segunda-feira, novembro 28, 2022

«Andanças com Heródoto», de Ryszard Kapuscinsky

 

Kapuscinsky conheceu o mundo. Nascido em 1932 e falecido em 2007, escreveu este livro três anos antes e fá-lo como uma espécie de homenagem a Heródoto. Não segue o seu roteiro geográfico ou cronológico. Escreve que aprendeu com ele a distinguir o que é aproximação da verdade e o que é totalmente mentira ou efabulação não voluntária. Chama-lhe repórter o que é uma grande provocação para os historiadores e académicos que ensinam aos seus alunos a desconfiar de Heródoto, embora lhe apontem o epíteto do primeiro historiador. Kapuscinsky na sua corrida pelo mundo real em todos os continentes do planeta conseguia levar os tomos da «Histórias» do grego de Halicarnasso, hoje Godum na Turquia. Portanto, os dois são conhecedores do que melhor e de pior é capaz a Humanidade. E no pior vem sempre a guerra, esse vírus que não nos larga pela cobiça e pelo poder. E isto não é de humanismo serôdio. É a realidade que convém não esquecer ao optimimista que teima ainda em construir algo de novo. Heródoto, seguido por Kapuscinsky, tem explicações para o facto das guerras serem permanentes. No fundo, pagamos ainda hoje por erros de antepassados, por vinganças e cobiça de poder e riquezas que se arrastam por séculos num turbilhão de ódio que aparentemente não tem fim. Heródoto apresenta-nos duas causas para as guerras e meios para as debelar: 1) assinalar aquele que eu sei ter sido o primeiro a cometer actos injustos; 2) a felicidade humana nunca permanece firme, sendo que esta última será a pior das causas porque a ambição pela chamada felicidade é ilimitada. Viver com o que se tem e com o necessário para uma vida digna e ser feliz com isso é um dos limites mais difíceis para a humanidade seguir. Parecem coisas simples a que um intelectual ocidental, habituado às complicadas teses filosóficas, poderá nem dar a importância que merece, mas não esqueçamos que quem nos escreve são dois homens que calcorrearam desde as regiões mais cosmopolitas até às mais inóspitas e desérticas. Conversaram com pessoas, viram guerras, viveram a paz, provaram de tudo e separaram o trigo do joio nos factos que lhes comunicavam. Se Heródoto conheceu ou relatou as guerras entre Persas e Gregos entre aqueles e Citas e se chegou a escandalizar com a crueldade inominável a que assistiu ou viu referida, também Kapuscinsky não lhe fica atrás com os massacres e torturas na América do Sul, na Ásia ou em África. Disso, ainda estamos como antes. Pior, talvez: a ciência e a tecnologia deram uma ajuda no aumento do sofrimento em teatros de guerra!

Sempre com Heródoto na mochila, Kapuscinsky conheceu a Índia dos anos 50 e a secessão do Paquistão com 1 milhão de mortos e 5 milhões de refugiados, o Egipto de Nasser, a Argélia de Ben Bella, a guerra civil do Congo, o Uganda, o Gana, os primeiros passos para a independência africana, o Senegal de Leopold Senghor e a negritude, a América do Sul, a China das «Cem Flores» de Mao e o início da Revolução Cultural, a Rússia, a Checoslováquia e a «sua» Polónia. Digo «sua» entre aspas porque duvido que ele se sentisse, no fim da vida e após tantas viagens, inteiramente polaco. Antes um cidadão do mundo, um passaporte inexistente mas pertencente a uma qualidade que muito poucos a conseguem atingir. Tal como Heródoto que duvidando de muito do que lhe diziam ou aceitando as coisas com reservas, ia dando conta da diversidade riquíssima da Europa, Ásia e África. Como ele dizia, «continentes todos com nomes de mulheres».

Conhecendo outras obras de Kapuscinsky, esta não é a mais enérgica e longe do que esperamos dele, mas o registo das Histórias de Heródoto que cruza com as suas experiências no mundo faz com que o tenhamos junto a nós. Nem que seja para nos lembrar que não somos assim tão diferentes dos de há 5 mil anos atrás. Tal como os deuses que nos guiam que, desconfiava Heródoto com algum cuidado desprezo, não seriam assim tão diferentes uns dos outros e que eram objecto de imitações entre povos com as mesmas necessidades e sonhos.

quinta-feira, novembro 24, 2022

«Aniquilação», de Michel Houellebecq

 

Isto deve ser a relação normal entre um leitor como eu, que leu o oitavo e último romance de Houellebecq, e sentir que o homem se está a transformar num tipo mais humano, mais comovedor, até. Não será o caso de sentir a velhice a cavalgar face a uma das figuras do Apocalipse com a gadanha apontada a ele, visto que ele nasceu em 1956. Não é assim tão velho e eu também nasci nesse ano, note-se e não gosto nada que mo lembrem, principalmente no registo de «Aniquilação». Embora não me sinta assim tão seguro do que acabo de dizer. Sim, a velhice vem aí e a morte também. Para além disso, Houellebecq não nos lembra somente que somos mortais. Para isso escreveram-se milhões de páginas. Lembra-nos, antes de mais, que somos mortais e do Ocidente o que faz toda a diferença. Para além disso, somos tecnologicamente avançados e presentes numa enorme economia de mercado, cujo dinheiro pressupõe um negócio em tudo o que toca. O nosso corpo, a degenerescência, a doença e a morte são tratados como valor. E sofremos também por isso. O autor que eu gosto e detesto simultaneamente tem esse condão de nos lembrar como sendo quase esse o seu leit motiv dos seus livros. É muito possível que tenhamos perdido uma fatia grande de dignidade na velhice e principalmente na morte. Materializámos a nossa morte e acelerámos a velhice quase pedindo desculpa por teimarmos em viver sem «contribuir» para a riqueza das sociedades. É este o tema principal de «Aniquilação», embora não o entenda como a continuação de mais do mesmo de romances anteriores de Houellebecq. Ele está mais suave, mais empático e continua a escrever incrivelmente bem. Tem trechos de uma beleza notável.

