segunda-feira, janeiro 27, 2020

«Uma Solidão Demasiado Ruidosa», de Bohumil Hrabal

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Editada em Portugal pela Antígona em setembro de 2019 e traduzida diretamente do checo por Ludmila Dismanová, a obra «Uma Solidão Demasiado Ruidosa» (1976), de Bohumil Hrabal foi censurada e publicada em samizdat na antiga Checoslováquia. Nascido a 1914, viveu a ocupação nazi e viu erguer-se um país socialista pertencente ao bloco de Leste. Em 1965, editou «Comboios Rigorosamente Vigiados», em 1965, «Eu que servi o Rei de Inglaterra» peça teatral que tive a sorte de ver no Teatro do Campo Alegre no Porto e «Terno Bárbaro» (1973). Morre em 1997,num hospício onde caiu, diz-se, de uma janela ao dar de comida aos pombos. Foi um homem dos sete ofícios, desde funcionário dos caminhos de ferro até prensador de livros. Foi este último ofício que o fez escrever este livro.

Gostava, antes de vos descrever sucintamente a obra e tendo o cuidado de não revelar tudo, que estivesse na cabeça do censor que proibiu este livro. Infelizmente, Portugal teve essa experiência notável de ver coronéis na reforma a censurar obras sem entenderem nada do que liam. Muitos autores portugueses sabem pelo que passaram, não sem que alguns casos fosse motivo de riso, tal como um livreiro que me contou que uma brigada da PIDE acompanhada por um desses coronéis, levou apreendidas «A Capital» de Eça de Queirós e um manual das antigas escolas técnicas e industriais para a construção civil titulado de «Novas Estruturas do Betão Armado»!! Consigo perceber o censor: «’pera aí! ‘’Novas Estruturas’’? ‘’Armado’’? Querem enganar quem?».

Mas este censor de «Uma Solidão Demasiado Ruidosa» deveria ser muito rebuscado. A história trata de um prensador de papel (Bohumil Hrabal, certamente) que vai salvando livros do ostracismo absoluto a que o Estado quer remetê-los. O velho Haňta é conscensioso do seu trabalho, embora esconda o que faz. Não tem mal nenhum: salva Kant, Hegel, Camus, Novalis e Lao-Tsé, entre outros, muitos outros. É Haňta que diz: «(...) de modo que é em vão que todos os inquisidores do mundo queimam livros, pois quando um deles contém algo de válido, o seu riso silencioso persiste mesmo no meio das chamas, porque o significado de um livro verdadeiro vai sempre para além dele.».

Ou a sua declaração inicial: «Há trinta e cinco anos que embalo livros e papel velho, e vivo num país que sabe ler e escrever há quinze gerações; habito um antigo reino onde houve e continua a haver o hábito e a obsessão de prensar pacientemente ideias e imagens na cabeça de todos, dando-lhes assim um prazer indescritível e uma mágoa ainda maior, vivo entre pessoas que dariam a própria vida por um pacote de ideias prensadas.»

Haňta, vivia para prensar, esmagar e com esta atividade esmagava igualmente ratos da velha oficina, besouros, insetos vários... a namorada tinha sido cremada em Majdanek ou Auschwitz e ele começou a beber muita cerveja. Era um solitário, tendo dificuldade em falar com pessoas, menos com uma pequena cigana que compartilhava o seu apartamento coberto perigosamente de várias toneladas de livros, prestes a esboroarem-se em cima dele e matá-lo. Todos salvos da prensa. Mas o que lhe dava mais prazer era esmagar e prensar livros e fotografias de Hitler em delírio, de soldados SS em delírio, de prisioneiros em delírio, de guardas em delírio, de massas de homens castanhos em delírio.

Por que foi censurado Bohumil Hrabal? Que mal tinha o seu livro? Como gostava eu de me colocar no «pensamento» (um exagero, claro) de um censor! O que ele veria escondidas nestas palavras?

Haňta vê-se então confrontado com o seu censor, mesmo que assuma a dialética como lógica: «(...) e tudo o que é vivo no mundo, para que, através da luta, o movimento vital recupere; depois, o desejo de equilibrar os contrários leva a que se atinja progressivamente a harmonia e a que o mundo, no seu todo, nunca coxeie. Foi então que compreendi a justeza do poema de Rimbaud segundo o qual a luta do espírito é tão terrível como qualquer outra guerra, e entendi a frase cruel de Cristo: ‘’Não vim trazer a paz, mas a espada.»

