domingo, abril 30, 2023

«A Conspiração dos Iguais», de Ilya Ehrenburg. Sobre a morte de Babeuf

 


Edições Dinossauro, 2004. Tradução e Introdução de Francisco Martins Rodrigues

Como nos lembra Francisco Martins Rodrigues na Introdução esta edição de Ilya Ehrenburg baseia-se na de Philippe Buonarroti que, em 1828, publica em Bruxelas «La Conspiration pour L'Égalité, dite de Babeuf». 

Nessa Introdução é lembrado que Babeuf será provavelmente exemplo único de um comunismo libertário ou anarquista (eu não lhe chamaria «primitivo») que durante a Revolução Francesa teve o apoio incondicional das vastas camadas populares de Paris e que nunca se reviu no Directório que mandou matar Babeuf e Darthé, enviar para o exílio em Caiena quer Buonarroti, quer Germain e Goujon, Duroy, Soubrani, Javogues entre muitos outros. A sua referência era sem dúvida a Constituição de 1793 que praticamente nunca foi posta em prática devido ao seu carácter «comunista», alguns montanheses e as comunas dos 12 departamentos de Paris organizadas pelos sans-culottes e pelas mulheres dos Bairros de Antoine e Marceau, vanguardas do povo de que a burguesia sempre desconfiou e tentou derrotar.

Sobre Ilya Ehrenburg, Francisco Martins Rodrigues dá-nos uma ideia clara. Escritor soviético, falecido em 1967, assistiu aos processos de Moscovo teleguiados por Estaline «(...) não é difícil encontrar nesta Conspiração dos Iguais, a propósito do Terror da Revolução Francesa, alusões transparentes ao Terror ditatorial dos anos 30 na União Soviética.» Não estou aqui para uma análise da qualidade literária de Ehrenburg (nunca o fiz nestas fichas de leitura, nem tenho pretensões a crítico seja do que for), mas creio que o registo do autor se aproxima mais do jornalismo do que literatura. Mas é um estilo que se lê com soltura perante uma tragédia anunciada que foi a conspiração dos Iguais de Babeuf e Buonarroti em 1796 já no fim da Revolução Francesa de 1789. Pode dizer-se com certeza que a História confere que foi com esta conspiração que terminou, de facto, toda a qualquer tentativa de a transformar em algo mais do que uma República burguesa, realista, a que Napoleão deu forma logo a seguir.

Babeuf morre guilhotinado, através de uma traição de um tal Grisel teleguiada por Barras (um dos 5 membros do Directório) que se infiltra na insurreição preparada pelos Iguais. Será pago, mais tarde com umas míseras 30 libras (doce ironia bíblica)! O Tribuno do Povo (como era conhecido devido ao título do seu Jornal), Gracchus Babeuf, morre, portanto, a 8 de Pradial do ano V, ou, pelo antigo calendário gregoriano, a 27 de Maio de 1797, com 37 anos de idade. Antes, em pleno tribunal, ao conhecer a sentença da guilhotina e depois do Directório ter influenciado um dos jurados que quase absolviam os Iguais, tenta o suicídio juntamente com Darthés, embora mal-sucedidos. Mantêm-nos vivos até à guilhotina. Paris pobre chorou-o, admirou a sua coragem e a sua coerência, não acreditou nas calúnias que lhe lançaram, mas não se moveu para o libertar. Cansaço da revolução? É possível. Há 7 anos que se seguiam insurreições, revoluções dentro da Revolução, prisões, torturas, massacres e guilhotinas a mais tal como afirmava Babeuf que lutava por uma Sociedade de Felicidade. Marat e Robespierre, Anarchasis Cloots, tal como Danton já não faziam parte do desejo revolucionário. Tinham sido devorados pelo frémito da mudança violenta de um estado para outro. Nada que Babeuf, os Iguais e igualmente o povo de França não soubessem. Entretanto morria-se literalmente à fome, o desemprego tornava-se endémico e a miséria instalava-se. O cair de braços dos mais fracos e dos subalternos também. Talvez por isso os bairros pobres de Paris não reagiram à prisão de Babeuf ou tivessem pressentido o fim próximo. Acabaram por morrer com eles, ou seja, com Babeuf e os Iguais.

