sexta-feira, julho 26, 2019

Kenneth White e a Geopoética: a descoberta do Mundo Branco.

Kenneth White, autor de O Espírito Nómada, editado pela Deriva Editores em 2008
Foto Revista Caliban
Publicámos «O Espírito Nómada» de Kenneth White em 2008, na Deriva Editores, e com tradução de Luís Nogueira, pelo que este artigo é também uma lembrança feliz deste último, já desaparecido. O primeiro editou-o a Relógio d´Água em 1987, com tradução de Maria Regina Louro. Desde logo nos pareceu um autor peculiar e inovador na abordagem à poesia, dando-lhe novas formas e modificando-lhe o conceito habitual entre nós «os contemporâneos». Não deixa de ser paradoxal que em Portugal só se tenha publicado dois livros dele, quando se conhece a enorme bibliografia de Kenneth White, entre poesia, ensaios e prosa e acompanhado igualmente por um reconhecimento internacional, sendo professor de Poética em várias universidades. Sendo escocês das Terras Altas e crescendo nas suas costas foi, contudo, no rude noroeste da Bretanha onde se fixou permanentemente. Fundou, em 1989, o «International Institute of Geopoetics» http://institut-geopoetique.org/en/ (o seu site está em várias línguas entre as quais o português). Neste momento está ao dispor dos interessados um trabalho muito profundo e sério deste autor, também entrevistado, na revista «Flauta de Luz», nº6, (flautadeluz1@gmail.com) e sob a responsabilidade de Jorge Leandro Rosa e Júlio Henriques. Esteve entre nós, sem grande publicidade, num colóquio organizado pela FLUL entre 21 e 22 de Maio de 2019.

Kenneth White procura então o mundo branco que estando à nossa frente, não o procuramos mais virados que estamos para a tecnologia e para o consumo desenfreado aceitando «bovinamente» um falso bem-estar e as propostas ditas literárias e poéticas das grandes empresas editoriais. Tentaremos chegar a esse mundo através das poucas linhas deste artigo e sobretudo pelas palavras do próprio. Diz K.W.: «Desde há anos, se me acontece passar pelas cidades, frequento sobretudo as costas…Ao mesmo tempo limite e abertura, área de resistência e de dissipação, linha definidora e convite ao vazio, a costa é sem dúvida o lugar por excelência de uma poética de energia, de uma cosmografia em acção, de uma meditação movente» (Les Rives du Silence, p.7).Promove assim um método: o do nomadismo intelectual, tanto no espaço como no tempo e acrescenta que não há nele qualquer diletantismo, antes uma prática na qual «viagem e visão seguem juntas». Avisa, todavia: «não se trata de uma simples aventura, nem de uma simples expedição científica. O seu plano de trabalho comporta diversos estratos, está aberto a configurações inéditas. No seu cume, encontramos uma concepção de harmonia, uma estética (…)» Ou seja, promove uma ligação íntima entre a arte poética e a arte de viver, que, desde o fim dos tempos e a partir de meados do século XX passou a ser uma emergência.

Numa Carta a Portugal a propósito da Geopoética que faz parte da Flauta de Luz, nº6 (mereceríamos nós que ele se mexesse para nos enviar uma carta?) remete-nos para o «nosso» Espírito Nómada, em cuja terceira parte do livro, Poética do Mundo, trata dos Elementos da Geopoética. A sua leitura tornar-se-á mais clara. Quem quiser adquirir o livro nas livrarias já vem tarde. Agora só nos alfarrabistas ou pedindo à distribuidora da Deriva. Talvez haja por lá alguns. Os autores que mais lhe chamaram a atenção não deixa de ser singular: Fernando Pessoa no seu Ultimatum, o seu poema mais nietzscheniano e Miguel Torga. A este último dedica-lhe estas palavras: «a região natal de Torga foi o Nordeste, em Trás-os-Montes. Mas os trabalhos que dedicou a este território vão muito mais além de qualquer nostalgia localista». Para ele Torga é um proto-geopoetista.

