terça-feira, junho 27, 2023

«Alemanha Ensanguentada», Aquilino Ribeiro

 

Bertrand, 2015. Prefácio de Pedro Mexia
A maior parte deste livro foi escrita em 1920, tendo-se seguido algumas impressões sobre os campos de batalha da I Guerra Mundial em 1928, em viagens que Aquilino Ribeiro fez à Alemanha nessas mesmas datas. As descrições que faz da Alemanha completamente exausta económica e moralmente devido ao diktat do Tratado de Versalhes de 1918/19 não faz dele, longe disso, um «germanófilo» no sentido militar que lhe foi na ocasião apontado; era, contudo, um claro apaixonado pela cultura alemã, sabendo falar bem a língua, visto que era casado com Grete Tiedemann que vem a falecer precocemente em 1927. Para além disso aponta-se uma tendência clara pelo anarquismo em Aquilino e alguns factos relacionados com as suas actividades políticas e consequentes prisões em Portugal, ainda durante a monarquia e a sua participação na revolta de 1927 contra a Ditadura Militar, não deixam dúvidas. 

Perante o verdadeiro entusiasmo que é ler Aquilino e desfrutar o seu português límpido e depurado, com a palavra certeira, em todos estes apontamentos diarísticos, de viagem, teremos de nos fixar somente em dois aspectos: a clareza das suas posições políticas sobre a violência de Versalhes sobre a Alemanha, a tentativa Espartaquista da Revolução de 18 de que ele viu ainda barricadas não levantadas e paredes esburacadas por balas e petardos e as conversas mantidas com oficiais soviéticos ainda na Alemanha depois da derrota às portas de Varsóvia. Reparemos que as impressões de Aquilino foram escritas somente 3 anos após o Armistício. 

Logo na página 18, Aquilino dá-nos uma visão muito particular dos ingleses que ocupam a Alemanha com este trecho delicioso: «Ponho-me a examinar-lhes as caras, cujo taciturno ou seriedade, se quiserem, não é mais que contenção ou fisionomia do animal lançado numa determinada pista. Os britânicos têm sempre no sentido um alvo a tocar. Vão a reflectir, ou devaneando como eu? Qual! Vão embalados no seu inconsciente, ruminando porventura o corned beef, e parece que se não dignam reparar que vai gente ao pé deles. A vigília e inquietação são apanágio do espírito; o motor inglês é instinto e aí está a sua força. Sobem sem olhar para nós; passam diante de nós sem vénia; o comboio como o mundo é ring para eles; eis a gente de alto lá com ela a quem os pregadores alemães, durante a guerra, chamavam em suas imprecações ao Altíssimo «malandragem escrofulosa dos nevoeiros». Mas esta definição dos gentlemen ingleses, Pedro Mexia no seu prefácio não teve em conta!

Não deixa de ser observável a simpatia que Aquilino nutre pelos revolucionários alemães de 1918, nomeadamente a Karl Liebknecht e a Rosa Luxemburgo, a quem destinou um fim trágico por não terem compreendido que a hora da revolução não se teria dado então. Mas tem a noção clara do que terá representado para a Europa a criação dos sovietes de Berlim e Munique por menos de três meses. Por pouco a Europa Ocidental não teria sido socialista. A sua evidente simpatia, não obstante mais à frente criticar a revolução russa em guerra civil, é inversamente proporcional à antipatia que sente pelo social-democrata Ebert verdugo dos revolucionários que utilizou a tropa imperial, ou o que restava dela, para sufocar com sangue a insurreição. Nota Aquilino que a paga desses mesmos militares monárquicos foi o desprezo! A 10 de Outubro de 1920 Aquilino regista no seu diário o seguinte trecho que considero dos mais importantes do livro no que à Revolução de 1918 diz respeito: «(...) semelhante atonia [dos parlamentares social-democratas] acabou por dar fôlego à reacção, chamando à vida os exânimes burgueses e aristocratas, e dando origem a uma oposição ferina, com apartar-se do flanco esquerdo da social-democracia e socialismo independente, chefiado por Lebedour, e do modo mais formal o espartaquismo de queram cabecilhas Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Foram estes as cabeças da hidra. O seu cavalo de batalha estava em forçar o Governo a prosseguir a via revolucionária, ceifando por um lado nos privilégios das classes possidentes, por outro trazendo, além da liberdade, bem-estar económico ao proletariado. A sua táctica consistia em quanto mais lhe dessem mais reclamar. (...) Nessa altura, reuniam os plenipotenciários em Versalhes e os exércitos da Enterite atacavam a Rússia Soviética por Odessa e o Mar Báltico. A Ditadura de Moscovo tirava o sono aos vencedores da guerra. Além do fermento revolucionário que ameaçava, levedando, contagiar a Europa doente e insatisfeita, havia o perigo de uma aliança germano-soviética, mercê da qual podiam sorvar os laboriosos frutos da vitória.» (pág.64,65). É muito interessante a visão muito própria de Aquilino Ribeiro acerca das causas do fim da revolução soviética alemã, para além daquela que se referiu acima. Afirma, com evidente conhecimento de causa, que a situação de penúria a que estava votada a Alemanha e a falta de armas e de alimentação geral foi a causa próxima da atonia que o escritor apontou atrás. Cremos que haverá outras mais consistentes no plano da estratégia revolucionária, mas damos estas como importantes igualmente.