Belas palavras do velho Haňta. O censor ter-se-á incomodado com a palavra Cristo? Com a dialética exposta? Com Rimbaud? Com a recupearção «movimento vital»?

Creio que sim, foi esta a expressão, «movimento vital» que lhe fez o curto-circuito no frágil cérebro do censor. De qualquer censor em que o pensamento pode tornar-se um perigo mortal. Eles preferem a morte.

António Luís Catarino
Coimbra, 27 de janeiro de 2020

domingo, janeiro 26, 2020

Pascal Quignard e «A Ocupação Americana»

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Pascal Quignard é um autor francês ainda pouco conhecido em Portugal. A Deriva editou-o, em 2013, com «Um incómodo técnico em relação aos fragmentos» traduzido por Pedro Eiras. É um autor desconcertante no sentido em que, dele, é melhor não esperarmos a «ordem natural das coisas» de um romance comum. De facto, fragmenta-o em relações, em épocas, em idades dos protagonistas, enquanto nas poucas páginas do livro se vão desenvolvendo atitudes e pensamentos de densidade psicológica óbvia. Pascal Quignard é um grande escritor e mostra-o neste «A Ocupação Americana», numa edição de bolso da Seuil de 1994, que encontrei num alfarrabista e antiquário suíço por um preço incrível. Vim com um saco cheio. Obrigado, Monsieur Bloch.

A França após a guerra de 1945: um período muito pouco conhecido e, talvez, um tema ainda fugidio. Lê-se que foram 75 mil os fuzilados por colaboração com os nazis. A vida quotidiana passava algumas dificuldades normalmente adormecidas pela ajuda do Plano Marshall. Mas ainda assim, a vida era difícil. Os costumes não mudaram muito desde antes de 1939. Os mais velhos e também a sua juventude continuavam, imperturbáveis, o seu quotidiano. Mantinham-se com os mesmos temas escolares, com a religião presente em todas as famílias, a cultura francesa dos liceus e faculdades não tinha sido esquecida e continuava-se a apresentar os mesmos autores de sempre, quer na literatura, quer na canção ou teatro.

Dois jovens, Patrick e Marie-José, estão ligados desde a sua infância mais remota. A amizade junta-os naturalmente, até à descoberta gradual do corpo de cada um com um primeiro beijo na boca, com umas festas mais arrojadas, e mais tarde, na adolescência e no liceu, com a necessidade premente de sexo.

Entretanto, os americanos assentam arraiais na base militar de Meung onde vivem os jovens. Os americanos chegam com o jazz, com as Levi´s, as Coca-Colas, os grandes Thumderbirds, Buicks, blusões pretos e costumes sexuais demasiado abertos para a velha vila francesa, bem espelhados no comportamento das filhas dos oficiais americanos da base. Os cafés aderem aos hambúrgueres e ao whisky bourbon. A cerveja Budweiser corre. Mas o racismo e refregas entre soldados brancos e negros não passam despercebidos. A segregação não é de imediato compreendida na pacata cidade francesa, mais até pelos jovens franceses que aderem vorazmente ao jazz onde tocam militares negros e que se tornam amigos. Frequentes vezes os negros são expulsos nos lugares mais centrais da cidade, por militares brancos alcoolizados.

Marie-José quer o corpo de Patrick, mas o medo de engravidar é maior que dar início a uma experiência sexual total. Vai recusando a formas mais «seguras» de contacto sexual o que os desagrada sobremaneira. Procura um médico fora da cidade que, ao saber para que fim se destinava a consulta tenta abusá-la não o conseguindo, mas, ainda assim, recomenda-lhe o método falível da temperatura.A França em pequenino.  O envolvimento com Patrick degrada-se cada vez mais. Patrick adere a um grupo misto de jazz com a sua bateria dada por um sargento americano, Wadd, através de um mercado negro florescente da base para as vilas e cidades próximas. Wadd inicia uma relação com Marie-José que pensa, assim, fugir aos estereótipos franceses, enquanto adere lentamente ao estereótipo americano. Ambos, Patrick e Marie-José, faltam às aulas e confrontam a vida dos pais que não querem ver repetidas nas suas. Patrick envolve-se com Trudy, filha de um tenente da base americana. Os jovens amigos franceses deixaram de se falar ou sequer olhar-se entre os dezasseis e o princípio dos seus dezoito anos. Ignoram-se, dentro da sua fé americana.