Na excelente entrevista que Kenneth White dá a Jorge Leandro Rosa e Júlio Henriques paremos neste trecho: «O ‘’nómada intelectual’’ que eu sou, e que desenvolveu, com comprovados exemplos, a teoria prática do nomadismo intelectual no livro O Espírito Nómada, atravessa territórios e culturas em busca de elementos susceptíveis de ser incluídos numa possível cultura mundial. Situado no extremo limite crítico da sua ‘’própria’’ civilização, este nómada abre um caminho explorando margens de pensamento e de experiências esquecidas. Lucidamente. Sem se converter seja ao que for. Sem esperança. E por viver sem esperanças, nunca posso sentir-me desesperado». Kenneth White lançou aqui uma abertura para o que considera ser o «mundo branco». Ele define-se atrás como anarco-arcaico e será necessário lembrar este aspecto para que ele surja logicamente como um inimigo confesso do trans-humanismo que «acompanhado de robotização e de inteligência artificial, (…) é preciso resistência. Mais do que resistência, o desenvolvimento de um pensamento outro.» Mais do que voltar a um humanismo coagulado, construir um humanismo que rejeite o robô. Mais à frente, para que não permaneçam dúvidas sobre o humanismo que o autor pretende, ele explica melhor: «Enquanto isso [a adesão acéfala ao cientismo, à mitologia, ao misticismo, à religiosidade ou à espiritualidade, ou pior ainda, à má literatura], os inquisidores vigiam, os guardiães da fé antropocêntrica afiam as armas, os defensores de um humanismo míope, incapazes de conceber uma evolução fora dos sistemas conhecidos e que têm acumulados danos, estão prontos a asfixiar o planeta e a humanidade inteira em nome dos princípios que se pretendam humanistas, humanitários

Rui Bebiano, numa recensão ao livro na Ler, nº73, em 2008 o seguinte sobre Kenneth White e O Espírito Nómada:
«White prefere associar a erudição à forma de errância que alarga a leitura do mundo e, através de «universos de substituição», liberta o humano do «universo concentracionários das civilizações». Neste livro, escrito há duas décadas, enunciam-se alguns dos caminhos que essa escolha poderá abrir. Atravessando múltiplos saberes, o autor procura conduzir o leitor até esse território radical, que chama de geopoética dentro do qual pretende unir a presença no mundo a uma estética que seja poderosa, comevedora e bela. Se o prestígio do «nomadismo intelectual» se afirmou pelo menos desde os românticos, Kenneth White é dos primeiros a conferir-lhe uma base teórica. (...)»

Da Deriva Editores, escrevemos na contracapa de O Espírito nómada este trecho de Kenneth White:
«Desde há alguns anos para cá, a palavra “nómada” anda no ar. De um modo vago e que necessita apenas de tornar-se preciso, designa o movimento que se esboça no sentido de um novo espaço intelectual e cultural. Mas nas nossas culturas mediatizadas, cada palavra, de imediato sub-traduzida torna-se pretexto para uma moda. Do que aqui se trata não é de um assunto de moda mas de mundo.»
«O nómada que existe em cada um de nós como uma nostalgia, como uma potencialidade, não tem a noção de identidade pessoal, a «consciência de si» é-lhe estranha. Sem dizer «penso» ou «sou», põe-se em movimento e a caminho faz melhor do que «pensar», no sentido denso da palavra, enuncia, articula um espaço-tempo de múltiplas focalizações que é como que um esboço do mundo.
O movimento nómada não segue uma lógica rectilínea, com um princípio, um meio e um fim. Tudo aqui é meio. O nómada não segue para qualquer lugar, e para mais em linha recta, mas evolui num espaço e regressa muitas vezes às mesmas pistas, iluminando-as e talvez, se for um nómada intelectual, com novas luzes.
Neste livro onde se encontrarão portanto mais peregrinações que problematizações, mais mapas que retratos, o prazer de peregrinar acaba por levar a melhor sobre o desejo de saber (aumentar e renovar o campo do saber) e no final da viagem será menos importante a questão de saber do a de ver no vazio.»

Para ver mais sobre a Deriva Editores e o autor

http://derivadaspalavras.blogspot.com/search/label/Kenneth%20White ou no marcador Kenneth White em baixo

De qualquer modo o pensamento de Kenneth White e a sua geopoética não se afasta muito da deriva que sempre propusemos nos 15 anos em que editámos. Foi dos melhores livros publicados, daqueles que nos orgulharemos sempre.