A preparação da conspiração:

«Babeuf e os amigos não confiavam nos montagnards (montanheses, deputados de esquerda da Convenção): não são verdadeiros democratas! Enquanto os Iguais reverenciavam a memória de Robespierre, entre os antigos deputados não havia um só que não tivesse ultrajado, depois do Termidor, o ''tirano derrubado''. Em política, contudo, não há lugar para sentimentos, e os Iguais encetaram conversações com os montagnards.
(...) Os montagnards ouviam sem pestanejar as declarações dos Iguais; deixem-nos divertir-se! Outra coisa os preocupava: quem entrará no novo governo? Os Iguais reclamavam a autoridade para os pobres diabos, jornaleiros, operários, artesãos, mas nesse ponto os montagnards eram irredutíveis. Queriam o poder para si. A sua única palavra de ordem era: ''Viva a antiga Convenção!''.
Isto indignava Babeuf:
- Não podemos fazer concessões. faz algum sentido tanta luta para a França voltar a ser governada por essa Convenção a que Robespierre chamou com razão ''Assembleia de Assassinos''? Não, esta gente já tomou o gosto do poder, já molharam os lábios na taça, estão envenenados! Do que precisamos realmente é de forças novas. Precisamos de sans-culottes, gente do povo, não de políticos.» (págs. 134/135)

A defesa em tribunal de Babeuf:

«O processo durou muito tempo. Começara em Ventoso, no tempo dos grandes frios, e já estava no alegre Floreal. Faltava o ar na sala sombria. Fazendo apelo a toda a sua energia, Babeuf leu a defesa. Leu durante dez horas, sem um minuto de descanso. Por fim, falta-lhe a voz. Expõe as suas ideias aos juízes: a lei agrária não é um remédio, só a comunidade dos bens garante a igualdade. Bailly (um dos juízes) desata a rir. (...)
Ele fala agora do perigo que ameaça a República, mas Veillart (outro juiz) interrompe-o:
- Vós quisestes arruinar a República!
- Não! Quisemos salvá-la! A Revolução não deu nada ao povo e o povo começa a odiar a República. Olhai à vossa volta. Que vedes? Indiferença. Os patriotas, ainda ontem intrépidos e ardentes, agora calam-se. Perderam a coragem... Mas a igualdade deve triunfar, triunfará. A Revolução Francesa é apenas a precursora de uma outra revolução, bem maior e mais solena, que será a última; então desaparecerão os limites das propriedades, as vedações, os muros, as prisões, os roubos, os crimes, os enforcamentos, a inveja, a avidez, a traição, a hipocrisia, e esse verme que tudo rói, a cobiça universal...» (págs. 172/173)

sexta-feira, abril 28, 2023

«O Senhor Walser e a Floresta», de Gonçalo M. Tavares

 

Relógio D'Água, 2018. Desenhos de Rachel Caiano
Gonçalo M. Tavares já nos habituou quer ao seu registo, quer às extraordinárias obras que escreve. Provavelmente caso único entre os chamados «novos» autores contemporâneos, tem-se afirmado desde há anos como um dos mais sólidos e coerentes escritores, caso só possível cá no burgo por apresentar uma escrita que tem tanto de pessoal como de honesta. Gonçalo M. Tavares vive no seu mundo, abraça-o, entra por ele adentro e um leitor atento sabe perfeitamente que o que escreve e sente é genuíno. Vive lá e leva-nos, com uma escrita tão precisa como depurada, para o seu mundo. Nós agradecemos, não sabendo bem como retribuir. Mas talvez lendo (antes ou depois, eu prefiro como leitor, ler antes) os seus escritores - e aqui limito-me somente à série do seu Bairro! - seja uma forma tão legítima como outra qualquer de uma relação entre quem tem um livro para com o seu escritor.

Foi o que me aconteceu, a tal ligação entre Robert Walser e Gonçalo M. Tavares, com a leitura de «O Senhor Walser e a Floresta». É evidente que antes li «As Caminhadas com Robert Walser» do Seelig, «Cinza, Agulha Lápis e Fosforozitos», «A Rosa» e «O Ajudante» para ter uma ideia mais geral do que iria encontrar em «O Senhor Walser...» e foi extremamente bonito com o que me deparei. 