«(...) - A verdadeira razão por trás da eutanásia, na realidade, é que já não suportamos os mais velhos, já nem queremos saber se eles existem, é por isso que os abandonamos em lugares especializados, longe da vista de outros humanos. A quase totalidade das pessoas, hoje, considera que o valor de um ser humano decresce à medida que a idade aumenta; que a vida de um jovem, e mais ainda de uma criança, tem muitíssimo mais valor que a de uma pessoa muito idosa. (...) Em todas as civilizações anteriores, o que determinava a estima, ou até a admiração, que se podia ter por um homem, o que permitia estabelecer o seu valor, era o modo como se comportara efetivamente ao longo de toda a sua vida; (...) Os nossos atos heróicos ou generosos, tudo aquilo que conseguimos atingir, as nossas realizações, as nossas obras, nada disso continua a ter valor aos olhos do mundo; e, muito depressa, deixa de o ter aos nossos próprios olhos. Eliminamos assim qualquer motivação e todo o sentido da nossa vida; é, sem tirar nem pôr, aquilo a que chamamos niilismo. Desvalorizar o passado e o presente, em prol do futuro, desvalorizar o real em favor de uma virtualidade situada num futuro vago, eis os sintomas do niilismo europeu, bem mais decisivos do que todos os relevados por Nietzsche; (págs. 395,396). 

E sobre a morte, depois de considerar que a agonia e principalmente agonia antes da morte se tornou «vergonhosa» no Ocidente a partir dos anos 50, ou seja a partir dos «30 Gloriosos» a própria doença era considerada quase um tabu. Diz o autor de «Aniquilação»: «(...) Quanto à morte, era ela a indecência suprema, rapidamente se determinou a sua ocultação na medida do possível. As cerimónias fúnebres ficaram mais curtas - a inovação técnica da cremação permitia acelerar significativamente os mesmos procedimentos, e a partir dos anos 80 as coisas passaram a ser assim. Muito mais recentemente, as classes mais esclarecidas e as mais progressistas da sociedade começaram a escamotear igualmente a agonia. Tornou-se inevitável, os moribundos defraudavam a esperança que colocávamos neles, reagiam muitas vezes mal à perspetiva de transformar o seu passamento numa festança, o que deu lugar a cenas bastante desagradáveis.» (pág.570)

Houellebecq está pois no seu auge como escritor. Não sei se mudou e no próximo romance espelhará, como foi hábito nos romances anteriores o seu sarcasmo e cinismo, mas a leitura de «Aniquilação» é fundamental porque se trata de um livro extraordinário. É evidente que quando se fala de aniquilação, mesmo que neste caso, seja de pessoas, de sujeitos que amam e vivem até ao fim, a finitude também perpassa para a Humanidade em estado semiletárgico, alienado pela guerra e pela precariedade material e dos sentidos, igualmente. Houellebecq prevê o regresso de um niilismo próprio do estado demencial em que o planeta se encontra. No meio do romance aconteceu-me um sobressalto: cita um livro de John Zerzan que eu editei na Deriva - «Futuro Primitivo» - e um dos agitadores das grandes manifestações de Seattle, como sendo um «anarcoprimitivista» um movimento tipicamente americano embora creio que ele confundiu com o «sobrevivalismo» uma corrente mais radical que não é seguida por Zerzan. São pormenores, mas no essencial até se aceita a descrição de «Futuro Primitivo» https://derivadaspalavras.blogspot.com/search?q=futuro+primitivo como pondo em causa a tecnologia moderna. Compará-lo a Kazinsky, ou Unabomber, é que é um pouco mais forçado. Não têm nada a ver um com o outro. O primeiro não é niilista, joga na ação de massas; o segundo talvez seja, se ainda for vivo, esquecido numa prisão dos EUA. Poderia ter citado um autor que defende um neoniilismo falecido há meses e que também editei - Peter Lamborn Wilson ou Hakim Bey cujo último livro foi recentemente editado em Portugal e defende exatamente um novo niilismo salvífico. O outro sobressalto é quando cita um livro que li e que ainda não foi publicado aqui, trata-se de «Le Lambeau» de Philippe Lançon que ficou gravemente ferido aquando do ataque islamita à Charlie Hebdo. Conta nesse livro o suplício que passou dois anos num hospital de Paris a tentar a recuperação que nunca foi total. Devo dizer que o seu relato é impressionante e que publiquei neste blogue https://derivadaspalavras.blogspot.com/search?q=phillipe+lan%C3%A7on . 

