quarta-feira, fevereiro 24, 2021

Dos tempos que correm: «Viagem à roda do meu quarto», de Xavier de Maistre


Calma gentes!, De Maistre, Xavier de seu nome, que, previdente nas suas primeiras edições assinava somente com X, é irmão de Joseph, o tal de má companhia e péssimos pensamentos, da índole de um Bossuet mas para pior... Este senhor é somente um romântico empedernido, com vida complicada, fora do penico institucional, marcado por alguma libertinagem, combates nas guerras europeias e algo errante, o que desdiz a obra que o marcou: «Viagem à roda do meu quarto», de 1795.

Quis a época e o estado lastimoso do confinamento perpétuo que eu me dedicasse um pouco a este livrinho esgotado, tão bem elaborado que dá gosto tocar nele, embora exista outro da Tinta-da-China que ainda se vende por aí. Este, uma edição belíssima, encontra-se esgotado.

Comecemos a viagem então. Analisemos as causas do périplo e o aviso sensato do autor: «Iniciei e terminei uma viagem de quarenta e dois dias à roda do meu quarto. (...) Sente o meu coração uma satisfação inexprimível quando penso no número infinito de infelizes a quem ofereço um meio garantido contra o tédio e um alívio para os males de que sofrem. O prazer que se encontra ao viajar no próprio quarto está ao abrigo da inquieta inveja dos homens; é independente da fortuna.» 

Nós, hoje, cidadãos do século XXI, enclausurados contra vontade sabemo-lo bem, quer pelas viagens intermináveis que poderão não serem apenas num pequeno quarto ou numa casa inteira, quer também pela ultrapassagem miserável dos quarenta e dois dias enfiados entre paredes. Onde já vão os quarenta e dois dias? Meses de confinamento dão para sentirmo-nos verdadeiramente incomodados e aterrados ao sairmos, fugindo à polícia, para respirarmos o ar do mar e do verde de um parque. Já conseguimos ser felizes dentro dos nossos quartos! Grande De Maistre!

Será possível esquadrinhar a topografia de um quarto? Principalmente quando se permanece nele quarenta e dois dias? Para De Maistre, é! Vejamos: «O meu quarto situa-se a quarenta e cinco graus de latitude, segundo as medições do Padre Beccaria; está orientado na direcção levante-poente; forma um quadrilongo de trinta e seis passos em volta, bem rentes à parede. A minha viagem, todavia, comportará mais, pois irei atravessá-lo muitas vezes de um lado ao outro, ou então diagonalmente, sem seguir regra ou método. - Farei mesmo ziguezagues e todas as linhas possíveis em geometria, se necessidade houver.» E depois perora sobre a infelicidade das pessoas que são muito donas dos seus passos e das suas ideias e que promovem planos rígidos das tarefas diárias. Não, De Maistre, homem moderno do início do século XIX, vê, com grande entusiasmo, a liberdade irónica aposta num simples quarto.

Depois de alguns voos metafísicos de quem não esquece os tempos passados na cama, as recordações que trazem à memória e testemunha (a cama) dos mais elevados estados de espírito, tantos quantos os momentos de depressão, lembra-nos que a obra versa sobre um périplo à volta do quarto, não sendo um mero exercício de solidão. Portanto, é com gosto que vemos passar à nossa frente e pelos nossos olhos a Madame de Hautcastel, a musa do escritor que se lhe refere, através do retrato, deste modo: «Ali, a minha mão tinha-se apoderado maquinalmente do retrato da Sra. de Hautcastel, e o outro (Xavier De Maistre, caracteriza-se como sendo duplo: um ser pensante e o animal) divertia-se a limpar o pó que o cobria. - Tal ocupação proporcionava-lhe um prazer tranquilo, que se fazia sentir na minha alma, muito embora esta estivesse perdida nas vastas planícies do céu.» Lembrem-se que ele era um romântico! Agora vem aí o animal, o tal outro, em cadência acelerada: «(...)interessando-se sempre mais pelo trabalho, pensou em pegar numa esponja molhada posta à sua disposição e em passá-la subitamente sobre as sobrancelhas e os olhos, - sobre o nariz, - sobre as faces, - sobre aquela boca; ah, meu Deus! o coração bate-me: sobre o queixo, sobre o peito: foi questão de um instante; todo o rosto pareceu renascer e sair do nada. - A minha alma precipitou-se do céu como uma estrela cadente; encontrou o outro num êxtase arrebatado que conseguiu aumentar, partilhando-o.» 