Começam a iniciar-se no haxixe, na música e no mercado da base através de um amigo, François-Marie Ridelsky, que muda o seu nome para Rydell. Creio que é uma personagem importante na história de Quignard: frequentemente bêbado, meio louco, hiperativo, empenhado em experimentar a cultura americana até ao limite é, contudo, ele que a desmonta quando começa a perceber o vazio daquelas personagens que povoam as várias (não foram tão poucas assim) cidades francesas sob a administração militar americana. O PCF, forte, na ocasião, segrega igualmente estes jovens, enquanto faz uma campanha cerrada de US Go Home, lida por todo o lado.

Diz Rydell, a uma certa altura, tal como um xamã: «Tudo está perdido! Tudo desapareceu como uma gota de água na imensidão do mar. Entre a alucinação e o caos, o real ergue-se e respira como uma vaga de nascimento e morte. Mostra-se tão caprichoso, nas suas consequências, que se torna imaginária, na sua perceção. A trama e a cadeia de gerações e de metamorfoses prosseguirão no mesmo desenho impaciente, mortífero e inexplicável. Os sexos ardem. Tudo é fogo, tudo é desejo de satisfação. Tudo é vontade de encontrar o prazer. Tudo é desejo de morte. Os nossos olhos nos sonhos, como os nossos olhos na vida de todos os dias, têm sede. Sede de imagens de sereias que são regadas com a morte que subjugam. Tudo é ódio na vida, servilismo, pesadelo.»

De novo Rydell, que se afasta cada vez mais da cultura americana, sem todavia, deixar o mercado negro da base militar, uma verdadeira caverna de Ali-Baba, para Patrick: «Eles (os americanos) são desprezíveis. São racistas. São a desonra do planeta. Olha para eles. Eles não compreendem, nem mesmo a música que permitem difundir num continente inteiro. Como sonhar sequer com uma arte numa sociedade assim tão podre? São fantasmas que nós servimos. Ectoplasmas de páginas publicitárias, jornalísticas, com ordens de compra. Não compreendo que estejas apaixonado por Wilbur, de True, dessa banda de miseráveis. Todos esses brancos que nos roubam e que nos enchem de vergonha. Os verdadeiros são os negros. Eles, os brancos, são falsos. Olha! São fantasmas rosados. Deixa-me. Vai à procura de Brenda Lee!»

Rydell clama e todos deixam de o ouvir. Pensam-no louco. Mas, em breve, os factos extraordinários que vamos ler em «A Ocupação Americana» dar-lhe-ão razão. Em 1949, tudo caminha para um abismo sem sentido. Na despedida dos americanos quando a base é levantada, o sargento Wadd, despede-se, ironizando: «Vamos go home! Agora, aguentem com os Russos.» Ainda se pensava que Estaline avançaria para oeste, mas como diria o padre de Meung: «Alemães, Americanos e agora Russos? Não há cidade que aguente.» 

Um livro essencial em todos os aspetos, porque pode ser lido de vários ângulos. Mas o abismo e a solidão de uma juventude dividida nos anos pós-45 pressentem-se em cada página da obra.

António Luís Catarino
Coimbra, 26 de janeiro de 2020

quinta-feira, janeiro 23, 2020

«Portugal e a União Europeia». Textos de João Martins Pereira, selecionados por João Moreira.


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Livro mais que importante, este, a que João Moreira deu vida escrevendo o prefácio. O posfácio é de Rui Bebiano. João Martins Pereira (JMP) é um pensador incontornável e um homem de ação, talvez a diferença maior entre outros pensadores portugueses como José Gil ou Eduardo Lourenço.

Façamos uma breve pausa para conhecermos o autor, até porque o academismo e media oficiais teimam em esquecê-lo. Nasce em 1932 em Lisboa. No país que tínhamos, acha melhor por-se ao fresco para Paris entre 1963 e 64. Entra na Seara Nova até 1968 e a partir de 69 entra na revista O Tempo e o Modo onde é expulso pelo MRPP em 1971 numa tentativa, infelizmente vencedora, de controlar totalmente a revista, até aí nas mãos de católicos de esquerda e revolucionários. Publica vária bibliografia e em 1975 entra para o IV Governo Provisório como secretário de Estado da Indústria e Tecnologia o que lhe devia ter dado um grande gozo, visto que o colocaram à frente das nacionalizações das indústria e banca dos grandes grupos económicos que tiveram um valente susto no PREC. Entra para a redação do Jornal Combate do PSR entre 1987 e 2003. Morre em 2008.