Houellebecq é como é. Sabemo-lo bem e o único livro que não li dele foi o seu «Intervenções». Não sendo um romance não me interessava saber mais sobre o que ele pensa. Não sei se está nos meus antípodas políticos. Deve estar, seguramente. Até porque como ele diz desenvolve-se em cada um de nós um pensamento político que concorre para a solução do que é estritamente social e humano. Para ele isso ainda constitui um mistério. Para mim, isso ainda está na base de tudo o que é humano. Mas também sei que o é cada vez menos. De geração após geração vemos o pensamento a fraquejar numa espécie de aniquilação. 

quarta-feira, novembro 23, 2022

A solidariedade com Mamadou Ba a crescer. «Eu escrevi»...

https://emcarneeosso.com/2022/11/22/antonio-luis-carolino/?fbclid=IwAR1gQPtanebn0KqcA0nSpUNj9GHjwiNLXXkufTQ0-7meEw3Je8u-0SsNQWM

Quando tentamos perceber a dimensão do racismo em Portugal temos de encontrar múltiplas respostas começando pelo óbvio: Portugal é um país em que o racismo se encontra em rédea solta e tem meios para se difundir e alargar nos seus variados aspetos. Entre eles, e por arrasto, a misoginia, a homofobia e a xenofobia. Portugal foi um Império de que muitos, mas mesmo muitos, têm saudades. Do grande, do enorme império cujos maiores lucros iam direitos para as grandes potências ocidentais que pilharam sem escrúpulos continentes inteiros. Portugal foi esclavagista. Portugal foi inquisitorial, instilando medo e respeitinho. Portugal foi ditatorial. O Estado português prendeu, torturou, matou por encomenda. Portugal foi Pide, foi Tarrafal, foi Caxias e Peniche. Portugal foi fascista. Portugal gosta e respeita a autoridade e o autoritarismo. Que rasto deixa este espelho? Uma imagem ligeiramente deformada pela existência de uma democracia que ainda não aprendeu que os limites da liberdade estão a ser ultrapassados há muito. Mamadou Ba vai a tribunal pelo vazio que é preenchido somente por ódio puro. Um nazi acha-se no direito de o colocar em tribunal por incentivo ao ódio, quando Mário Machado, ele próprio, cujo currículo de violência fascista não deixa enganar ninguém – só a um juiz sobejamente conhecido pelo seu narcisismo justicialista – está enterrado até aos ossos em crimes de sangue, entre os mais conhecidos, a morte do cabo-verdiano Alcindo Monteiro. Assim se faz a justiça em Portugal. E porque se deixa fazer este tipo de justiça em Portugal, quando seria impensável acontecer em países da mesma Europa a que este país diz pertencer? Porque existe um racismo de características cobardes: o que diz que Mamadou Ba se pôs a jeito, que procura a violência, que é racista contra os brancos… Este tipo de racismo não deixa de ser o mais perigoso, porque não separa as razões de um e de outro, do oprimido e do opressor, não explica o que faz Mamadou Ba ao invetivar um passado no mínimo questionável, porque teima em não descolonizar, porque persegue fantasmas do antigo império e os deixa soltos para o que vier ainda aí, porque se diz afável e dialogante, democrata, limpo, puro. No entanto, ele suja-se. Como agora, concordando em privado ou mesmo em público, com bonomia e olhos para o céu, com a ida a julgamento de Mamadou Ba provocada por um nazi que «em democracia» diz ter igualmente direitos. Direito de apontar alvos para a morte, direito de espancar, direito de sequestrar, direito de difamar e de mentir. Este tipo de argumentação delicodoce do «eu não sou racista, mas…» foi o que levou Mamadou Ba a julgamento. Não foi Mário Machado e o seu discurso peripatético de chamamento ao ódio. É o vazio, o vazio do chamado «centrão democrático» difícil de combater exatamente por ser vazio, que leva um lutador antirracista e antifascista à barra do tribunal. São estes que levam Mamadou Ba a defender-se de um nada oco que ainda assim consegue ir buscar à extrema-direita «argumentos» pensando que, algum dia, a manipularão. Terreno perigoso, muito perigoso, este.

António Luís Catarino
professor


quarta-feira, novembro 16, 2022

«Catastrophisme, administration du désastre et soumission durable», de Réné Riesel e Jaime Semprun

 

Éditions de LÉncyclopédie des Nuisances, 2008
Um ponto de vista que, não sendo novo, é imperioso ter em conta sobre o catastrofismo e as ligações que lhe estão associadas. É evidente que não vai beber a Trump ou à extrema-direita o negacionismo sobre as alterações climáticas. Não teria lugar aqui se assim fosse nem eu lhe daria qualquer importância. Mas é de levar em consideração sob o ponto de vista de quem quer mudar de vida sem ser sob o domínio das multinacionais verdes ou do ecocapitalismo. Sobre o decrescimento Réné Riesel, um autor que esteve ligado à auto-extinta Internacional Situacionista, aponta um sem número de questões que é necessário debater entre aqueles que olham para o planeta a sucumbir e não o desejam de todo. Em síntese - e necessito de pedir cuidado com esta, visto que a tese é bem mais complexa do que aqui pode ser explanada - o decrescimento económico é referido por uma última, mas não única, possibilidade de salvação do capitalismo. Esta tese nos meios da esquerda, repito, não é nova e já se equaciona desde, pelo menos, dos finais dos anos 70 do século XX. Os movimentos ecologistas dos anos 80 que integraram em parte os movimentos esquerdistas do Maio de 68 deram mais vigor à tese salvífica do mercado. Aliás, no final do livro, Réné Riesel explica em palavras bem duras para alguns movimentos pós-68 que se «serviram» de alguns slogans revolucionários para os integrarem numa política hedonista, individualista, de «festa permanente» que nada tinham ver com o movimento das ocupações quer estudantil, ou operário. Já um pouco mais estéril é a polémica em torno das posições de Anselm Jappe e da sua co-autoria no «Manifesto contra o Trabalho».

