume de uma trilogia fundada por Michel Onfray, sendo que o segundo já é o nosso conhecido «Decadência» publicado em 2019 e já comentado aqui no blogue: https://derivadaspalavras.blogspot.com/2019/12/o-estado-morreu-o-cristianismo-tambem.html . O último da trilogia não está ainda disponível em português e tem o título de «Sagesse».  Nietzschiano de esquerda (embora afastando-se de Deleuze), ateu, hedonista e vitalista, livre pensador e libertário, nem por isso Onfray deixa de ser por vezes desconcertante e provocador, mas, sem essa qualidade, poucos o leriam e o comentariam. É mais do que necessário, num mundo ocidental em clara ruptura, saber dos pressupostos filosóficos que o norteiam e que são apresentados com grande clareza ontológica. O mais interessante em Onfray, para além de uma honestidade e seriedade que podemos sentir em todas as ideias apresentadas nas perto de 500 páginas de «Cosmos», é o seu apego ao materialismo. Não um materialismo básico, daquele que nos reenvia para a mesma fé cega das igrejas e mesquitas ou do monoteísmo das religiões do livro, mas, paradoxalmente, para um materialismo primitivo, hedonista, epicurista, cosmológico. É neste sentido que nos identificamos com as propostas de Michel Onfray porque não cai na vulgaridade, embora não seja nada meigo para com o legado judaico-cristão. Legado esse que ainda é observado em múltiplas reminiscências quer na filosofia, quer na arte contemporânea, mesmo naqueles que propõem o afastamento das religiões. Não é contraditório. É, antes, complexo tudo isto e o olhar de Onfray remete-se para essas pequenas grandes manifestações em que a religiosidade é apanhada em falta, envolvendo-nos na sua negatividade com uma capa de «provocação» e «novidade». A proposta de uma ontologia materialista, sub-título de «Cosmos», não é fácil: a vida em comunidade com o cosmos, com o universo é muito mais difícil de interiorizar do que ir à missa e crer em algo impossível de provar a existência. A materialidade do universo está connosco e não só com o corpo, mas com os átomos de que tudo é feito. Para lá caminhamos (para o universo) e essa fusão final está carregada de uma ontologia que vem dos inícios dos tempos da Humanidade. Basta conhecê-la e compreendê-la, por vezes afastando-nos das pesquisas oficiais e académicas, e preparar a vida merecida de ser vivida em comunidade activa com a Natureza e com os outros. A minha proposta é conhecer esta obra com alguns trechos breves e escolhidos no desejo que seja lido na íntegra.

Sobre o tempo:
«(...) O esquecimento do tempo virgiliano é causa e consequência do niilismo da nossa época. Ignorar os ciclos da natureza, desconhecer os movimentos das estações e viver apenas no betão e no betume das cidades, no aço e no vidro, nunca ter visto um prado, um ampo, uma mata, uma floresta, uma mata de corte, uma vinha, uma pastagem, um rio é já viver no jazigo de cimento que um dia alojará um corpo que nada terá conhecido do mundo. Assim, como encontrar o nosso lugar no cosmos, na natureza, na vida, na nossa vida, se vivemos num mundo de motores poluentes, de luzes eléctricas, de ondas insidiosas, de sistemas de viodeovigilância, de ruas alcatroadas, de passeios cheios de dejectos de animais? Sem outra relação com o mundo senão a de um objecto num mundo de objectos, é impossível sair do niilismo.» (páginas 30 e 31)

Sobre  a «construção de um contratempo»:
«(...) este tempo dissociado das suas ligações ao passado e ao futuro, este tempo não dialéctico, este tempo intemporal define o tempo morto. Vivemos no tempo morto construído pelas máquinas de virtualizar o real. (...) Este tempo morto, portanto, nada mais permite que não a morte. Não é o tempo suspenso do místico pagão ou do sábio que sabe alcançar o sublime, o êxtase e o sentimento oceânico, mas a presença vazia e oca neste mundo como se fosse já um nada. Da mesma maneira que encontramos o silêncio no próprio coração da música descascada como uma cebola, encontramos a morte quando retiramos as escamas deste tempo do niilismo. No vazio mais íntimo do plano da televisão, na sinuosidade mais indetectável da fala radiofónica, no epicentro da mensagem do Twitter ou de correio electrónico, só há magia, ilusão, ficção tomada por realidade - a realidade, a única realidade. Somos sombras que vivemos num teatro de sombras. A nossa vida é geralmente a morte.» (Pág. 109)