O prefácio de João Moreira é esclarecedor fazendo uma ponte entre o pensamento e prática de João Martins Pereira para os dias de hoje onde «partidos nacionalistas e ultra conservadores» ganham um «avanço galopante.» Não deixa de ser interessante João Moreira realçar um ponto que era caro a JMP sobre a esquerda de cariz marxista – o da tibieza, timidez e ambiguidade que esta apresenta face à «questão europeia». João Moreira avisa-nos: a desconstrução do «mito da CEE» promovido pela «burguesia lusa». Quase tudo o que JMP escreve veio a dar-se em Portugal desde a nossa adesão à CEE, e após esta, à UE. Não é poder divinatório do autor é, antes, uma profunda análise política de base marxista que pôde sequenciar de uma forma lúcida o que – desgraçadamente – veio a acontecer.

Os escritos de JMP, e escolhidos para este livro, iniciam-se em 1969 e espelha já a burguesia que temos no movimento de 1820. Uma burguesia não revolucionária, ligada às ideias puras que gerou este movimento, mas longe da sua prática o que ajuda à existência de uma estrutura político-jurídica, mas longe da de uma relação forte com a estrutura sócio-económica ao longo do século XIX. O ideal republicano seria então uma continuidade renovada do falhanço das práticas burguesas parlamentares que vinha da frágil monarquia constitucional. Ambas parlamentares e censitárias, como faz notar JMP, citando Jacinto Baptista. 

A aventura golpista de 1926 veio pôr em ordem a chamada estrutura político-jurídica já há muito em decadência, principalmente desde a participação portuguesa na guerra entre 1916-18, mas o que se veio a verificar mais tarde, através da Lei do Condicionamento Industrial (1931) foi a ascensão política da burguesia dos grandes agrários que tornou Portugal um dos países mais pobres da Europa à imagem da política salazarista. Ou seja, conjuntamente com a estrutura agrária consolidada no tecido económico do país e face ao condicionamento industrial, veio também a impor-se uma diminuta burguesia financeira, comercial e industrial altamente especulativa o que impedia a acumulação de capital, necessária ao investimento. A nossa burguesia surgia sempre «colada» ao Estado, baseada na repressão brutal aos camponeses, aos operários e com baixíssimos salários. A ordem estava estabelecida, mesmo com o protesto de «modernização rápida» de alguns visionários do Antigo Regime que apelavam cautelosamente na Assembleia Nacional por essa mesma modernização. Mesmo tendo este grupo algumas vitórias criando algumas infraestruturas que apontavam para o reforço da indústria, encarava-se como «um mal necessário». De facto, JMP situa o desaparecimento desta ambiguidade no ano de 1949, o que se compreende. Os trinta gloriosos anos estavam à porta e para sossegar as gentes democratas estrangeiras lança-se a Lei 2005 de incremento da indústria. 

No entanto, é a Banca a sempiterna Banca, que ganha mais com esta política que continuava especulativa. Os industriais continuavam gastadores dos lucros obtidos na atividade e os grandes agrários tornaram-se absentistas e com uma grande margem de lucro, devido à repressão e baixos salários.  Ora, as décadas de 50 e 60 tornam-se fulcrais para uma espécie de internacionalização do capital através de uma aproximação europeia. Tarde demais. A nossa burguesia continuava com uma imagem pouco esclarecida que se «meteu» num processo de integração europeia sem perceber os custos ou sequer as consequências, inclusive para o Império.

Citando JMP: « (...) Em resumo, à medida que se aproxima o dia em que a economia portuguesa se verá desamparada diante de uma Europa pouco dada a sentimentalismos (e isso será em 1980, na melhor das hipóteses) o processo de desenvolvimento industrial, em lugar de intensificar as suas taxas de crescimento e proceder a uma ‘’reorganização’’ de estruturas indispensável, vê-se travado por um tipo de intervencionismo de Estado que já não é aquele que as novas circunstâncias exigiriam. A grande burguesia industrial e financeira compreende que, a longo prazo, a opção europeia é a que mais lhe convém.»