De qualquer modo, sabemos já por experiência que exigir o «decrescimento económico» sem colocar em causa as bases mercantis de acumulação capitalista é uma contradição insanável. Mas a tentativa dos autores em porem no mesmo saco os que aceitam a submissão face ao domínio totalitário do capital com os que o combatem pela base, numa enorme bolha de servidão voluntária (para parafrasear Boétie), talvez seja um pouco forçado.

Vejamos uns dos pontos mais polémicos da leitura de «Catastrophisme»: «(...) De resto, certos militantes do ''decrescimento'', sem dúvida insuficientemente convencidos da falibilidade das suas preconizações, evocam por vezes a necessidade de uma ''revolução cultural'' e remetem-se finalmente a nada menos que uma ''descolonização do imaginário''! O carácter vago e lenitivo de tais vozes piedosas, nada dizem sobre o que permitiria preenchê-las, a não ser a arregimentação estatal e neo-estatal reforçada que implicaria por outro lado o essencial da defesa do decrescimento, que parece sobretudo destinada a reprimir a vontade do amargo conflito que inevitavelmente se tentaria, e já pensando seriamente na destruição total da sociedade, ou seja, do macrosistema técnico a que se resume exactamente a sociedade humana.» (tradução livre, pág.33).

Mais à frente cita a obra de Jacques Blamont «Introduction au siècle des menaces, 2004» com a qual Réné Riesel se identifica na sua conclusão, afirmando-a mais realista sobre o que verdadeiramente nos espera: «A única porta de saída aberta para as nossas crianças: colocar uma combinação munida de todos os biosensores que a lei de Moore saberá fornecer para se sentir, ver e tocar virtualmente, engolir uma boa dose de euforizante e partir para cada fim-de-semana para o país dos sonhos com a star preferida, numa praia pré-sexta extinção, os olhos focados em capacetes-ecrãs, sem passado e sem futuro.» Ora, se bem que verosímil este quadro, não é forçoso que não apareçam forças sociais transformadas em sujeito revolucionário  que impeçam tal futuro e que coloquem em causa o plano estatal de domínio através de uma cada vez maior acumulação de capital baseado nas novas indústrias multinacionais ditas verdes ou mais cinicamente referidas como sustentáveis. Segundo o autor a visão deste decrescimento seria a visão soft que baseia a sua teoria numa espécie de teoria ou pedagogia das catástrofes que transformaria o homem num sujeito revolucionário capaz de fazer tábua rasa de um planeta destruído, vazio, mas cuja humanidade sairia imaculada reservando uma moderna civilização industrial a que estava ligada um amor inato na liberdade. Digamos que é a visão de muitos marxistas que acreditam na «autodestruição» do capitalismo tal como foi aventado por Marx e Engels. A versão hard do decrescimento económico vem com o que chama de «autenticamente extremista na sua conceção de salvação pela catástrofe, que se encarregaria de criar não só condições objetivas de emancipação, mas igualmente de condições subjetivas: um género de material humano necessário de tais cenários poderia personificar um sujeito revolucionário (pág.41). Esta teoria, segundo Réné Riesel está sediada em Raoul Vaneigem de 1967: resumindo, a catástrofe seria «(...) de tal maneira esmagadora que as condições de vida material obrigariam nas zonas mais devastadas, arrasadas, envenenadas» que de tal caos nasceriam e multiplicar-se-iam enclaves insurrecionais que originaria uma «verdadeira catarse» graças à qual a humanidade regenar-se-ia e acederia a uma nova consciência, que será à vez social, ecológica, viva e unitária, citando agora Michel Bounan em «La folle Histoire du Monde, 2006».

Seja como for, a «fábrica de consensos» baseada na «tomada de consciência ecológica» já tomou forma avisando-nos que é necessário «mudar de vida». Mas que significa para as multinacionais verdes «mudar de vida»? Compreende, antes de tudo, uma selvajaria de lucros fabulosos para essas mesmas multinacionais e estados falidos, o desaparecimento de classes sociais remediadas enviadas sem escrúpulos para a pauperização absoluta, sem apoios estatais e criando bolhas de cidades para ricos e muito ricos, livres do ambiente envenenado como o Dubai e o Catar apoiados por massas obedientes, acreditando nas estatísticas «científicas», obcecadas pela reciclagem e pela luta contra bactérias e vírus, alienadas pela biotecnologia e ordenadas segundo critérios totalitários aceites por todos e necessários para a sua conservação dominadora como espécie última, último recurso da ideologia nazi transformada agora em democracia totalitária, um pleonasmo do futuro. 
O «mudar de vida» de quem não aceita a destruição do planeta terá a ver com o seu reverso: a destruição da sociedade industrial extrativa em que vivemos, reduzindo a produção ao necessário e construir as novas subjetividades ancoradas numa vida verdadeiramente livre e autónoma, autogestionária, terminando definitivamente com o trabalho assalariado. Reaprender a viver, porque o capitalismo e catástrofe estiveram sempre ligados desde o advento da sociedade industrial e a acumulação do valor. Isso será um programa verdadeiramente extraordinário.