António Luís Catarino
Coimbra, 26 de Julho de 2019 (onze anos depois)

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Capa da edição de O Espírito Nómada de Kenneth White pela Deriva Editores
Autor da capa: Gémeo Luís

quarta-feira, julho 17, 2019

Série, a morte fica-vos tão bem: 1. Yukio Mishima

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25 de Novembro de 1970: Yukio Mishima apela à insurreição militar
antes de pôr termo à vida através de seppuku

Li Mishima muito novo. Se eu vos dissesse demasiado novo seria o argumento que Mishima utilizou para explicar o monte de livros que leu na infância e que o levou à melancolia que por vezes assolava a sua vida. Para mim e para os que me rodeavam, nos anos 70, o autor aparecia-nos como uma espécie de herói maldito, incompreendido, solitário e encontrava-se no panteão dos melhores escritores. Defendíamo-lo do facto de ser de extrema-direita porque esse rótulo era demasiado redutor para um tipo da sua estirpe. Bastava ser um excelente escritor que reflectia igualmente as nossas preocupações, frustrações e caminhava connosco na recusa total ao capitalismo que tudo subtrai à autenticidade e soma em voragem de espíritos livres. Bastava-nos isso e o seu visível niilismo. 

A sua morte deu-se a 25 de novembro de 1970 tentando um golpe de estado que fracassou num Japão já rendido ao esquecimento dos valores tradicionais samurais e da mística imperial. Agora pontificava o imperialismo americano. Asseguro-vos que tanto eu como os meus amigos pouco falámos então desse seppuku, ação que nos pareceu óbvia em Mishima, mas que contudo não a compreendíamos por completo. Li, na ocasião, O Marinheiro que perdeu as graças do mar e O Tumulto das ondas. Foi com alguma sensação de desconforto que vi as imagens de uma sessão de Yukio  Mishima na Universidade de Tóquio efervescente, em 1968, onde vários estudantes de capacete militar e em atitude agressiva o insultavam e não deixavam ouvi-lo. Recusou então protecção policial e clamava pelo que então, pensava, os unia: a sociedade moderna, o capitalismo, o consumo desenfreado e a tecnologia. Não suportava um exército japonês sem armas e o fim do culto ao imperador, factos que não podiam ser aceites pela esquerda. Nunca o poderiam ser.

Dois anos depois, faz outro discurso agora na parada de um quartel: sequestrou o ministro da defesa e ele mais seis seguidores com as tiras de kamikase na cabeça e fardados proclamam um novo Japão e apelam aos soldados que se revoltem e assumam o poder. Ridicularizaram-no e riram-se dele na parada do quartel enquanto as forças especiais entravam de rompante nas salas procurando o grupo de Mishima. Antes, porém, libertando quatro jovens seguidores pede ao seu braço direito que o ajude a fazer o seppuku. Ajoelhando-se com as pernas em cruz, usa um pequeno punhal para esventrar-se, enquanto o seu companheiro lhe corta a cabeça com um sabre. Depois, este último, mata-se.

Quando, nestes dias passei por uma livraria, vi um livro de Yukio Mishima que não sabia que existia. Vida à venda editado pela Livros do Brasil e com tradução de Hélder Moura Pereira. Levou 51 anos a chegar a Portugal. É evidente que não o li da mesma maneira que o lia quando tinha 16 ou 17 anos, mas a minha emoção foi a mesma. E relaciono-me, por vezes mal, comigo e com o mundo, porque sei no que ele se tornou e no pesadelo que poderá vir a tornar-se. O seu acto foi, até certo ponto, um mau presságio. Mishima era um soldado aristocrata adepto das artes marciais e obcecado pelo corpo. Escrevia dando asas à melancolia já citada e à raiva e mesmo ódio que sentia pelas baratas, ou picles avinagrados, que equiparava às pessoas com quem se cruzava na rua. Tentava extirpar a sua consciência provavelmente para se sentir num eterno vazio que só conquistou com a sua morte. Também via baratas a saírem das letras de jornal, metáfora para a manipulação das ideias e dos espíritos, através da conspiração universal que destruiria a heterogeneidade dos povos e particularmente a cultura japonesa.

Partilho convosco algumas dos trechos que sublinhei tentando entendê-lo melhor dois anos antes da sua morte, visto que este livro foi escrito em 1968:

«(…) – Sim – respondeu calmamente Hanio. – Porquê a surpresa? Já toda a gente percebeu que a vida humana não tem qualquer sentido e que as pessoas não passam de meras marionetas. Portanto, porquê tanta admiração?»