Sobre Nietzsche:
«Nietzsche, justamente. Quem quiser sabe, agora sabe: A Vontade do Poder não é um livro de Nietzsche, mas um produto de marketing e de política antissemita e fascista posto no mercado pela sua irmã amiga do Duce e de Adolfo Hitler. Há tudo e o seu contrário neste livro volumoso confeccionado com notas de leitura, citações de autores não referenciadas, pistas de trabalho, esboços de demonstração, ensaios de pensamento, tentativas de reflexão abortadas e até, provavelmente, acrescentos da irmã do filósofo sob o pretexto de recopiar as páginas manuscritas perdidas (!) do irmão - tudo menos aquilo que define habitualmente um livro.» (pág.112)

Sobre o «vitalismo»:
«O Ocidente tem dificuldade em olhar de frente a materialidade da natureza e em encarar o que subsistiria de culturas vitalistas no planeta. O cristianismo praticou um etnocídio planetário a partir de 1492. As civilizações ameríndias do Norte, de Centro e do Sul, os índios e os Maias, os Astecas e os Olmecas, os Maias e os Toltecas, os Zapotecas e os Mixtecas, as civilizações árticas inuítes, as numerosas civilizações africanas colonizadas e depois destruídas pelos militares e missionários vindos dos países europeus, como a França, a Bélgica, a Alemanha, a Inglaterra, o islamismo, também destruidor da cultura dos países que conquistou, todos esses povos que mantêm uma relação sagrada com a natureza e não com o seu hipotético criador.
Antes das devastações efectuadas pelo Ocidente, a África foi a grande terra do sagrado na natureza e da natureza no sagrado, sem que houvesse transcendência alienante: os espíritos dos mortos viviam entre os vivos e vice-versa, tudo nesta terra (...).» (pág.125)

segunda-feira, novembro 06, 2023

«Os Palestinianos», artigo de Jean Genet em 1971 para a Revista Zoom. Em «L'Ennemi Déclaré», Gallimard

Fedayn palestiniano em treino da OLP num campo da Jordânia. 1969
Foto de Bruno Barbey (1941-2020) Magnum

Este artigo de Jean Genet (1910-1986) saíu na Revista Zoom,  no longínquo ano de 1971, tendo como base a exposição fotográfica, em Paris e sobre a Palestina, de Bruno Barbey, um fotojornalista que fez vários trabalhos para a Magnum. Vista a exposição por Genet publica-se agora parte desse artigo que fui encontrar no livro da Gallimard de 1991 - «L'Ennemi Déclaré» todo dedicado a entrevistas e pequenos artigos de jornais de Jean Genet e sob a responsabilidade de Albert Dichy. A foto exposta aqui é referida explicitamente pelo autor. Aqui fica a tradução (possível) do francês:

    «(...) Dois mil anos de humilhações permitiram compreender os comportamentos - ou os mecanismos - da Psicologia e a sua utilidade à distância cronológica. Dois mil anos passados em guetos, ou sob falsa identidade civil, os judeus foram ameaçados de extermínio. Conhecem agora as mentiras dos que foram os seus mestres. Satânica ou divina, a Igreja Católica bate-os aos pontos em hipocrisia, em chantagem evangélica e em ameaças. Era necessário esperar. A contrapartida aos vexames é o conhecimento dos actos dos poderosos. Aqui cumprem-se agora dois mil anos de diáspora, morta a infame lenda de cobardia física. Os judeus não querem nem desaparecer, nem serem ''assimilados''. A nação judaica terá o seu território. Onde? No que é ainda, talvez, colonizável. Procura-se. Talvez no Uganda, na Argentina, na Rússia, mas Herzl tem o seu projecto, o retorno à ''terra prometida''. E, segundo a História escrita por um idiota mas ensinada às crianças, se os Judeus foram expulsos pelos romanos, os árabes pagarão por isso. A Palestina, camponesa, populosa, empobrecida pela administração otomana, resistirá às infiltrações de Judeus do mundo inteiro e finalmente enganada e dominada pelos ingleses em acordo com os movimentos sionistas nascentes, será invadida. Muito antes, mas sobretudo entre 1880 e 1940, na Europa cristã ou laica, o antissemitismo desenvolver-se-á entre pequenos progroms até Dachau e Auschwitz. A Europa massacra ou ameaça os Judeus quando, simultaneamente, Judeus massacram e ameaçam os árabes com a ajuda de soldados ingleses que pretendem uma ligação ao Médio Oriente de modo a proteger a rota da Índia. Desprezo, repressão, compra usurária, confisco de terras cultiváveis. Os Judeus aterrorizam, matam os árabes. Que europeu poderá reagir a isto?: a França mata os árabes da África do Norte, os malgaches, os indochineses, os negros de África subsaariana. A Inglaterra faz precisamente o mesmo fora do seu território. A Bélgica também. A Holanda na Indonésia, a Alemanha no Togo, a Itália na Etiópia e na Tripolitânia [Líbia], a Espanha em Marrocos, Portugal, nós sabemos onde (sic). Os sionistas são culpados e a Europa inteira é culpada do sionismo. Quando a Europa está obrigada a terminar com o colonialismo, a arte clássica da substituição, Israel soube descolar-se habilmente da protecção britânica para se prover, com bastante astúcia, sob o manto protector americano.
    Os palestinianos, massacrados no seu próprio território, pegaram em armas para lá retornarem. Mas a Palestina tem agora o nome de Israel. Os palestinianos estão vivos. Encontrarão a Palestina, mas após um longo percurso que os obrigará, talvez, a conseguir provocar a revolução em todo o mundo árabe. O que não diz o feddaïn - o mártir - que se vê na imagem, é que ele sabe que não verá essa revolução cumprida, mas que a sua própria vitória é de a ter começado. Talvez ele não saiba que a sua imagem, malgrado os boicotes sionistas, vos está a ser facultada. Quanto a Israel, imaginado no final do século XIX para segurança, segundo é dito, dos Judeus tornar-se-á, bastante rapidamente, naquela parte da Ásia, a maior ofensiva e ameaça imperialista ocidental.» (páginas 89 e 90)

«Fome», Knut Hamsun

 


Cavalo de Ferro, 5ª edição, 2022. Tradução do norueguês de Liliete Martins

A fome tal como ela é. Este livro do norueguês nobelizado em 1920 e falecido na miséria em 1952 devido às suas simpatias nazis durante a II Guerra Mundial (não foi o único na Noruega, antes pelo contrário, mas disso já tratámos aqui) é de uma violência nada condizente com a chamada sociedade de abundância com que vivemos hoje no Ocidente. Mas que ela existe, existe. Anda por aí, disfarçada, e como tema ou experiência é arredada para debaixo do tapete como em qualquer sociedade de bons costumes liberais que se preze. Tenhamos a noção, ao acabar de ler este livro, que a fome descrita desta maneira crua, só pode ter sido vivida por quem a sentiu e desesperou com ela: a fome. Tanto física, como psíquica a fome apresenta-se com toda a verdade que lhe é inerente. Não há escapatória ou purgante para a fome. O desespero de quem não tem hipótese de comer naquele momento e, pior, de quem não vê qualquer perspectiva de o fazer num futuro próximo. A contagem dos cêntimos, a venda de produtos colados ao corpo, por vezes a venda do próprio corpo ou dos órgãos, a riqueza imensa de ter um bocado de pão mesmo recesso. O esvaziar lento dos valores de sociabilidade, o ódio crescente aos passantes, a todos nós chega a invectiva de quem tem fome. A fome fica, permanece, não será nunca esquecida por quem a viveu, nem que fosse por um só dia.