António Luís Catarino

quinta-feira, novembro 10, 2022

Just Stop Oil. Provavelmente indignámo-nos cedo demais

Provavelmente indignámo-nos depressa demais. Apresento-vos Phoebe Plummer uma das activistas responsáveis pela Just Stop Oil. Por mim, caros amigos, é possível que me tenha insurgido contra a «destruição» de obras de arte, enquanto me deliciava com o que lia sobre os dadaístas, os futuristas russos e italianos (em planos diferentes, é certo) e também com os primeiros surrealistas acerca da destruição da arte. Malevich, em 1931 escrevia aos Sovietes para acabarem com todos os museus. Marinetti dizia que um automóvel era mais belo que a Vitória de Samotrácia! Um dadaísta tentou incendiar Nôtre-Dame e depois tornou-se frade! No Maio de 68 fez-se BD com originais de Velásquez. Há inúmeras acções niilistas contra a arte que entretanto muito padece, como todos sabemos. Alguma arte contemporânea é merecedora de um prato de feijoada azeda. Portanto, estes jovens nem sequer destruíram nada; supostamente riscaram uns vidros que protegiam as obras de arte e uma sopa não estraga nada. É possível que haja até simpatia pela causa. Por mim, que me apanhei nas teias da minha própria contradição, ajudado por uma reflexão em forma de OrAcção pela manhã (a pessoa sabe do que falo) não proibia somente a extracção de petróleo. Proibia igualmente a extracção do gás e do carvão. É que mudar de vida é mesmo possível. Ou a tal autoestrada para o inferno existe mesmo e estamos todos a olhar para brincos de pérola?

«Um Adeus aos Deuses» de Ruben A.

 

Assírio & Alvim, 1ª ed.1963. Esta edição: 2010
Visitar a Grécia em 1963. Ruben A. deveria ter os seus 42 anos e nota-se em todo o livro uma procura comovida pelos deuses gregos, pela arte grega, pela própria Grécia e pelos seus habitantes, seguindo Sophia, Homero, Fernando Pessoa, Miller, Byron que lá morreu, Seferis, Debussy, entre outros. Um caminho autobiográfico, um caderno de viagem, seja como o cataloguem é bom de se ler. Refresca, mesmo sabendo que um português vivendo com uma moeda que nada valia a nível internacional e sob a ditadura salazarista, encontra outro povo vivendo igualmente mal e sob uma outra ditadura, esta dos coronéis. Com Xenakis condenado à morte e no exílio francês, com Yannis Ritsos preso em campos de concentração e Theodorakis fugido, igualmente no exílio. Começa aí, sem o dizer explicitamente, uma solidariedade que se descobre nas ofertas comuns, nas conversas de tasca, «os gregos falam, falam, falam», na partilha da resina e nas trocas das estórias de vidas.

Um dos aspetos mais interessantes das crónicas é o seu fascínio pelos kuroi, as esculturas arcaicas de homens e mulheres cuja técnica é claramente influenciada pelo Egipto. São hirtas, hieráticas, mas plenas de erotismo o que as contrapõe à arte egípcia que paradoxalmente foi a referência, mas mais guerreira, mais reverencial para com os poderosos. «O Kouros é a abstracção inventiva de um tipo de beleza que possa agradar aos deuses - é o encontro mais brilhante entre a uniformidade do tema e a diversidade em exprimi-lo, a neutralidade definitiva da identificação. O Kouros é a imagem mítica de um Menino Jesus adulto.» (pág.35). O mesmo sentimento do maravilhoso em Ruben A. é a Arte das Cíclades, o que ficou das antigas Deusas-Mãe de uma Pré-História mítica: «Marrei os olhos à espera que saltasse toda a imaginação de uns corpos com a dignidade de deuses absolutos, de braços ainda não lamentados nem gesticulados, de braços assentes na própria formação da figura humana.»(pág.37).

Percebe-se o encantamento de Ruben A. pelo arcaico o que na minha leitura não deixou de ser, por um momento, estranho. O lugar comum, o senso comum que pessoalmente não lhe tenho respeito algum, é descrever de uma maneira algo basbaque as esculturas clássicas do século V, chamado do século de ouro de Atenas ainda por cima fazendo-o ligar a um estratega político - Péricles. «O arcaico é que está dentro de mim, é tudo aquilo que é perfeito sem estar definido, tudo o que se opõe à regra rígida de um cânone estabelecido pelo senso comum. - senso comum inventado um dia pelos Gregos, no século V, que teve a infelicidade de se repetir através dos séculos. um senso comum que teve efeitos nos bolos de pastelaria, nas concepções rígidas da moral, quando a tragédia dos moralistas quer aproximar em regras fixas o espírito da beleza clássica do homem.»(pág.34) Nunca li - talvez nos surrealistas a que Ruben A. não estava de todo afastado - uma crítica tão bem elaborada por um escritor ao senso comum e aos cânones estabelecidos e colocados em limbo num esquecimento que só se revela quando oportunistas querem convencer os incautos. À falta de melhor, venha de lá o «senso comum» e os parvos caem que nem tordos.