«(…) Agora, deve ser capaz de alcançar com os dedos o objeto duro e negro que está em cima da mesa. Segure-o bem. Isso mesmo. Mas não toque ainda no gatilho. Leve-o agora devagar até junto da cabeça. Tenha calma e relaxe os ombros. Sente-se melhor assim, de certeza. Pressione o cano contra a têmpora. Deve estar um pouco frio, mas agradável, não é? Transmite uma certa sensação de frescura, não acha? E também de alívio, como quando se tem febre e se aplica uma pacho de água fria na testa. Agora, com cuidado, ponha o indicador no gatilho…»

«(…) Pensando bem, é a primeira vez que olho de perto para um corpo sem vida. Nem os corpos da minha mãe e do meu pai cheguei a ver assim. Um corpo morto faz-me lembrar uma garrafa de uísque. Quando se pega nela e cai, o conteúdo derrama-se. Nada mais natural.»

«(…) Pensou em si como já tivesse morrido. A moral, as emoções, tudo o resto – nada fazia sentido. Estava completamente livre. E, no entanto, o amor que acabada de morrer sentira por ele continuava a pesar-lhe na consciência. Não chegara à conclusão de que outras pessoas não representavam para ele mais do que baratas?»

«(…) Há já muito tempo que Hanio não ia à cidade. Não se via qualquer indício de morte. As pessoas estavam metidas até ao pescoço na sua vida quotidiana. Pareciam caminhar como se fossem picles humanos.»

E é com estas expressões e outras bem mais violentas que um tipo como Mishima na voracidade de se eximir a qualquer emoção para sentir-se livre, cai. 

António Luís Catarino
17 de Julho de 2019

sexta-feira, julho 12, 2019

Populismo à esquerda, precisa-se. Ou talvez não

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Não se admirem com o título. Chantal Mouffe defende mesmo isso no seu livro Por um populismo de esquerda (Gradiva, 2019). José Neves, que leio sempre com agrado, prefaciou-o não sem, contudo, nos avisar que num momento de aumento do populismo de extrema-direita e de direita nacionalista esta hipótese não deve ser descartada pela esquerda. Neste campo, tal como a autora, coloca o Die Linke, o Podemos, o Syrisa, o Bloco de Esquerda, La France Insoumise de Mélenchon e Jeremy Corbin do Labour (lá mais para a frente, Chantal Mouffe cita igualmente Bernie Sanders) como um exemplo de uma identidade populista de esquerda. Sintomático é referir que a autora, só de raspão, analisa os regimes populistas da América do Sul que poderão, com algum esforço, ser considerados de «esquerda».

Não sei se é forçado colocar alguns destes partidos referidos atrás na área «populista de esquerda». Comecemos por analisar o conceito de «populismo». Um partido populista é definido pela sua demagogia, pelo carisma de um chefe ou líder, e promove um conjunto de propostas demasiado fáceis de entender pelo «povo». No fundo propõe o que se quer ouvir pelos descontentes. Utiliza igualmente uma linguagem simples, rasteira, contra as «elites» e utiliza a propaganda e os media com as suas «verdades irrefutáveis», mesmo que estas não se possam provar.

Chantal Mouffe (C.M.) diz-se gramsciana. Vai a Antonio Gramsci encontrar os argumentos para propôr a construção de um populismo de esquerda contraposto ao populismo de direita e de extrema-direita. Refuta o que ela chama de «essencialismo» na área da esquerda, reconhecendo nesse tal essencialismo um obstáculo sério à refundação da esquerda visto que esta se encontra amarrada a conceitos rígidos de «classe» e de uma suposta luta entre «capital e trabalho». Inclui-se no pós-marxismo. A Gramsci vai «captar a multiplicidade de formas de combate a diferentes tipos de dominação». C.M. redefine este projecto como de «radicalização da democracia» perante a existência de uma «cadeia de equivalências» numa sociedade plural que articulasse as exigências da classe trabalhadora com os novos (já não são assim tão novos, digo eu) movimentos sociais emergentes de modo a realizar um «querer comum» processo que desembocaria numa «hegemonia expansiva», sendo que esta última expressão é de Antonio Gramsci, de novo. O povo passaria então a ser um sujeito político.