    «Entrei e voltei a subir. O coração batia-me violentamente. 
    Entrei furtivamente na passagem Smedgangen o mais fundo que pude chegar e parei diante de um portão deteriorado, junto de um pátio traseiro. Não se via qualquer luz em parte alguma, à minha volta estava escuro, felizmente. Pus-me a roer o osso.
    O osso não sabia a nada, mas soltava um cheiro áspero a sangue e tive de vomitar logo a seguir. Tentei de novo. se ao menos conseguisse aguentá-lo no estômago, faria de certo algum efeito; tratava-se de lograr que se mantivesse lá dentro. Mas voltei a vomitar. Zanguei-me e mordi a carne com brusquidão, arranquei um pedacinho e engoli-o violentamente. Não me serviu de nada; assim que as migalhinhas de carne tinham aquecido no estômago, lá vinham elas para cima outra vez. Cerrei os punhos com louca exasperação, desatei a chorar desamparado e roí como um possesso. Chorei, vi o osso ficar molhado e sujo pelas lágrimas, vomitei, praguejei e voltei a roer. Em voz alta amaldiçoei todos os poderes do mundo e mandei-os para o inferno.
    Silêncio. Nem uma pessoa por perto, nem uma luz, nem um ruído. Encontrava-me numa violenta agitação dos sentidos, a minha respiração era pesada e ruidosa e eu chorava pungentemente de cada vez que era forçado a vomitar aquelas migalhas de carne que talvez pudessem dar-me um pouco de alimento. Como não foi possível de todo, por mais que tentasse, arremessei o osso contra o portão, impotente de raiva; a fúria pôs-me desvairado, ameacei e gritei violentamente contra o céu, berrei o nome de Deus com voz rouca e cortante e curvei os dedos como garras...
    - Digo-te, ó divino Baal do céu, que tu não existes; e se  existisses, eu amaldiçoar-te-ia de tal modo que o teu céu seria assolado pelo fogo dos infernos. Digo-te que te ofereci os meus serviços e tu recusaste, digo-te que me afastaste de ti e que agora te viro as costas para todo o sempre, porque não te apeteceu manteres-te informado das tuas horas de visita. Digo-te que sei que vou morrer e, no entanto, ó Deus do Céu e Ápis, ouso afrontar-te com a morte nos dentes. Digo-te que prefiro ser lacaio no Inferno a homem livre nos teus domínios; digo-te que nutro o mais glorioso desprezo pelo teu ridículo Céu e que prefiro escolher para eterna morada o abismo, para onde são empurrados Satanás, Judas e o Faraó. Digo-te que o Céu está cheio de todos os idiotas, com as cabeças mais boçais deste reino terreno, e de indigentes espirituais, e digo-te que encheste o Céu com todas as gordas meretrizes daqui de baixo, quem na hora da sua morte, ajoelharam perante ti por cobardia. Digo-te que tens usado de violência contra mim, mas não sabes ó Nulidade do saber absoluto, que jamais me curvarei na adversidade. (...)» (páginas 133 e 134)

Este continuum de impropérios ao criador (não acaba aqui) lembra em grande parte Nietzsche o que não será, de todo, surpreendente sendo o autor quem foi. Mas todo o livro é uma descrição verdadeiramente impressionante sobre a fome que anda sempre junto com a pobreza. À fome, às alucinações provocadas por ela, ao delírio dos sonhos e de sonos mal dormidos, à agressividade latente de quem jejua por falta de dinheiro, juntam-se os lugares desprovidos de aquecimento, a humidade e o frio e vento cortantes como facas. As feridas que não saram por fraqueza geral do corpo já não imune. Mais grave ainda é a indiferença das pessoas. Se a vida de um jovem escritor em princípio de carreira, nos finais do século XIX, é descrita por Knut Hamsun como um ataque elaborado aos nossos sentidos, conseguiu-o plenamente. Cumpriu o seu papel como objecto literário. E isso importa.