Walser tem finalmente uma casa. Ainda assim longe do Bairro imaginado por Gonçalo M. Tavares e com desenhos belíssimos de Rachel Caiano onde «moram» Musil (nunca negou a influência de Walser), Brecht, Eliot, Calvino (que o referiu), Kafka (que o elogiou), Breton, Wittegenstein (que o analisou) e muitos outros que fazem parte do sonho vivíssimo do escritor e também partilhado por nós. Mas, dizia eu, Walser na sua vida real só conheceu praticamente a casa da sua família até aos 19 ou 20 anos, ou até menos, se não estou enganado. Trabalhou em várias casas como secretário, em quartos, e depois viveu em hospícios (perto de 27 anos), sendo o último em Herisau no cantão alemão da Suíça. Nota-se em toda a vida de Walser a nostalgia de um lar que provavelmente nunca teve, ou se o teve, acabou depressa. Ora, Gonçalo M. Tavares arranja-lhe uma casa longe do eventual bulício do Bairro de escritores, poetas, filósofos e dramaturgos, na orla da floresta onde ele se sentiria bem, visto que era um entusiasta das grandes caminhadas. Encantava-se com as cores, o vento a água, os cheiros e as estações da Natureza que ele amava e se sentia seguro. Era um escritor, um poeta das pequenas coisas e são exactamente as «pequenas coisas» que vêm pôr em causa a bonomia da sua existência numa casa que ele experimentou por um dia. Sejam estas «pequenas coisas» uma torneira, uma tábua, um buraco no telhado... e fico-me por aqui porque não quero contar o resto. Como se faz no cinema ou no teatro quando aconselhamos um amigo a ir ver. Aliás, o livro tem igualmente muito de cinematográfico ou dramático. Uma maravilha lê-lo. O próximo será Kraus ou Breton? Não sei. Só sei que vai acontecer.

quinta-feira, abril 27, 2023

2 livros de Walser - «O Ajudante» e «A Rosa»

 

Relógio D'Água, 2006 e 2004 respectivamente.
Tradução de Isabel Castro Silva para «O Ajudante»
e Leopoldina Almeida para «A Rosa»
Após ler estes dois livros de Robert Walser (eu dizia anteriormente que tomar conhecimento da vida deste autor suíço me iria obrigar a conhecer melhor a sua produção literária) fiquei com a sensação nítida que temos diante de nós um escritor de excepção. Mesmo que ele recuse o epíteto e gostasse de ser esquecido, absorvido pelo tempo e pela morte, a percepção que ele tinha do que deveria ser a literatura e a poesia veio confirmá-lo como insubstituível, incomparável. Foi percursor do estilo de Kafka, Musil e até de Wittgenstein e «descoberto» por Agamben, Susan Sontag, Sebald entre outros, mas é único na procura do entendimento das pequenas coisas da vida, das palavras com sentido preciso, sem qualquer adjectivo a mais ou a menos, apresentando uma ironia desarmante e um olhar para si próprio que se reflecte nos outros nos seus dramas, nas suas alegrias, ou no seu desespero com as várias faces que se lhes apresentam na vida.

A leitura destes dois livros, os primeiros que li de Robert Walser (outros seguir-se-ão obrigatoriamente) apresentam-me duas hipóteses que passo a expôr: em primeiro lugar a sua ligação que pende entre o erotismo, o galanteio inofensivo ou a admiração longínqua para com as mulheres de todas as condições sociais; em segundo lugar, a sua ligação, talvez efémera às teses socialistas do seu tempo, embora a tenha apresentado mais tarde com algumas reticências «Viviam-se então tempos extraordinários num mundo extraordinário. Uma ideia a um tempo misteriosa e familiar, a que chamavam ''socialismo'', lançara-se como uma frondosa planta trepadeira para dentro das cabeças e em torno do corpo de todos, mesmo dos mais velhos e experientes, de tal modo que tudo o que era poeta ou escritor, tudo o que era novo e precipitado a agir e decidir se ocupava desta ideia.» (pág.104 de «O Ajudante»); em terceiro, a chamada compaixão pelo outro, pela solidão ou fraquezas adictas, sejam o álcool ou o jogo, pelo desemprego e pela miséria que também ele experimentou; por último a necessidade de um lar que lhe faltou e que vem bem expresso em «O Ajudante» onde experimenta em casa dos Tobler uma verdadeira família que se esvai paulatinamente numa força centrípeta e implacável da ruína económica e pessoal. 

A sua ligação à Natureza, bem transcrita nos seus livros, e onde encontra a paz que procura acontece quer em «O Ajudante», quer em «A Rosa», mas também com uma força evidente nas «Caminhadas com Robert Walser» de Carl Seelig, seu tutor, quando Walser se encontrava no hospício de Herisau. 