O seu horror pelo Clássico é bem descrito nesta passagem quando visitava Olímpia: «Custa-me às vezes perceber o grego clássico, mas lá vou com o meu Larousse das ideias tentar penetrar na brincadeira jocosa de dois tagarelas que se desafiam em conversa fiada. Não gritam! Não fazem ruídos nem desafinam. Aqui está outro dos sublimes segredos destes habitantes - quando querem dizer qualquer coisa geometrizam a economia da palavra, tiram-lhe o conteúdo floreado de palha e avenca, e deixam ao pôr do sol o descanso do diálogo que ficou suspenso à entrada do templo.»(pág.72)

Depois de mais encantamento e do calor branco e azul da Grécia, de Miconos, de Lindos, do Parténon em que se recusou a subir até lá de burro (estamos em 1962!) e embora o tenha feito e louvado tal transporte em Creta com um comerciante sírio, do Epidauro onde leu, na orkestra e em inglês um trecho do Orestes-Rei aplaudido por um pequeno grupo de turistas. Turistas esses já objecto de jocosidades do autor, como aquele par suíço que somente reteve da Grécia o terem visto um porta-aviões americano «Sabe, os lagos na Suíça são pequenos»! Gostava que lessem esta parte teatralizada por Ruben A. (a parte lida no Epidauro?) e extraíssem possíveis ilações de quem estaria ele a falar; se o recado não era direitinho para as duas ditaduras na boca do povo que condena à morte Orestes, depois deste ter convencido os deuses a estarem ao seu lado:
«Vozes - Orestes serviu-se dos deuses, Orestes não acreditou na justiça dos homens, Orestes traiu-nos - invocou poderes sobrenaturais para governar. Orestes quer justificar o poder absoluto. Da tragédia da família quer arrastar à tragédia do seu povo. Orestes não é homem, Orestes pode vingar-nos com os deuses. Vai invocá-los para nos governar. De absoluto passa a tirano, de tirano a carrasco. Queremos Orestes julgado pelos homens, julgado nesta praça pelos seus próprios cidadãos - um Orestes liberto das divindades, irmanado à desgraça natural e à alegria simples dos seus. Orestes é traidor! Só a morte o pode salvar. Queremos a morte para Orestes.»(pág.97)

O diário continua nos últimos dias de Ruben A. numa Grécia paradisíaca. Não sei se lá voltou.



domingo, novembro 06, 2022

«Depois da Lei», de Luhuna Carvalho

 

Língua Morta, Junho de 2022
Lembram-se do assassínio de Carlo Giuliani pelos carabinieri, em Génova, a 20 de Junho de 2001? Eu lembro-me bem e não mais esqueci a brutalidade policial que os manifestantes contra o G7 sofreram naquela cidade em fogo.  Todo o perímetro urbano estava ocupado por centenas de milhar de manifestantes radicais (outros nem tanto) que lutavam contra a polícia com o que podiam e fabricavam. Armas igualmente letais contra a organização armada do Estado. Restou-nos a fúria e a impotência dos que viam as imagens de longe e recebiam os comunicados de informação alternativa. 

Nós necessitávamos há muito de um livro assim. Tão bom e por vezes tão desconcertante. Luhuna Carvalho descreve-nos experiências muito vívidas de quem escolheu o «outro lado». A barricada dos que não querem ser subservientes à lógica do domínio e do controlo burguês. Sabe do que fala e quem o lê, ou já tenha passado por confrontos de baixa intensidade em manifs, ou viveu o Prec de fogo com a volúpia destruidora que apontava paradoxalmente para a construção de utopias livres e humanamente autónomas, sente que Luhuna Carvalho tem tanto de genuíno, como de inteligente, apresentando-nos um pensamento e uma teoria sólidos da Europa em que vive(mos). 

O périplo insurgente deste autor que desconhecia (tem um artigo interessantíssimo no blogue Punkto e revela igualmente os seus estudos em Filosofia e um doutoramento em Londres) não ficou só em Génova; seguiu-se (não por ordem cronológica) Barcelona, Nantes, Paris, Roma, Londres, Amesterdão...até aos States de Nova Iorque e à estadia numa reserva índia no interior da América profunda.

A sua experiência em Barcelona, as barricadas, as fugas, a estratégia black bloc (Luhuna não se identifica totalmente com ela) encontra-se extremamente bem descrita, mas também a vida nas comunas em casas ocupadas, as diferenças individuais dos que as habitavam, os debates, as drogas, a solidariedade e o sexo. As suas opiniões são-nos reveladas com uma franqueza brutal e ao mesmo tempo, solidarizando-se com esta experiência de euforia colectiva, não deixa de ser crítico em alguns aspectos e que vale a pena citar só uma parte: «Essa folia criava, na verdade, inúmeras solidões povoadas, e muita gente que ali transitava numa cantada euforia acabava, meses depois, por sair com uma galopante depressão, algo que anos depois seria um novo normal, a forma de vida mais comum nas grandes cidades.»(pág.60) Quem viveu qualquer coisa de parecido, embora à escala deste país (já lá vamos), sabe que Luhuna está a ser verdadeiro. Depois de uma grande euforia colectiva, comunal, vem a depressão, o fim da festa. O mesmo acontece a quem tomou drogas. A paranóia e a desconfiança pelo outro vêm muito depois sem darmos por ela. Mas enquanto as usamos abre-se um mundo iluminado onde tudo é possível.