quinta-feira, novembro 02, 2023

«Cáustico Lunar, seguido de Ghostkeeper», de Malcolm Lowry


Sistema Solar, 2019. Tradução e apresentação de Aníbal Fernandes
Sobre o período mais decadente de Lowry já se falou aqui e a maioria de vós já o conhece. Este «Cáustico Lunar» tem, contudo, uma particularidade que devemos valorizar: o tratamento psiquiátrico que era dado aos chamados «marginais» ou simplesmente incómodos para a sociedade do século XX. «Cáustico Lunar» descreve-nos uma descida a um inferno seráfico, tão hipócrita como violento nos seus pressupostos, incutidos sempre por «pessoas de bem» e a coberto da ciência médica que internavam homens e mulheres em instituições criadas inteiramente para os aprisionar e afastar dos «normais». Doentes ou não, pouco importava desde que a família pagasse o internamento ou que os juízes da lei obrigassem à exclusão social e à tortura dos «doidos». Foi assim com Lowry que tornou «Cáustico Lunar» um título incontornável sobre a psiquiatria prisional e que retrata a sua experiência como alcoólico que tenta, em fim de ciclo e em desespero, a sua própria recuperação; que não consegue, aliás, e, segundo Aníbal Fernandes que mais uma vez faz acompanhar um livro de Lowry numa excelente apresentação do autor, resgata essa prisão com uma bebedeira de 48 horas seguidas. Mas porquê este título «Cáustico Lunar» que sempre me activou a curiosidade sem que eu conseguisse encontrar uma explicação convincente? Aproveito a apresentação de Aníbal Fernandes que aí nos esclarece o título deste conto a todos os títulos inesquecível:

«Todas as línguas têm destas coisas. Por isso um alquimista -  alquimista que andava aos sais - misturou o ácido e a base, precipitou uma maciez branca que assentava em flocos no fundo da proveta, e daí nasceu a tentação de um nome acasalado com o céu e terra, sublime, e daí aconteceu um sal que, sossegado na secura da linguagem técnica com a designação insípida e química de «nitrato de prata», soube fabricar um nimbo, soprar-se ao mesmo tempo gelado e quente, obrigando o alquimista a baptizá-lo de:
Cáustico Lunar.
(Neste passo o tradutor hesita, com a bic parada no ar.)
Pois não quis o autor Lowry pedir ao cáustico lunar o nitrato nem a prata, antes o sentido perverso que lá desencantou e soube trazer ao de cima, e vingá-lo gloriosamente de uma injusta subalternidade. Se é nitrato e mancha a pele de negro, diz à letra que é cáustico e lunar; prevê um acto corrosivo e a matéria causticada com assombrações de lua, com lunáticos; quer isto dizer que será, por metáfora, os do manicómio.
Há, assim, os corrosivos solares que ardem, queimam e destroem<, mas este outro - lunar - que procede com a lua, em silêncio e com luz fria, mesmo quando inspira fúria. Os lunáticos sofrem com um cáustico de lua.» (páginas 5 e 6 da apresentação de Aníbal Fernandes).

«Ghostkeeper» é outra coisa. Mas está bem acompanhado com «Cáustico Lunar», visto que, coisa comum aos dois contos, trata de impossibilidades; de travagens no processo criativo da escrita que muitos deveriam obrigatoriamente ler, principalmente os que se abalançam a fazê-lo, mesmo que para isso lhes faltem atributos. Leiam este extracto que escolhi de «Ghostkeeper»:

«Agarra num papel, num lápis; e, tomado pelo frenesi que o inspira, senta-se e escreve. Tinha de pôr toda a subectividade de lado e contar a história exactamente como acontecera; ou antes, exactamente como ainda não tinha contecido até a fim. É porém estranho o que sucede quando tenta escrevê-la. A falta de material costumava deixá-lo aborrecido e doente, mas agora tem-no numa quantidade muito superior à necessária. (Talvez haja aqui uma parte inicial em diálogo, excitado e entusiasmado, com Mary).
Mas as coisas não são bem assim. Todos os jornalistas trabalham a partir de uma base que é uma pletora de materiais, e fazem aí a sua selecção; durante muito tempo ele próprio se disciplinou para passar ao papel as suas quinhentas palavras diárias. Além disso, os contistas que mais admirava, o O'Flaherty dos primeiros tempos, o Tchekov, o Sodeborg, o Jensen, o Pontoppidan, o irlandês James Stern, O Hermann Bang, o Flaubert dos textos breves, o Maugham, O Pieskov, o Kataev, até o Faulkner de uma ou duas histórias, o James Thurber, O Bunin, o Saroyan, o Hoffmansthall, o autor do livro de Job que só Deus sabe quem é, todos estes escritores visavam a economia de palavras, mesmo que às vezes a não alcançassem. (...)» (páginas 138, 139).