Sobre este último, refiro-me a Carl Seelig, creio ter percebido a falta de referência em «Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos» editado este ano (2023) pela Assírio & Alvim e sob o rigor e responsabilidade de Ricardo Gil Soeiro que o antologiou, comentou e traduziu. De facto, já em «Caminhadas com Robert Walser», tinha reparado numa transcrição - quase são actas desses mesmos registos! - que Seelig faz de um sarcasmo de Walser quando este lhe pergunta como se sente, como tutor, a gerir os seus direitos de autor! Olá... essa ironia não me passou despercebida e creio que houve ali uma certa amargura (de não ter casa ou dinheiro seu), tal como a sua recusa em escrever ou em teimar na realização continuada de pequenos trabalhos motivacionais no hospício (dobrar envelopes, por exemplo), sendo até rude quanto aos elogios que Seelig lhe faz, como a uma «carreira» literária ou referindo a admiração e crítica elogiosa registada em jornais pela sua obra. Soube, pela leitura de «O Ajudante» que Seelig após a morte de Robert Walser em 1956 mandou destruir uma enorme quantidade de pequenas anotações quase cifradas que ele escrevia em folhas de jornais, simples papéis rasgados, recibos, etc. Ainda bem que a sua ordem não foi levada a cabo e essas impressões foram, de facto, salvas. Ao contrário de outros, cujos poemas, notas, mesmos novelas ou romances ficaram destruídos para sempre. Não consigo esquecer o que aconteceu ao espólio de António Maria Lisboa, por exemplo, cujo pai e irmã queimaram o que encontraram escrito por esse poeta solar. Mas repito que só a leitura do trabalho de Robert Walser pode dar-nos uma visão global da importância universal deste escritor suíço.

quinta-feira, abril 20, 2023

«Caminhadas com Robert Walser», de Carl Seelig

BCF Editores, 2019. Trad. Bernardo Ferro. Prefácio à edição portuguesa por Hans Ulrich Obrist

Em 1957, um ano após a morte por ataque cardíaco de Robert Walser, numa dessa inúmeras e longas caminhadas que realizava de um modo quase obcecado pelas montanhas do cantão alemão da Suíça, o seu tutor e amigo Carl Seelig edita as suas memórias dessas mesmas caminhadas a que se juntaram conversas, ideias e pensamentos daquele autor entretanto internado no sanatório de Herisau. Esse internamento durou vinte anos, sem que Walser tenha escrito alguma coisa. Com um espírito tão particular e entremeado com alguns episódios esquizofrénicos conseguiu um registo literário único em que recorre várias vezes à observação minuciosa da cor, da natureza, dos objectos, das pequeníssimas coisas da vida, recusando toda e qualquer vontade de atingir epítetos literários ou atingir o grau de «grandeza literária» que ele abominava. Quanto mais se conhece este autor, mais queremos saber sobre ele. Deparamos, então, com esse pensamento através da contribuição de Carl Seelig que juntou apontamentos (alguns mais antigos perderam-se, infelizmente)  e registos dessas mesmas caminhadas. 

As opiniões versam sobretudo sobre si próprio e na vida, algo agitada para um jovem de 20 anos, que esteve em Berna e Zurique e nas suas relações com a família que ele não gostava de invocar, principalmente a relação que manteve com o irmão mais velho Karl Walser, que foi um pintor importante e que faleceu antes dele, e com a sua irmã Lisa que ele «culpava» do internamento compulsivo em Herisau. Mas tinha por ela um amor particular, realçando o seu carácter católico como a causa dessa decisão. Fala a Seelig por várias vezes da condição de poeta e escritor o que não deixa grandes encómios e elogios aos seus contemporâneos, fossem eles alemães, americanos, suíços, russos, franceses ou ingleses. Não lhes perdoa a subserviência para os poderosos e a arrogância para com os leitores. Refere-se igualmente a Hölderlin e a os poetas e escritores que foram dados como loucos. Durante a II Guerra Mundial, enquanto caminha com Seelig desenvolve as suas teorias para com Hitler que detesta com a sua vulgaridade e violência inane e Estaline que tem tanto de génio militar, como de sanguinário.

Sobre si próprio: «Houve sempre conspirações à minha volta para repelir vermes como eu. Aquilo que não cabe no mundo de cada um é sempre nobre e orgulhosamente repelido. Pela minha parte nunca ousei forçar a entrada nesse mundo. Não teria sequer coragem para espreitar para o seu interior. Foi por isso que vivi a minha vida à margem das existências burguesas. E não foi melhor assim? Não terá o meu mundo também direito a existir, ainda que se trate, aparentemente, de um mundo mais pobre e impotente?» (pág.50)