A partir daqui, não esquecendo que isto foi escrito em 1969, a radiografia que JMP faz da nossa burguesia que se quer (ou é obrigada) a integrar na Europa, é a de uma classe que nunca sendo liberal, também já não o poderia ser, nos anos de Marcello Caetano. Assim, a burguesia nacional encaminhar-se-ia para novas formas de neo-capitalismo autoritário.

Em 1971, no «Comércio do Funchal» jornal da oposição marcelista e de esquerda, JMP chega a dizer: «a integração de Portugal na Europa é um assunto a tratar entre os representantes das classes dominantes nos respetivos países, que acabarão por se entender numa bela madrugada em Bruxelas, e festejarão o acontecimento, esgotados mas ainda com forças para beber um cordial whiky que apagará todos os ressentimentos. A História não é feita apenas por esses senhores e, portanto, os esquemas que elaboramos virão a ser submetidos à prova dos conflitos que eles próprios terão gerado ou acentuado». Quem é que em 2020 não assinaria por baixo estas mesmas considerações?

Em 1997, no Combate e publicado em Papéis 97 de Francisco Louçã e J.P.Cotrim, João Martins Pereira, perante a violência do ultra-liberalismo da CEE/UE que ele já aponta nos idos de 1969 e 1971, escreve: «como forçar os povos europeus a essa violência, que será feita, ninguém duvida, de elevadíssimos custos sociais (desemprego, precariedade do trabalho, desmantelamento/privatização dos sistemas de Segurança Social, acentuação das desigualdades, exclusão, insegurança quanto ao futuro) e políticos (erosão dos mecanismos democráticos, por imperfeitos que sejam)?». Até pela premonição de JMP: «Até um belo dia a Europa inteira estar na rua.» Já faltou mais...

Um livro a não perder que servirá, certamente, para conhecermos mais a fundo o pensamento de João Martins Pereira. Já agora uma questão: a sua obra está recolhida pela Imprensa Nacional? Não seria interessante publicá-la agora? 

António Luís Catarino

Coimbra, 23 de janeiro de 2020

«Classico», de José Ricardo Nunes


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«Classico» é o último livro de José Ricardo Nunes, um poeta que sigo com cada vez mais interesse. Conheço-o como excelente pessoa e é inquestionável que temos diante de nós um grande poeta. O seu percurso é singular pela coerência formal, pela diversidade dos temas, por uma ironia desoladora e tão inquietante que nos leva a interrogar-nos, não sobre o que o poeta escreve, mas sim pelo efeito que produz em nós.

Não, não foi uma desatenção. O título é mesmo «Classico». Sem acentuação, o que me levou a investigar o étimo da palavra. Deparei-me com o latino classĭcus com várias definições, sendo que a mais natural e consultando o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa é tudo o que não se afasta das regras estabelecidas; que segue os usos, os costumes ou que adquiriu o valor de norma. Não se trata de eu estar enganado nesta perspetiva, ou não. É mais provável que esteja errado. Mas toda a poesia do livro, dividido em três capítulos nos aponta nesse sentido – o da Norma. Diria, até, eivado de um certo conservadorismo que chama o divisor comum da vida e também da morte. O capítulo I é preenchido com o binómio luz e sombra onde a música também está presente, não sendo a primeira vez na obra já extensa do autor que este a utiliza, com os Nocturnos de Chopin e o BWV 147 de Bach. Tal como uma religiosidade implícita a que só o José Ricardo pode dar voz.

Mas pode não ser nada disto e atermo-nos ao Kaffeehaus Classico de Bremen ou o quarto 53 do hotel homónimo onde provavelmente nasceu esta experiência poética e que vem inscrita logo na página 9 do livro. De qualquer modo juntei as duas hipóteses. Sou um mero leitor, avançando com possibilidades várias.

«(...)
O cigarro tépido no banco do adro,
O desespero e tudo o mais que não tem fim,
Tudo sobre a loucura e a ausência
E a ausência de saudades,
Tudo sobre o amor,
A vida, o desgarrado mundo,
A vida perdida, a vida ainda.»

Nos campos II e III (tal como nalguns versos do I capítulo) podemos sentir a memória e o futuro, o passado e o presente, quase sempre o futuro em que já vivemos projetado nas palavras e uma memória que nos remete para um registo poético da infância e da adolescência do autor, e tentar o futuro em transubstanciação:

«(...)
Foi o corpo dar o corpo a comer à alma
E a alma dar a alma a comer o corpo.
E depois, não sei muito bem porquê,
Associei tuso isto ao amor.»

Este livro é uma relíquia.