Digam agora que Xavier De Maistre era um romântico! Por testemunhas destes devaneios no quarto ainda estavam presentes Joannetti, um criado cujas humilhações o autor não compreende como as suporta, mesmo sendo ele a cometê-las, e a sua cadela Rosine, muito mais bem tratada que o primeiro, diga-se. 

E mais não escrevo, que isto de estar confinado no início século XIX era bem mais perigoso do que se pensa. Um clássico a ler nos tempos que correm. Um verdadeiro mapa de passos confinados.

Editora &etc, Maio de 2002
Esgotado

António Luís Catarino
24 de Março de 2021


sábado, fevereiro 20, 2021

Os buxos do império para onde merecem!

 

E Portugal continua, imparável, na senda da defesa dos buxos do Império! 
Pessoalmente tenho uma vaga ideia onde poderão enfiar os ditos buxos.

quinta-feira, fevereiro 18, 2021

A «culpa» de Mamadou Ba e os intelectuais indignados

Não vou falar da minha repugnância em observar a subida de Marcelino da Mata a um qualquer panteão onde o querem colocar. Tinha eu 14 ou 15 anos e já ouvia falar das façanhas «heróicas» deste indivíduo em pleno conflito na Guiné. Se o TPI, consequência institucional do Estatuto de Roma de 1998, tivesse existido durante a guerra colonial Marcelino da Mata iria lá parar, possivelmente com pena perpétua. Mas o fascismo encobriu-o com o alto patrocínio da PIDE e de Salazar, mesmo contra a opinião de membros do exército colonial enojados com os relatórios das suas acções criminosas. 

Mas a caixa de Pandora abriu-se e agora Mamadou Ba vê-se na contingência de ser insultado como nunca antes o fora (e foi muitas vezes) por uma miríade de fascistas, grunhos, racistas, ignorantes e imbecis que serão à volta de, a esta altura, vinte mil. Sejam quinhentos mil e continuarão tão estúpidos quantos os que assinaram uma petição mal escrita, em português sofrível, mas cujos intuitos são claros: a deportação de um cidadão português de origem senegalesa, juntando assim a anterior tentativa de igual deportação de Joacine Katar Moreira, outra portuguesa de origem guineense. 

O delito é não só de opinião e poder-nos-emos interrogar se é de facto isso que move aquela gente. O delito de Mamadou Ba é ser negro. E de citar Frantz Fanon. E de colocar o colonialismo, as suas raízes e o seu ramos subliminares no comportamento das sociedades europeias, no centro da sua acção política. Portugal é tão racista como os outros racistas. Gilberto Freire e a bonomia do seu luso-tropicalismo ficou e permaneceu num país demasiado tempo fascista e corporativista. Por causa desta teoria, este país fez a triste figura de ver cair o último império da Terra sem grandeza ou orgulho como nos querem fazer passar a mensagem. Sem contar com o genocídio inquisitorial secular. Ou como Ramalho Eanes que há dias declarou, melancólico, que sem o império seríamos uma Catalunha qualquer! Pois não somos, não. Mamadou Ba pôs o dedo nas feridas ainda abertas do domínio ocidental nas colónias portuguesas. E sentimo-nos incomodados com o que diz, embora, para mim, isso seja salutar como forma de encontrarmo-nos como povo duas vezes violentado. Pelo fascismo elevado a estado durante 48 anos com o seu rol de arbitrariedades e de violências cobardes de quem dispõe de força bruta e a usa sem grandes problemas de ética cristã e igualmente por um império de papel em que outros, mais fortes, tiravam todo o proveito. 

Não se admirem de ver intelectuais «de esquerda» nesta onda racista contra Mamadou Ba. Eles existem e estão por aí, abrindo, ou melhor, escancarando portas para o ataque violentíssimo ao responsável do SOS Racismo pela direita, quer seja ela «civilizada» ou ultra. E não falo de Fátima Bonifácio, José Manuel Fernandes, Rui Ramos, João Miguel Tavares ou outros, mais soturnos, que vão subindo a escada universitária pela Nova Portugalidade muito mais perigosa que os «chegas» deste país. 