Nada a opor, se não a sua inexequibilidade. Um dos companheiros de C.M. foi Ernesto Laclau que define populismo como a construção de uma barreira entre dois campos: os «miseráveis» e «os que estão no poder». Recusa a ideologia. Aponta para a construção de um regime político que pode assumir variadas formas e com vários enquadramentos sociais. Não pormenoriza ou exemplifica, nem C.M. se dá ao trabalho de o fazer.

Depois de elaborar um historial da vitória do neoliberalismo agressivo de Tatcher dos anos 80, tenta conjugar vários filófosos citando Habermas, Crouch, Rancière e Carl Schmitt (sem dizer donde este vem e que filósofo e jurista foi e ao serviço de quem!) que opõe democracia ao liberalismo e a possibilidade de uma oposição entre igualdade e liberdade. Aqui vem o populismo proposto: a diferença entre «nós» e «eles» que deve ser o alfa e ómega de toda a actividade do populismo de esquerda. Creio que Mouffe tem razão ao apresentar a raíz da radicalização da esquerda nos anos 90 e princípio do século XXI naquilo a que chama de «movimento das praças» onde coloca o Occuppy, os Indignados de Espanha e as múltiplas manifestações de protesto que assolaram toda a Europa. Agora o que vem depois, as perspectivas que coloca aos movimentos sociais e aos partidos da esquerda é o mais problemático. Mas, por defeito, não descartemos a hipótese que ela propõe: diálogo com os movimentos populistas de direita de modo a influenciar os apoiantes que embora incomodados com a presença da extrema-direita, estarão lá só pelos protestos quase sempre legítimos. Apresenta números com Corbyn a chamar gente do UKIP para o Labour e Meléchon a retirar perto de 16% de votos directamente à FN de Le Pen.

Penso que aqui tocou na ferida dos «essencialistas» pelo que explica adiante as «diferenças» destes populismos, os de direita e os de esquerda. Os primeiros, têm o sentido de nacionalismo, da identidade, da força e são claramente neoliberais, talvez mais agressivos que os ditos liberais, eles mesmos. Não acreditam na igualdade e são ferozmente individualistas. O populismo de esquerda traduz-se num aprofundamento e alargamento da democracia radical, que recusa ser directa, por sorteio (David van Reybrouk defende o sorteio contra as eleições num livro que me veio parar às mãos e citado pela autora) ou somente representativa, embora reconheça um papel importante a esta última. O que ela chama de um programa «agónico» (ou marcial e heróico?) não será mais do que a construção de um «povo» que entende o seu inimigo como a «oligarquia». Não rejeita traços afectivos (?) de nacionalismo, nem uma liderança, bem diferente de um chefe ou de um líder incontestado. Para isso não poderemos contar só com a classe trabalhadora. Temos de contar com uma «cadeia de equivalências» sempre em contacto plural com o movimento LGBTI, feministas, imigrantes, classe média em situação precária, movimentos ambientalistas e ecologistas, etc. O objectivo é criar uma situação que leve a uma «nova hegemonia que permita a radicalização da democracia».

Insurreição e revolução são alternativas fora do baralho de Chantal Mouffe. Afirma não precisar, a esquerda, de um corte revolucionário, mas sim de uma espécie de dètournement do regime liberal-democrático! Portanto, os dados estão lançados: trata-se de aprofundar uma «democracia radical e plural», influenciando e transformando as instituições democráticas existentes.

C.M. defende que, para atingir a formação hegemónica do populismo de esquerda, dever-se-á colocar em causa o campo económico «essencialista». Junta a esse campo a natureza cultural, política e jurídica, numa articulação de «senso comum» no quadro normativo de uma dada sociedade. Nem mais! ... Venha daí o «senso comum» para ajudar à festa! E eu que pensava num esqueleto jurídico forte que evitasse esse senso comum, expressão tão liberal que é. Ora, recusando a extrema-esquerda (ainda há pouco uma polémica no Bloco de Esquerda levantou-se quando Catarina Martins, numa entrevista, recusou esta matriz para o Bloco, substituindo-o por «radical») Chantal Mouffe apresenta-nos três tipos de política à esquerda:

«Reformismo puro» que aceita os princípios da formação social neoliberal.

«Reformismo Radical» que aceitando os princípios da ordem liberal, procura pôr em prática uma formação diferente.

«Política revolucionária» que exige uma ruptura total com a ordem social e política existente. São os nefastos marxistas-leninistas-trotskistas, bem como os anarquistas.