Editora Companhia das Ilhas
Pedidos a companhiadasilhas.pt
Tiragem: 100 exemplares

António Luís Catarino
Coimbra, 20 de janeiro de 2020

sexta-feira, janeiro 17, 2020

«Do Fascismo ao Populismo na História», de Federico Finchelstein

«Os ‘’Antifa’’ é melhor esperarem que o outro lado
não se mobilize...porque se virem, o outro lado são
os militares. É a polícia. São montes de pessoas muito
fortes, muito duras. Mais duras do que eles.
E mais espertas do que eles.»
                                                                                                                                                     
Donald Trump, declaração televisiva em 2018

Uma vez, já há alguns anos, um grande amigo ligado à coordenação de uma grande editora hoje ainda em expansão, disse-me «Não edito mais nada sobre globalização. Parecem moscas a editar tudo e o seu contrário sobre a globalização. Já ninguém compra nada que tenha esse nome na capa!». Isto vem ao caso sobre o tema «Populismo». São tantos os livros publicados sobre o populismo de direita e de «esquerda» que nos arriscamos a deixá-lo passar nos nossos dedos por enfarte.

Desta vez li «Do Fascismo ao Populismo na História», de Federico Finchelstein, um professor especializado em história do fascismo e colunista em jornais como o Guardian, Washington Post e New York Times, entre outros... Simpático da parte dele, acrescentar um prefácio à edição portuguesa que data de 6 de janeiro de 2019.

Não creio que o livro seja de rejeitar à partida, principalmente pela esquerda. Primeiro, porque não concorda com Chantall Mouffe e Laclau que defendem claramente o desenvolvimento de um populismo de massas no campo da esquerda, segundo porque conduz-nos a uma leitura mais metodológica da diferença entre fascismo e populismo e terceiro porque engloba o populismo como fenómeno mundial e não eurocêntrico, original da América do Sul e da Índia. Não deixa de ter razão neste perspetiva teimosa do europeu em ver-se a si próprio como protagonista de uma História total que passa necessariamente pela Europa e só na Europa.

Contudo, embora não se opondo totalmente a Enzo Traverso deixa algumas considerações que o afastam dele, talvez pela persistência em analisar populismos de esquerda que situa principalmente no peronismo e no movimento guerrilheiro que lhe deu forma na Argentina: os «Montoneros». Localiza os movimentos populistas de esquerda na Colômbia, no Uruguai, Na Síria e Egito, no Brasil no 2º mandato de Getúlio Vargas (!!), na Venezuela de Chávez e Maduro, na Bolívia de Evo Morales (o livro foi editado antes do golpe) e hoje e à direita, claro, no Brasil de Bolsonaro, nas Filipinas de Duterte, no Trumpismo americano (identificando vários populismos antes dele, como George Wallace, Ross Perrot, por ex.).

Na Europa, não há um único governo fascista com esse nome, segundo Finchelstein, porque os movimentos fascistas se transviaram em populismos quando estão no governo ou perto dele, como na Polónia, na Itália de Fini, Salvini e, antes, de Berlusconi, na Hungria de Victor Órban, na Holanda, na Suécia, na Finlândia, na Grécia (o único populismo de esquerda que ele identifica com o renovado Sirysa), Boris Jonhson, na Grâ-Bretanha e por aí fora.

Concordamos que o título do livro está longe de nos dar uma visão pormenorizada da História do populismo (teríamos de ir a Péricles e a César, não?). Seriam precisos muitos volumes e é com imensa pena que digo que o autor não peca por ser sintético, antes pelo contrário, repete até à exaustão ideias e conceitos que cansam quando o lemos. Vale também pela apresentação de uma bibliografia exaustiva sobre o tema. São dezenas e dezenas de páginas. Mas vale por colocar a limpo certos conceitos com os quais os leitores podem concordar ou não. O que liga, então, o populismo de esquerda e o de direita, qual ou quais os fatores comuns de um e de outro? Vejamos o quadro que nos apresenta Finchelstein:

1.    Uma ligação a uma democracia antiliberal, eleitoral e autoritária que rejeita na prática a ditadura (diferente do fascismo)
2.       Uma forma extrema de religião política (apresenta o caso dos Kirchner, de Eva e Péron e de Chávez)
3.       Uma visão apocalíptica da política que apresenta os sucessos eleitorais e as transformações que esses sucessos transitórios permitem como momentos revolucionários na fundação e refundação da sociedade
4.       Uma teologia política fundada por um líder do povo messiânico e carismático
5.       A perceção dos antagonistas políticos como o antipovo – isto é, como inimigos do povo e traidores da nação
6.       Um fraco entendimento do Estado de direito e de separação dos poderes
7.       Um nacionalismo radical
8.       Uma ideia do líder como a personificação do povo
9.      Uma identificação do movimento e dos líderes com o povo como um todo
1.   A afirmação da antipolítica
1.   O ato de falar em nome do povo e contra as elites dirigentes
     A autoapresentação da defesa da verdadeira democracia e a oposição a formas imaginárias ou reais de ditadura e tirania (UE, o Império, o cosmopolitismo, a globalização, etc...)
1.   A visão de um povo como entidade única que, após se tornar regime é equiparada a maiorias eleitorais
1.   Um profundo antagonismo ao jornalismo independente
1.   Uma aversão ao pluralismo e à tolerância política
1. A insistência à cultura popular e até em muitos casos, no mundo do entretenimento como representações de tradições nacionais

Depois desta exaustiva apresentação do divisor comum dos populismo de direita e esquerda o autor avisa-nos, entretanto, que o populismo pode não nascer fascista, mas que, invariavelmente, o populismo tornar-se-á fascista no futuro. Seja orgânico ou protecionista, corporativo ou neoliberal, pouco importa. O papel que cabe à violência é outro dos casos em que me interrogo sobre esta questão. O fascismo que se formou pela violência das suas hordas na rua é recusado pelos populistas, mas não quer dizer que não o aplique pelas massas, pela legislação teleguiada para dar plenos poderes ao justicialismo, à polícia ou ao exército, pelos media, pelo incentivo dos jornais de estado, pela educação, as novas hordas engravatadas do futuro tecnológico que não rejeitam desde que estejam controladas pelos governos populistas ou fascistas, pós-populistas.

Relembro a citação de Trump no início deste artigo e vejam se o populismo recusa a violência, a prisão, o assassínio (Putin é um ás, neste particular), ou o recurso ao exército para reprimir a população que diz defender...como um todo.

António Luís Catarino
Coimbra, 17 de janeiro de 2020

domingo, janeiro 12, 2020

Rosa Montero ou la ridícula idea de volverte a leer


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Ou de como, facilmente, se conseguem «best sellers» em literatura. Prometi, a mim próprio, não colocar aqui qualquer ficha de leitura que dissesse algo de negativo. Do imprestável, não escrevo. Abro, portanto, uma exceção, porque esta senhora merece-o. Desta vez, li «La ridícula idea de no volver a verte», de Rosa Montero, um livro de 2013. Nestes entretantos, Rosa Montero escreveu «Lágrimas na Chuva» que se multiplicava em edições entre 2011 e 2015. Interessei-me por este último porque pensei que seria uma continuação livre de «Blade Runner», filme que me marcou positivamente, ou talvez mais que isso: continuarei, de tempos a tempos, a vê-lo sem me cansar. Não aconteceu isso com «Lágrimas na Chuva». Parei a meio da leitura, coisa rara em mim, e fechei-o para sempre. Acho que o despachei para alguém que gostava muito dela. Aquilo nada tinha a ver com o «Blade Runner», nem com «Do Androids Dream of Electric Sheep?» de Philip K. Dick. O que eu li, de Montero, foi um embuste, muito bem embrulhado numa capa sugestiva dirigida ao filme e que supostamente lhe dava continuidade.

Há dois meses caí novamente na esparrela: comprei outro livro de Rosa Montero titulado «La ridícula idea de no volver a verte». Bom, só o título cheirava a qualquer romance de amor, daqueles que estão à venda nas tabacarias de bairro, junto aos maços de tabaco com fotos de moribundos, pulmões desfeitos, cicatrizes enviesadas, olhos cegos e impotências garantidas pelo uso abusivo da nicotina. Mas, por dois euros e meio, comprei o original em edição de «bolsillo» com a capa que podem ver em cima, com uma mulher que voa desbragada por uma Nova Iorque (porque Nova Iorque, não se sabe) com saia larga que lhe permite voar e um soutien aerodinâmico.