Estou a referir-me a um indivíduo em particular: a Guilherme Valente que fez um dos libelos anti-Mamadou mais violentos que alguma vez eu li, com ampla mediatização pelo Expresso e sem possibilidade de este se defender. Isto logo em 22 de Dezembro de 2020! Um editor, dito amante da cultura, dito antifascista e anti-racista, editor da Gradiva, auto-denominado igualmente de «ser humano» e com «amigos de origem africana» (claro!) afirma nesse artigo coisas destas: «O Senhor Mamadou Ba é um perigo público. Um racista à solta que as autoridades fingem ignorar e a justiça e as leis deixam impune. Racista desde logo porque para ele só há racismo ''branco''.» E continua imparável: «O racista (já expliquei porquê) Mamadou Ba volta a chamar racistas às nossas instituições, as nossas leis, aos portugueses. Continuarão em silêncio os ''racistas'' PGR, ministra da Justiça, primeiro-ministro, deputados da AR, Presidente da República?». Mas Guilherme Valente não tem medo: «A mim não me dividirá Mamadou Ba: estou ao lado dos meus compatriotas e amigos Portugueses de origem africana.» Certamente contará com a presença do espírito de Marcelino da Mata! E o excelso editor, magoado, pela não deportação de Mamadou e possivelmente de Joacine, remata: «Pode agora o Senhor Mamadou Ba afirmar-se perseguido e mártir, como já começou a fazer, mas essa treta não pegará. Se quer passar por mártir e herói vá para África ou para o Médio Oriente (...)».

Querem mais exemplos de como construir um clima de ódio e perseguição a uma pessoa como Mamadou Ba? Assim se abrem portas para «Preto, vai para a tua terra!» e nos mostramos em toda o esplendor imperial e colonial que povoam muitas cabeças. E pretensiosamente pensantes. È deles que eu tenho receio. 

António Luís Catarino

18 de Fevereiro de 2021


sábado, fevereiro 13, 2021

Centro histórico de Bergen, Noruega. Scketchbook a preto e branco.

 

Bergen, uma cidade da Noruega de que gostei muito, desenhado e aguarelado em preto e branco, por mim. É o seu centro histórico. Tudo o que se vê, tal como em desenhos anteriores que publiquei aqui, foi bombardeado pelos nazis em 1943, segundo me disseram. Só restaram duas casas de madeira do século XVI da velha Hansa e que eu visitei igualmente.

terça-feira, fevereiro 09, 2021

Bergen, Noruega. Aguarela

 


Aguarela de Bergen, Noruega. Centro histórico em Junho 2018

Feito em 6 de Fevereiro de 2021

segunda-feira, fevereiro 08, 2021

«O Eclipse da Razão», de Max Horkheimer

 

Antígona, 2015. Tradução de João Tiago Proença

Livro datado no tempo, mas ainda assim actual. No sentido em que a análise que faz da sociedade capitalista e do seu sistema de produção provoca o aparecimento da alienação. A Razão, quer objectiva, quer subjectiva não produz nenhuma superação da democracia por uma incapacidade teórica baseada nos pressupostos da Revolução Francesa e, antes, pelo sistema iluminista que a provocou, provavelmente sem a querer.

Assim, o ideal tão hipócrita da Igualdade, Liberdade e Fraternidade soçobrou perante a avidez liberal-capitalista responsável pela destruição da Natureza e, por consequência, do próprio ser humano. A Razão alcandorou-se no pragmatismo e no bom-senso desígnios tão burgueses, quanto dominadores. Sem compreenderem, porém, que estes mesmo valores são causas da sua própria destruição, porque incitam a Razão à democracia e à sua perversão, ou seja ao campo totalitário e fascista-nazi. Todo o democrata que provoca guerras (e continuam a ser constantes pelo domínio imperial-capitalista) tem igual razão convocada em nome da verdade, como o nazi que estabelece e coordena o holocausto, a guerra genocida e o horror em nome da mesma verdade e objectivo racional.