Robert Walser para Carl Seelig: «Sabe porque não me tornei um escritor de sucesso? Quero dizer-lhe: é que não possuía um instinto social suficientemente desenvolvido. Não representei o suficiente para a agradar à sociedade. (...) A minha estreia literária gerou logo a impressão de que os bons burgueses me aborreciam, de que não os achava bons o suficiente. E eles nunca o esqueceram. Consideraram-me sempre um zero à esquerda, um inútil. Deveria ter misturado nos meus livros um pouco de amor e tristeza, de solenidade e de aprovação (...)» (pág.59)

Sobre a velhice: «Só uma percentagem extraordinariamente pequena de pessoas sabe apreciar a velhice. E, contudo, ela pode oferecer grandes alegrias. É sabido que o mundo tende a regressar, sempre de novo, às coisas simples, elementares. Um instinto saudável leva-o a opor-se que a excepção ou a estranheza se tornem dominantes. A voracidade inquieta com que se deseja o sexo oposto extingue-se e passa-se a desejar apenas o conforto da natureza e a beleza das coisas concretas, que estão ao alcance de quem as procura. Livres, enfim, de toda a vaidade, abandonamo-nos à grande quietude da idade, semelhante a um reflexo suave da luz do sol.» (pág.80)

segunda-feira, abril 17, 2023

«A Economia Moral da Multidão na Inglaterra do século XVIII», de E.P.Thompson


 Antígona, 2008. Trad. de Frederico Ágoas e José Neves
Quem pensa que a chamada «multidão» em pleno século XVIII , e antes, por todo o século XVII, era uma turba desorganizada e ao sabor de emoções primitivas terá uma surpresa neste livro de E.P.Thompson. O historiador inglês apresenta-nos factos e fontes fidedignas que a economia moral dos subalternos tentou lutar, muitas vezes de armas rudimentares nas mãos, contra o capitalismo agrícola e industrial que começava a nascer com o liberalismo baseado na acumulação de terras nas enclosures e na acumulação de capital financeiro e industrial, de mãos dadas, que veio a sair vencedor no século XIX e XX. A luta foi renhida e mais organizada do que se pode pensar numa primeira observação. Assim o atesta em várias fontes coevas, muitas delas anónimas, que Thompson nos apresenta. Sobre o preço do pão e a necessidade de repartição igualitária das terras, levadas a cabo quer pelos Levellers (niveladores), quer pelos Diggers (cavadores) ou, mais tarde pelos Luddistas. Embora o milenarismo não esteja completamente arredado destas lutas o que sobressai é a emergência de uma nova sociedade, baseada não na diferenciação do nascimento, mas sim pelo trabalho. Não por acaso, a repressão brutal abateu-se sobre todos eles, fazendo com que estes movimentos libertadores tivessem desaparecido da crosta da Terra. Não sem que o imaginário popular as tivesse recordado até hoje. E o trabalho do historiador reflecte bem que o liberalismo defendido por Adam Smith nunca funcionou, no que à distribuição de alimentos do campo se refere. A necessidade da existência de intermediários foi sempre uma aposta do liberalismo, originando muitas vezes uma desregulação de preços e açambarcamento que as populações lutaram de modo violento de modo a evitar períodos de fome. O sentimento anti-intermediários foi um dos vectores da «economia moral» que pretendia fixar os preços dos alimentos e principalmente dos cereais. Adam Smith equiparou-a a uma espécie de «bruxaria».

Vejamos alguns exemplos de panfletos anónimos:

Sobre a liberdade (1768):
«Não se pode dizer que se trate de liberdade de um cidadão, ou de alguém que vive sobre a protecção de qualquer comunidade; trata-se antes da liberdade de um selvagem; e assim sendo, aquele que disso se aproveita não merece a protecção concedida pelo poder da Sociedade.» (pág.36).

Título de um ensaísta anónimo (só por si este título é todo um programa):
«Um Ensaio para Provar que Revendedores, Monopolistas, Açambarcadores, Bufarinheiros e Intermediários do cereal, Gado e Outros Bens Comercializáveis...São Destruidores de Comércio, Opressores dos Pobres e Uma Praga Comum para o Reino em Geral.» (pág.49)

Carta anónima dirigida a J.S.Girdler, juiz de paz em Middlessex (1796-1800):
«Sabemos que és inimigo de agricultores, moleiros, farinheiros e padeiros do nosso Comércio - se não tivesse sido graças a mim e a outro, tu, meu filho da puta, terias sido assassinado há já muito tempo por ofereceres as tuas malditas recompensas e perseguires o nosso Comércio. Que Deus te amaldiçoe e demonize, tu não viverás para ver outra colheita (...)» (pág.51/52)