Como já devem ter reparado a autora pertence à segunda opção enquanto que os outros são os essencialistas (mesmo os que defendem hoje os princípios fundadores da social-democracia) que recusam ver o Estado como um campo neutro como os reformistas radicais o querem construir. Ou seja, o objectivo não é tomar o poder do Estado como diz Marx, mas «tornar-se Estado» como ela diz que disse Gramsci (em que conjuntura, pergunto eu?).

Reivindica, a autora, uma dimensão de luta anticapitalista, mas não dá essa hegemonia à classe trabalhadora. Hoje, segundo C.M. (e eu concordo) há cada vez mais um discurso anticapitalista em vastos sectores da população, mas não necessariamente de esquerda. Se assim é, só o reformismo radical está em condições de o captar. O que eu não consigo concordar é a aparente desvalorização do trabalho que parece emergir aqui.

Finalizando: depois de Marx, Bakunine, levarem das boas neste livro, nem Hardt e Negri estão a salvo. Defendendo a democracia representativa, Chantal Mouffe, ataca estes últimos autores por causa da sua estratégia de renúncia, deserção e êxodo para que se crie uma alternativa anticapitalista com a inevitabilidade de tomar o poder com uma imensa multidão (os 99%?) e apta a conquistar os meios de produção. É lógico, que tanto Hardt como Negri defendem a estratégia do «comum» que não existe em nenhuma Constituição iluminista. A propriedade ou é privada, pública, cooperativa, mas «comum» está quieto!... Mouffe chega ao ponto de não rejeitar os partidos políticos e os parlamentos actuais que ainda desempenham, com todas as maleitas, um papel simbólico. Pergunta-se, humildemente, de quê? Conclui, Chantal Mouffe, afirmando entre outras coisas, a inadequação da palavra «comum» e a crítica à crítica da democracia parlamentar, ainda fogosa, não fossem os reformistas radicais propor torná-la ainda mais representativa.

António Luís Catarino
12 de julho de 2019

segunda-feira, julho 08, 2019

21 lições para prevenir a catástrofe, contemplando-a


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Yuval Noah Harari

Gostei de ler Yuval Noah Harari e a sua trilogia de «Sapiens», «Homo Deus» e «21 Lições para o Séc. XXI».  O primeiro é o mais conseguido no âmbito da História e da Antropologia, embora a sua posição sobre a obra do Sapiens não seja nova. Lembro-me da Deriva Editores ter publicado o livro de John Zerzan, autor que esteve na organização das grandes jornadas de luta anticapitalista de Seattle, intitulado «Futuro Primitivo» que defendia uma tese ligeiramente diferente da de Harari. Para o primeiro, o Sapiens esteve dezenas de milhar de anos sem querer adoptar a agricultura e a domesticação confinando-se ao orgulho da caça e recolecção. Já para Harari as coisas não se passaram bem assim, tendo o homem tido todo o empenho em demonstrar as novidades técnicas e produtivas na agricultura e na domesticação de animais, destruindo a Natureza a partir desse momento. A base da desigualdade, concordam os dois, foi na apropriação dos meios de produção de uma elite política e religiosa assente no esclavagismo e na desigualdade de distribuição da produção com a respectiva acumulação de riqueza...até hoje. Bom, Engels já tinha aflorado e aprofundado o caso com os dados que tinha no séc. XIX, mas adiante.
Ora, com as duas últimas distopias de Harari, porque da construção de futuros sombrios se trata, saímos incomodados para não dizer pior - aterrorizados. O nosso autor é talvez a coqueluche do Facebook, Amazon, Google e de todas as companhias que laboram em Sillicon Valley, mas não deixa de nos avisar dos perigos da tecnologia que aí vem, pondo em causa a continuação da nossa espécie, tal como a vimos hoje. Vale a pena lê-lo por isso mesmo.