O pragmatismo, contudo, nem só dos sistemas políticos vive. Igualmente terá os seus dias contados a religião que à custa de ser pragmática e utilizando o bom senso no decorrer de 2000 anos, vê os seus crentes boquiabertos, ao verem o que eram verdadeiras heresias ainda há poucos anos serem transformadas em encíclicas papais. A modernidade oblige. Tal como os ateus que, acreditando num ser supremo, como Voltaire, ele próprio um papa do Iluminismo, também ele um pragmático que se socorria de dar a Razão aos iluminados nobres e burgueses, retirando essa prebenda ao povo. Infelizmente os seus seguidores tiveram de aceitar por meio de revoltas irreversíveis a ascensão popular e o voto universal. 

Hoje, não se fez ainda a superação da democracia racional e iluminada, nem do capitalismo e dos meios de produção que recorre através da alienação. No entanto, Horkheimer não transforma, não propõe, até resiste ao activismo, opondo-se ao «velho» Marx que rogava, e até certo ponto construiu, uma filosofia transformadora, portanto, não contemplativa como até aí. Percebe-se até certo ponto. O filósofo da Escola de Frankfurt pretende voltar à filosofia como um sistema de pensamento especulativo, germinal que vele pelas aspirações livres da humanidade e do indivíduo. Por isso, ou talvez por isso, confronta o anti-intelectualismo e ignorância bem presente tanto na cultura de massas como à brutalidade fascista inerente. 

Falecido em 1973, como veria ele hoje, que tanto criticou, já em 1946, o domínio e alienação do Homem pela tecnologia, a sociedade contemporânea? Sociedade essa que colocou panópticos em satélites que podem vasculhar (e vasculham mesmo) a nossa vida mais recôndita? 

António Luís Catarino

«Paraíso e Inferno», de Jón Kalman Stefánsson

 

Edição da Cavalo de Ferro, 2013

Frio como tudo, não fosse Bárdur a personagem primeira do livro de Jón Stefánsson ter morrido de hipotermia no mar revolto do Ártico. Estamos na Islândia do século XIX e acompanha-nos esse clima gelado, mesmo quando desponta a primavera, e um amigo, Gúdrun, ou «o rapaz», como lhe passou a chamar o autor, desse pescador morto tragicamente porque se esqueceu de um simples impermeável na faina, se dispõe a atravessar montanhas geladas para devolver «O Paraíso Perdido», de Milton, a Holsteinn, um alemão cego (tal como Milton) e que este tinha emprestado a Bárdur. A errância de um local para outro é tão soturna quanto aos lugares que vai habitando. As personagens seguem-se num ritmo lesto, como quem bate os pés na neve para os não deixar frios ou mexermo-nos constantemente de modo a fazer circular o sangue. E a cerveja mais o vinho que correm nas tabernas. Mas é um livro triste, sem esperança. Só aparece algum conforto com mulheres de estranhos nomes, sardentas, louras ou de cabelos negros. Geirprúdur, Helga, Andrea, Gíslí, Torfhildur ou Ólafía esperam pelos homens que se afogam amiúde e recebem maridos como quem colecciona arenques ou bacalhaus. Talvez o autor queira insinuar uma sociedade matriarcal. E fala-se da morte como uma espécie de companhia permanente desses ilhéus viquingues. E de palavras também. Regista-se:
«As palavras são flechas, balas, pássaros mitológicos que perseguem deuses, as palavras são peixes com muitos milhares de anos que descobrem algo terrível nas profundezas, são redes suficientemente vastas para prenderem o mundo e também o céu, mas, por vezes, as palavras não são nada, roupa rasgada que o frio penetra, uma ameia desmoronada por cima da qual saltam ligeiramente a morte e a infelicidade.» (pág. 163)
Embora o Atlântico que banha o meu país, seja a continuidade sul do Ártico, juro que nunca tinha percebido as palavras desta maneira.

Sendo este o primeiro romance de Stefánsson e editado em 2013 em Portugal continuaremos a saga com «A Tristeza dos Anjos» já nas nossas mãos. Mas comparar este romance com «Moby Dick» ou «O Velho e o Mar», como fazem realçar os editores na badana da capa, não será um pouco exagerado?

António Luís Catarino