Motim de mineiros em Padstow em Shropshire (1773):
«Algumas pessoas levaram longe demais a exportação de cereal (...). Setecentos ou oitocentos mineiros de estanho foram até lá, oferecendo de início aos negociantes de cereal 17 xelins por 24 galões de trigo; todavia, sendo-lhes dito que nada obteriam, de imediato arrmbaram as portas do armazém e levaram tudo o que aí havia, sem dinheiro ou preço.» (pág.56)

Outro aviso em Northiam (Sussex) aos agricultores que aceiram as novas medidas de alqueire do parlamento (1793):
«Cavalheiros, tudo o que esperamos é que tomem isto como aviso a todos os que deixem de lado os pequenos alqueires e retomem a antiga medida, pois, caso não o façam, um grande agrupamento incendiará as pequenas medidas quando vocês estiverem na cama e a dormir e, com elas, as vossas medas, os vossos celeiros e vocês mesmos (...)» (pág.62)

Escreve E.P.Thompson em jeito de conclusão sobre a eficácia destas lutas baseadas nesta «economia moral» da multidão na Inglaterra do século XVIII:
«Na verdade, o motim de subsistência não requeria um elevado grau de organização. Requeria, sim, um apoio consensual junto da comunidade e um padrão de acção herdado, com restrições e objectivos que lhe eram próprios. E a persistência desta forma de acção levanta uma questão interessante: até que ponto seria ela, fosse de que forma fosse, bem-sucedida? Teria ela persistido durante tantos anos - centenas de anos, na verdade - se os seus objectivos fracassassem constantemente e deles resultassem senão uns quantos moinhos destruídos e algumas vítimas na forca?» (pág.90) Mais à frente, o historiador refere como um factor de regulamentação do mercado a própria «expectativa do motim» como dissuasor de açambarcamento ou de aumento generalizado de preços à maneira liberal.

Carta de Witney, um dos mais destacados dos Levellers, em 1767, sob a forma de rima popular (págs.104/105):
 
«(...) Um pequeno Exército de mais três mil, prontos para a luta final,
E maldito eu seja se não fizermos em merda a Tropa Real,
Se o Rei e o Parlamento continuarem a mandar à sua maneira,
faremos de Inglaterra uma lixeira.
E se não baixam os preços dos mantimentos,
Maldito eu seja se não resolver o problema incendiando o Parlamento (...)

De qualquer modo, os movimentos populares e violentos dos trabalhadores do campo e pequenos agricultores, no início do século XIX, foram ultrapassados pelos luddistas devido quer à sangrenta repressão militar, quer à pressão sobre os salários nas indústrias com uma incipiente organização sindical clandestina, com juramentos: os United Englihsmen.

«Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos & outros brevíssimos textos sobre quase nada», de Robert Walser


Assírio & Alvim, Março de 2023
Selecção, tradução e prefácio de Ricardo Gil Soeiro
Duvido muito que alguém que leia este livro extraordinário e não conheça suficientemente o autor suíço, não procure a sua bibliografia e a devore de imediato. Ficará a saber que alguns já se encontram esgotados, por isso será melhor recorrer aos que ainda existem nas livrarias e, nas feiras do livro ou alfarrabistas, tentar a hipótese de conseguir alguns exemplares que já não se encontram no tal mercado.

Percebemos que o responsável desta edição foi Ricardo Gil Soeiro que a traduziu do alemão (cantão a que pertenceu Robert Walser) e optou pelo diminutivo final -ito. Creio não ter sido por acaso (nesta tradução excelente, nada o é, diga-se) e este sufixo é ele próprio muito mais acolhedor e terno que o -inho muito mais comum em português. A selecção dos vinte textos para este livrito estende-se de 1901 a 1932 e nota-se a grande coesão e coerência literária dos contos e pensamento de Robert Walser. As referências que Ricardo Gil Soeiro utilizou demonstram a importância do poeta, citando no seu prefácio Agamben, Walter Benjamim, Calvino, Canetti, Sebald, Susan Sontag ou Vila-Matas, entre outros.