O livro tem receita e, mais uma vez, enganou-me. Não chorei completamente visto ter dado somente 2,5 euros por ele, já manuseado. Trata-se da vida e da morte dos Curie, Pierre e Marie, incluindo a filha Irène que não sobreviveu igualmente devido à radioactividade do urânio e do plutónio que manipulavam sem se protegerem. Morreram todos antes dos 60. Estoicamente, iniciei a leitura e desta vez não o coloquei de lado.

1 - Primeiro engano: não se tratava de uma investigação autoral sobre a vida dos Curie. Rosa Montero estava à beira da depressão, há quase um ano e a sua editora mai-la contabilidade, pediu-lhe um novo romance, desta vez com uma proposta que se baseava nos Curie. Isto salvou-a da depressão, claro está, e foi uma boa ideia, sim senhor. Deram-lhe sete biografias de diferentes origens e diários dos Curie e ela aqui e ali foi retirando o «estudo» da família. Claro, que retirou o que quis. Não houve, portanto, investigação da autora.

2 – Outro preceito para a leveza da sua escrita e que leva à aquisição de milhares de livros: as fotos que povoam o livro que vão desde o espião Litvinenko assassinado pelos russos através de doses de plutónio «en su lecho de muerte», passando por uma gravura da Papisa Joana, por um quadro da Paula Rego, pela calvície da Isabel I de Inglaterra (culpado: o chumbo que usavam para branquear a pele), por uma foto de uma Nossa Senhora de Fátima comprada por 6,70 euros na localidade e cujo efeito luminoso, pela noite, pode ser de radioactividade mortal! Pior: pode-se comprar estas estatuetas da Nossa Senhora pela net! Relações entre as fotos e o texto são completamente pueris.

3 – Mais modernaça do que nunca, Rosa Montero utiliza os hastags para que os leitores não se percam ou se desliguem da internet. Vejam o que é ler assim: «Y aquí hay que hacer un punto y aparte para hablar de la #DebilidadDeLosHombres, ou ... #CoincÍdencia, ... #Lugar, etc... dá uma fluência de leitura que nem queiram saber!

4 – A fragilidade da mulher e, aqui, Rosa Montero, aparentemente feminista, deixa cair muitas contradições que não vale a pena esmiuçar. Constatar-se-iam por uma foto aposta por ela do assassino de Milwaukee, Jeffrey Dahmer, que mutilou, torturou, matou e canibalizou as suas vítimas, dezassete ao todo, fora os que não foram descobertos, com a seguinte questão: «Mira este rostro, por ejemplo: no crees que augura un temperamento dulce y delicado?». Após o identificar, remata: «Creo que estos excesos de idealización los padecemos sobre todo las mujeres, que mostramos una desmesurada facilidad para inventarnos al amado.» Mau gosto e submissão é dizer pouco.

5 – Mas o mau gosto e a vaidade vão mais longe. É certo que, Rosa Montero explora até ao limite a vida íntima e os «escândalos» de Marie Curie (porque não a de Pierre?) e até de Irène Curie através do estudo enviesado das sete biografias e dos diários que são revelados de Marie, mas escusava de a comparar com a sua própria vida e aqui o caso é mais sério, razão pela qual me debruço sobre este livro de que não gosto. Rosa Montero estava com uma depressão. Marie Curie teve várias. Rosa Montero foi convidada pela editora a «trabalhar» os Curie. Rosa Montero, de facto, leu as biografias de outros. Pierre Curie morreu atropelado por uma carruagem. Segundo ela, não foi a carruagem que o matou, mas sim a radioactividade que o enfraqueceu ao ponto de perder os vários sentidos. Marie enviuvou guardando para si um pouco de osso do crânio e algum cérebro de Pierre. Rosa enviuvou de Pablo que morreu de cancro há quase 20 anos. Guardaram ambas recordações e memórias dos seus amados. Conclusão óbvia: como são parecidas Marie e Rosa!

6 – Preceitos, portanto, para um êxito literário contemporâneo de grandes vendas: morbidez, desgraça, citações (Pessoa calhou bem), vulgaridade, fotos e hastags em catadupa, escândalos assassínios e cancros. Depressões e ultrapassagens heroicas do estado de limbo em que se encontram as personagens. Banalidades e assunção da banalidade enquanto tal «Ah, cuánta, cuantísima # Intimidad hay en estas líneas! La vida real, la mas verdadera y más profunda, está hecha de estas pequeñas banalidades. Marie le hizo las natillas que le gustaban.»

7 – Não caio noutra.

António Luís Catarino
Coimbra, 12 de janeiro de 2020