Voltemos aos mortos de Génova. Mais que Seattle ou outra cidade onde houve repressão a sério, a violência policial aqui foi descontrolada. Lembremo-nos que Carlo Giuliani foi assassinado enquanto permanecia no chão ferido e faleceu quando o jipe dos carabinieri fez marcha a trás para o calcar até à sua morte. A palavra de Luhuna Carvalho sobre Génova: «O Estado assumira um confronto nas ruas que tinha perdido, e cobrava cara essa derrota. A polícia, humilhada durante dias, encontrava indefesos nos responsáveis pela sua derrota e despejara sobre eles uma violência de contornos bíblicos que visava a sua aniquilação total, apanhados de pijama a comer umas sandes, reduzidos a uma sopa de sangue e cabelo.»(pág.53) O autor, tal como os menos ingénuos de nós, sabe que o Estado é isso mesmo e que a violência de um manifestante armado e organizado nunca é igual à dos polícias. O insurgente, o revoltado, luta e destrói a cidade que o condiciona corporal e mentalmente, que o faz sofrer em eterna (?) solidão; o revoltado quer paralisar o fluído repressor da cidade e de quem a controla, através da barricada da ocupação e da festa contínua. Está no seu direito, como a pequena burguesia está no direito de permanecer toda a vida em centros comerciais e hipermercados.
 
Luhuna Carvalho assistiu em Lisboa às grandes manifestações anti-troika de 2011 e 2012 com a esquerda institucional a perder momentaneamente o controlo da rua. É evidente que o autor mais que experimentado na observação da contestação radical em outras cidades europeias ficou atónito (provavelmente como eu me senti no Porto, mesmo sem ter vivenciado as lutas urbanas europeias - talvez em Madrid, nos 90, tenha observado uma escaramuça) com o ambiente que encontrou: «Em Lisboa as coisas eram diferentes. Nada desta problemática (da violência urbana) era sequer reconhecida. Ao mínimo sinal de conflito, a esquerda corria a benzer-se e a gritar que os responsáveis eram infiltrados da polícia. este mundo em ebulição parecia nem sequer existir. Falava com militantes e dirigentes dos partidos do que tinha visto e observado noutros locais e era como se lhes estivesse a falar de Marte.»(pág.71) No entanto, em frente ao parlamento aconteceu um confronto descrito assim: «Ao lado do tipo de peito nu, calções e sandálias, com a t-shirt à volta da cara e tatuagem dos No Name Boys nas costas, estava um tipo de camisa aos quadrados e sapatos de vela, os dois a atirar pedras à polícia.»(pág.73). É esta a contestação portuguesa tal como eu assisti no Porto num apedrejamento a um banco e imediatamente anulada por militantes de esquerda.

Vai ser difícil não ter na cabeça este livro durante mais uns tempos e voltar possivelmente a ele para saborear as imagens da revolta e destruição eufórica sentidas pelo «outro lado». Pelo «nosso» lado, alguns de nós que intuímos que na acção da Internacional Situacionista poderia estar a súmula da teoria libertadora dos revolucionários, ou seja, daqueles que não terão nada a perder senão o tédio e a sobre(vida): «Ninguém seria capaz de admitir, e talvez muitos não tivessem sequer consciência disso, mas aquele ensaio júnior de permanente deriva situacionista era obviamente um privilégio de classe. Ainda assim, o uso espúrio desse privilégio era simultaneamente ridículo e nobre.»(pág.82) Talvez seja a tentativa legítima de superação dessas mesmas teorias que Luhuna Carvalho nos propõe. A coisa que fica é uma enorme solidão (Cap.IV O Tempo da Solidão) e uma constatação de quem experimentou tudo isto como «demasiado comunista para os anarquistas e demasiado anarquista para os comunistas». Entendo bem estas palavras e assumo, provavelmente com outros, que a violência popular em Génova e Barcelona foi feita com a mesma massa que os ainda inoperantes mas que, em silêncio, esperam a oportunidade de agir.

sábado, novembro 05, 2022

«Arte em Fluxo», de Boris Groys

 

Orfeu Negro, 2022, Trad. Pedro Elói Duarte
Sem dúvida um dos mais interessantes pensadores contemporâneos que une a arte e a política. São 12 capítulos que julgamos, pela sua diversidade, terem sido compilados através de artigos publicados em revistas ou jornais e que Boris Groys terá juntado neste livro.
Explica, logo no prólogo, o conceito de arte em fluxo: «A arte não prevê o futuro, mas demonstra o carácter transitório do presente - e, assim, abre caminho ao novo. A arte em fluxo engendra a sua própria tradição, a reencenação de um evento de arte como antecipação e realização de um novo começo, de um futuro em que as ordens que definem o nosso presente perderão o seu poder e desaparecerão. E como, para o pensamento do fluxo, todos os tempos são iguais, esta reencenação pode ser realizada em qualquer momento.» (pág.14)