O autor teve uma vida atribulada passando 20 anos em hospícios e 25 sem nada escrever. Aliás, convenço-me cada vez mais que os hospícios e sanatórios foram o gulag da Mitteleuropa para poetas e indesejáveis. Os que tiveram sorte, porque os que não tinham dinheiro iam para a prisão sem o mínimo das comodidades que apresentavam as famílias, como as de Walser, com alguns recursos. É uma figura muito difícil de compararmos (e porque o devíamos fazer?) com alguém do seu tempo. Adverso à chamada «grandeza literária» ou à exposição, fazia longas caminhadas de horas por bosques e pelas estradas observando e discorrendo sobre as pequenas coisas insignificantes com um amor e carinho inexcedíveis. Um leitor que tenha o mínimo de sensibilidade sabe do que falo quando deparamos com a descrição de um lápis como este excerto:
«(...) No quer diz respeito ao pequeno lápis, aquilo que o torna tão valioso, como já todos sabemos, é quão afiado ele se vai tornando, até que não haja mais nada para afiar e, tornando inutilizável pelo uso impiedoso, o deitamos fora, pelo que não ocorre a ninguém, nem mesmo de longe, expressar uma palavra de apreço e de agradecimento pelos seus múltiplos serviços. O irmão do lápis chama-se lápis azul e, como já tem sido dito de tempos a tempos, os dois desafortunados lápis amam-se como irmãos, estabeleceram entre si uma frágil e profunda amizade para toda a vida.(...)» (pág.20)
Ou sobre si próprio:
«(...) Desejo, pois, ser ignorado. Se, ainda assim, alguém quiser prestar-me atenção, pela minha parte não prestarei atenção àqueles que prestam atenção. A escrita dos meus livros anteriores não foi forçada. Creio que escrever muito não garante uma escrita de qualidade. E que não me venham falar dos ''primeiros livros''! Que estes não sejam sobrevalorizados e que se tente compreender o Walser vivo, tal como ele é.» (pág. 121)

Finalizo com um excerto do prefácio de Ricardo Gil Soeiro (ele próprio um poeta) que nos dá uma ideia mais aproximada e real da escrita de Walser: «(...) Uma espécie de Paul Klee da prosa (a imagem é de Susan Sontag), Walser esculpe límpidos parágrafos, frases musicais em filigrana que fluem como água escorrendo entre os dedos. Adoptando um olhar minucioso sobre as ninharias do mundo, as suas páginas exumam uma desconcertante ternura, fina tapeçaria escrita em sotto voce simultaneamente graciosa e amarga, como sublinha Walter Benjamim.
Enrique Vila-Matas definiu-o, com propriedade, como pioneiro da arte da desaparição, incluindo-o em Bartleby e Companhia, na galeria dos mestres da recusa, na longa linhagem dos partidários do Não. (...)» (pág.10/11).

segunda-feira, abril 03, 2023

«Cidadãos - Uma Crónica da Revolução Francesa», Simon Schama

 