Quanto ao desafio tecnológico será muito difícil não concordar com ele na construção do futuro que aí vem: o nosso corpo não vai mais pertencer-nos. A biotecnologia, a nanobiologia e os algoritmos vão dizer o que é bom para nós. Aceitaremos, de bom grado, que nanopartículas naveguem alegres pela nossa corrente sanguínea e libertem através do controlo do nosso smartphone, um pouco de paracetamol para nos sentirmos menos febris, ou qualquer droga legal que compraremos na Google Store para nos sentirmos eufóricos. Se fumarmos um cigarro, o telemóvel avisa-nos que as nanopartículas detectaram, no pulmão esquerdo, 17 substâncias cancerígenas pelo que irão atacá-las de imediato. Se comermos uma chanfana, avisa-nos do alto colestrol no corpo, libertando a sinvastatina necessária. Ou seja, ficaremos num estado de doença permanente. Estaremos assim, com a biotecnologia pronta a funcionar com mais chip, menos chip no nosso corpo como quem faz um jogo electrónico conforme o dinheiro que dermos por eles. Tenhamos nós emprego ou trabalho, porque a robótica vai-nos tirar muitos, muitos empregos.

Vamos portanto ser imortais se assim tivermos milhões de dólares para o ser. Atenção: Harari não fala em imortalidade, antes em amortalidade, o que é diferente. Poderemos gastar milhões em biotecnologia e mudar partes do nosso corpo, mas se um veículo autogovernado de baixo custo (um Fiat Punto, modelo de 2052, por exemplo) não nos vir na passadeira, splash! lá vai a imortalidade e os milhões para o caneco.

Desta vez, isto não é como nas revoluções tecnológicas anteriores, não pensem nisso. Mais de metade da Humanidade ou ciborgs parciais que é o que seremos e que partilharemos o mundo com ciborgs totais, não terão nada para fazer e para não dar origem a revoluções, o melhor é, segundo Harari, dar aos excluídos e precários um Rendimento Mínimo Garantido. Onde vamos buscar o dinheiro? Simples: impostos substanciais sobre as indústrias informáticas, de robótica e farmacêuticas. Eles darão com todo o gosto, certezinha! Os robôs pagarão então as nossas necessidades básicas, seja lá o que isso for. As desigualdades serão enormes, com 1% da população mais rica a dominar mais de metade do PIB mundial e a viver em bolhas climáticas purificadas nas cidades muralhadas, enquanto que nós aguentaremos com o sol tórrido e o charco de águas do mar que invadirão as cidades costeiras. Claro que o algoritmo não pode prever as mudanças climáticas (nem isso o deve incomodar sobremaneira) pelo que as migrações serão bíblicas. Para onde, não se sabe ainda bem.

Por falar em Bíblia, encontramos, segundo a minha opinião, a grande contradição de Yuval Noah Harari. Segundo ele, os futuros algoritmos que estarão em permanência ligados ao nosso cérebro, vão dar-nos o que desejamos, como já se disse acima, e, dar-nos-ão, para além do electrodoméstico ideal, o melhor político populista, sustentado nas fake news, segundo o nosso perfil e escolhas nas redes sociais e teremos acesso ao nosso padre, pastor, mesmo um emir ou um lama. As religiões decairão como nunca e o Iluminismo e a democracia serão obsoletos. Dei comigo a pensar exactamente o contrário, mesmo que o Iluminismo esteja moribundo. Harari não fala em Resistentes, em Replicants como em Blade Runner ou como no Manifesto Comunista, embora defenda que o futuro tenha mais a ver com Marx do que com Spielberg.

Haverá sempre resistência e construção política contra a nova «humanidade baseada na robótica e na biotecnologia» que não é muito aprofundada em Harari. Ou seja, o desaparecimento da conjunção inteligência/consciência, sendo que a primeira ganhará no futuro separando-se irremediavelmente da segunda. Não será assim, porque o Homem não abandonará a consciência e essa vem do socius, da vida em comum, da necessária reaproximação à religião e ao político. Por mim, que me religuei ao catolicismo de que estava afastado há muito, não penso deixar a Humanidade entregue a si própria e penso lutar contra o tecnofascismo através da resistência/inteligência/consciência

Se essa consciência se perder, não teremos nunca dor, não amaremos (não acredito no algoritmo para este particular), não nos indignaremos, não nos emocionaremos, não ajudaremos o outro, não resistiremos, nem construiremos o político, nem a utopia. Quereriam viver num mundo assim?

Por fim, a lição 20 e 21 de Harari, sofre de um enigma que ele próprio levantou: sendo budista, não interferir será a solução lógica para ele. A pura contemplação e o pacifismo pode ser a travagem deste autêntico ataque à Humanidade sendo que deveremos estar atentos à acumulação de poder e riqueza dessas supercompanhias com que o mundo nunca sonhou. Creio resolutamente que estar atento não basta.

António Luís Catarino
8 de Julho de 2019