Muito importante a tentativa (penso que com êxito) de superação do conceito de «sociedade do espectáculo» de Guy Debord. Não que este não tivesse sido exemplar na definição da sociedade, mas esta já não existe de todo. Ou seja, quando Debord falava nos tempos livres do trabalho e do trabalhador como tempo alienado, como forma de aprofundamento da exploração e estupidificação das massas, hoje o «tempo livre» já não é passado no museu, no cinema, no teatro, na livraria ou se quisermos o café falando uns com os outros. Hoje, nos tempos livres, as pessoas «trabalham, viajam, fazem desporto e exercício físico.» Não lêem livros ou contemplam arte. São «activas» no sentido muito particular do que quer dizer «criar», escrever ou fazer vídeos no Facebook, no Instagram ou no Twitter. Portanto, a acção está presente nos tempos livres, embora tão alienada como nos anos sessenta, setenta ou mesmo oitenta. É nesta inexistência de contemplação que Groys aponta a destruição e queda dos museus ou do cinema. A arte fixa, imóvel, morreu para dar lugar à performance que já vinha a ser tendência há muito tempo. Daí, hoje não haver exposições sejam elas permanentes ou não, mas sim curadorias onde se apresenta arte efémera que, em certos casos, apela politicamente à inversão da vida quotidiana ou ao combate político. Nasce assim uma espécie de activismo social que ainda está nos seus primórdios. E é aqui que Boris Groys coloca um dilema: estaremos perante arte propriamente dita ou antes na emergência de várias formas de design? 

Se estamos a aceitar que a arte é, hoje, design antes de tudo, entramos na estetização da arte o que, citando Benjamin, nos levará a uma estetização igualmente da política inerente a esse activismo, que foi o que fez o fascismo nos anos 30 com Marinetti, ou Estaline com o realismo socialista. Antes, já o construtivismo russo tinha arredado o revolucionário futurismo cujo expoente máximo seria Malevich com o seu «quadrado negro». Entramos aqui na análise dos movimentos que, de alguma forma, estiveram na primeira linha da destruição da arte como o dadaísmo e o surrealismo. Aliás, voltando a Malevich, o seu manifesto a partir de «O quadrado negro» já pedia ao poder soviético que destruísse todos os museus para dar lugar a uma arte «verdadeira e viva».

O sujeito enquanto artista e a sua relação com os Outros obriga necessariamente a uma revisitação das teorias de Marx e de Stirner sobre a produção na arte e é dos capítulos mais interessantes do livro. Se o artista quando produz arte é um ser único (Stirner) ou se é a conclusão de um processo de produção social integrado (Marx).

Seja como for a afirmação de Groys de que «as sociedades modernas estão assombradas por visões de controlo e exposição totais - visões distópicas do tipo orweliano» levam-nos para um outro patamar em que a arte ou a instalação performativa é claramente um centro de denúncia ou de acção.

«A Arte na Internet» é dos capítulos mais esclarecedores de Groys e socorro-me de uma ou outra citação sua para que fiquemos com a percepção do seu pensamento: «A internet funciona como base no pressuposto do seu carácter não-ficcional, de ter um ponto de referência na realidade offline. A internet é um meio de informação sobre algo. E este algo está sempre fora da internet - ou seja, offline.» Pode-se dizer, portanto, que na net não há arte ou literatura mas sim informação sobre arte e literatura. Não sendo uma novidade total para os utilizadores da internet não deixa de ser sintomático algumas afirmações certeiras de Groys que inverte todo o pensamento de uma possível globalização através desta ferramenta: «Seguimos certos blogues, sites de informação, revistas electrónicas e outros sítios, e ignoramos tudo o resto.  Assim, o trajecto tradicional de um autor contemporâneo não é do local para o global, mas do global para o local.(...) Na verdade, a internet não é um lugar de fluxo de dados; é uma máquina que trava e inverte os fluxos de dados. O medium da internet é a electricidade, e o fornecimento de electricidade é finito. Por conseguinte, a internet não pode suportar fluxos de dados infinitos. (...) Não devemos esquecer que a internet é propriedade privada. E os lucros dos seus proprietários decorrem sobretudo da publicidade dirigida a públicos-alvo. Temos aqui um fenómeno interessante: a monetarização da hermenêutica.(...) A mais-valia que este sujeito produz e que é apropriada pelas empresas da internet é o valor hermenêutico: o sujeito não só faz ou produz alguma coisa na net, como também se revela como um ser humano com s«certos interesses, desejos e necessidades. A monetarização da hermenêutica clássica é um dos processos mais interessantes com que nois confrontamos nas últimas décadas». Eu diria mais perigosos, igualmente.

«A Princesa de Gelo», de Camilla Läckberg»

 

Problema: eu gostar de policiais sem ser um entendido na matéria. Poderia ter pesquisado um pouco mais em blogues específicos quem é quem neste particular, mas a mania de não confiar nas opiniões dos outros, ainda para mais sobre livros, levam-me a conhecer cada barrete, que mete impressão.
Mistério: como Camilla Läckberg vende milhões em todo o mundo. Apresentá-la na capa como «A nova Agatha Christie que vem do frio» não basta para desvanecer o quebra-cabeças de um best-seller. Até porque vem do frio. 
A trama: não tem nada que o frio nórdico não traga neste género. Famílias ricas com esqueletos no armário, crimes antigos que emergem para que se proceda a novos crimes. Algum sexo envergonhado entre polícias disponíveis e intelectuais e artistas como prova que a antítese é também capaz de amar e por aí fora. Não acho que seja uma boa escritora e, em alguns casos, até poderemos classificar de infantis algumas situações, já que de verosimilhança o tal frio da Escandinávia até nos tem dado alguns presentes. Mas não neste livro, seguramente. 
Continuarei à procura de policiais, como é evidente.