Bookbuilders, 2021. Trad. Miguel Mata
911 páginas de contra-revolução e de amor à Vendeia. Simon Schama pode chamar-se historiador e ter uma equipa de colaboradores tão numerosa quanto dedicada e que provavelmente ficou esquecida nos agradecimentos logo nas primeiras páginas, mas não pode esconder que escreveu uma narrativa da Revolução Francesa descrevendo-a como dispensável, sangrenta, equívoca e contraditória. 234 anos após um dos maiores acontecimentos da História europeia, pode-se ler em Schama o horror que ainda provoca em tipos como ele. Considerada uma narrativa «belíssima», «que se lê num fôlego» este «mestre romancista» apresenta um quadro de demência total perante os acontecimentos que decorrem entre 1789 e 1794. O homem não compreendeu nada sobre um processo revolucionário e pelos vistos não quer compreender, nem está para isso. Argumentar com a dispensabilidade da revolução de 1789, porque o Antigo Regime estava a desenvolver políticas «progressistas» no campo da introdução do liberalismo e tinha abraçado paulatinamente o fisiocratismo, para além de ter resolvido a questão económica é de pasmar. Um estudante do 1º ano da faculdade saberá perceber que as ruturas acontecem exatamente quando um processo de modernização tem lugar. Veja-se o 25 de Abril de 1974 e o marcelismo «desenvolvimentista», veja-se a Revolução de 1917 na Rússia quando as contradições geradas pela «modernização» vieram espoletar o confronto entre classes. Mas Schama não quer a Revolução, odeia-a; não tanto pelos seus excessos (motivo mais encontrado e aumentado entre historiadores de direita), mas porque para ele não fez sentido nenhum ter explodido. Se os franceses fossem outros - por exemplo, como os ingleses em 1688 na Gloriosa Revolução, cem anos antes, esses sim foram muito mais circunspectos, mesmo que tivessem cortado igualmente a cabeça a um rei, por acaso chamado Carlos! - não teriam feito a revolução que gastou as energias positivas de uma nação em claro progresso. Chega ao ponto de dizer que 1789 existiu por inépcia e estupidez da aristocracia, ordem que esteve efetivamente por detrás da Revolução, sem perceber que estava ela própria a pôr a cabeça no cepo. Culpados: Voltaire (não tão deísta assim e afinal amigo do clero!), Talleyrand (um falso bispo, como tal extremamente adaptável a todas as situações), Mirabeau (um escroque tão libidinoso, como populista), Lafayette (um salta pocinhas revolucionário que nada compreendeu da Revolução americana de 1776 em que participou), Sade (repugnante), Anarchasis Cloots (um parvalhão), Marat (um tolo), Robespierre (um dissimulado sangrento) e por aí fora... mas o grande elogio vai direitinho para o povo francês e principalmente o de Paris quando lhe chama, por várias vezes, de «turba». Eis a turba, feliz e radiante com o seu milenarismo entranhado (e defendido pelo sonso do Rousseau), a cortar cabeças que saíam à rua sem o «cocar»! E Luís XVI exposto assim, coitado, sem pingo de culpa que antes de ser morto era acarinhado pela mesma «turba» que o matou, ele que era poupadinho em Versalhes, que se dedicava à caça e aos jogos e que adorava construir fechaduras, foi duas vezes vítima e não um carrasco para o povo. Maria Antonieta, uma pequena rainha que teve o azar de ter nascido austríaca, imberbe, cujos boatos de deboche forma criados por pura maldade da «turba». O facto de ter chamado o irmão para invadir a França, não é tão exposto quanto ao «caso do colar», esse sim, um verdadeiro boato que esteve na base de toda a propaganda anti-antonietista e que a levou à morte, claro está.
A Bastilha? Um paraíso, se a compararmos com os serviços prisionais de hoje (sic)! Os prisioneiros eram bem tratados, estavam sozinhos nas celas, tinham uma cadeira ou várias delas, uma cama com colchão, uma estante onde podiam ter livros e um guarda fato. A investigação de Schama chega ao ponto de ter descoberto que o «repugnante» Sade (23 anos de prisões e hospícios, tendo saído uma semana antes do 14 de Julho) tinha a visita da «sofredora» mulher uma vez por semana, ou Latude (28 anos preso!) tinham uma vida relativamente folgada. Aliás, Sade é que foi culpado de ter ido para um hospício (com a colaboração da tal sofredora), não tivesse ele berrado diariamente pelas muralhas da Bastilha para a sublevação do povo de Paris e insultado várias figuras da aristocracia e nada lhe teria acontecido. Ler para crer. Embora não o aconselhe a um leitor minimamente crítico.

Ter fôlego para chegar a 1793, a páginas 600, a época do chamado Terror, é o mesmo que aguentar uma maratona de 42 km. Nem valerá a pena esperar pelos enormes contributos sociais aos mais desfavorecidos que são uma constante desta fase da Revolução em que os sans-culottes de Jacques Roux e Mercier, as mulheres de Paris ou os Iguais de Babeuf e Buonarroti, tiveram um papel fulcral. A maneira como são tratadas as diversas Comunas e a Guarda Nacional não dá para descrever aqui, tal a azia. Repete-se: quem, 234 anos depois, ter assim um ódio tão primário à Revolução, não é de um historiador. Para isso, ao menos, temos Michelet que foi contemporâneo e mostrou bem mais consideração pelos factos históricos do que este romancista. A frase dele que resume tudo é que a Revolução Francesa não foi uma revolução que quisesse mudar a estrutura social, mas sim causada por questões sociais. Quase um motim, a bem dizer.

Portanto, as primeiras 500 páginas, são para explicar que desde Luís XIV a Luís XVI tudo ia bem e a França ia pelo bom caminho liberal, abandonando o mercantilismo de Colbert e decidida a enveredar pelas possibilidades imensas do fisiocratismo liberal, não fosse a aristocracia ter abraçado o Iluminismo de Voltaire, de Montesquieu ou de um tal Rousseau, a némesis de Schama. O Antigo Regime caiu porque a aristocracia aderiu à Revolução! Isto sim, agora compreende-se os elogios dos principais jornais americanos e europeus quando dizem que estamos perante um romance com uma narrativa fluente que se lê «num fôlego»! Faltava o aviso no livro «Baseado em acontecimentos reais», para ser uma adaptação a um filme cómico se não fosse demasiado trágico para a História, embora Simon Schama já tenha na sua posse um Emmy!