Aquilino, neste livro a todos os títulos notável, considerado talvez um diário longe de outras obras de grande fôlego que nos doou, tem a noção exacta do que pode acontecer à Alemanha, se vier, como veio a verificar-se em 1933, um aventureiro que cavalgasse a miséria material e psíquica, atónica, a que estava votado o povo alemão; esse aventureiro chamou-se Hitler que ele refere nominalmente numa carta a Francisco Pulido Valente, em Maio de 1935 e aposta ao livro. Aí lê-se, a páginas 97 e 98, o seguinte: «Desiludido está, de modo geral, o povo germânico, desiludido de Deus, dos estadistas, da justiça, da força, desiludido desde as unhas dos pés até aos cabelos da cabeça deste governo social-democrata com Ebert na presidência, mantenedor do mais ortodoxo burguesismo para os operários, serventuário nojento dos aliados para os nacionalistas. Reconhece que o povo germânico tem necessidade de ocupar a imaginação com alguém ou alguma coisa que pelo tamanho e prestígio personifique o extraordinário. Mas onde está essa figura de proa? O Kaiser é o bronze partido à martelada de que fala Nietzsche. Hindenburgo não passa de um gigante com pescoço de toiro, bastante rebarbativo e intratável, de ignorância enciclopédica para tudo o que não seja a arte da guerra. Lundendorff, inteligência mais dúctil e penetrante; verga sob a responsabilidade da derrota. Mackensen, o invencível, não soube criar idólatras. Se aparecer um aventureiro, resoluto e de maus fígados, que se confine numa vaga e apocalíptica ideologia, que bata o pé ao vencedor, misto de Anticristo e de Lohengrin, tem povo. Vencida mas não derrotada, a Alemanha quando puder voltará a desembainhar a espada, no que, de resto, não faz mais do que obedecer à estúpida condição humana.(...)». 

Aquilino escreve isto em 1920. Previu com antecipação notável, que só os grandes observadores são capazes, a ascensão do nazismo e a guerra que Versalhes e os vencedores foram capazes de criar em 1918. Que este livro nos sirva, para além de contemplarmos uma das maiores escritas da nossa língua, de aviso sério sobre as consequências de humilharmos povos e estados e de ver um qualquer «aventureiro, resoluto e de maus fígados, que se confine numa vaga e apocalíptica ideologia» a sair do buraco onde hibernou durante décadas. Em 1920 ainda estávamos longe do apocalipse nuclear.

sexta-feira, junho 23, 2023

«Outono Alemão», Stig Dagerman

 

Antígona, 3ª ed. 2020. Tradução, introdução e apresentação de Júlio Henriques. Capa de Gonçalo Duarte

Stig Dagerman escreve este livro em 1947 com apenas 24 anos. Sueco, tem uma vida tramada
desde miúdo sendo educado por avós, já que nunca conheceu a mãe e o pai. Anarquista, extremamente humano, suicida-se contudo aos 31 anos, em 1954. Deixa vivas impressões nos seus livros acerca da existência da humanidade numa época de guerra e principalmente no pós-1945 quando se jurava a pés juntos que as guerras teriam acabado de vez. Algo me diz que Dagerman estava longe de acreditar nisto.

Não foi fácil certamente, para Stig Dagerman, escrever o que escreveu acerca de uma Alemanha derrotada, ocupada e violentada nos últimos dias do nazismo e após o suicídio de Hitler, Nuremberga e a desnazificação levada a cabo pelos vencedores. Isto em 1947, quando estava ao rubro o sentimento de ódio pelos alemães a quem acusavam de condescendência geral, quando não cumplicidade para com a violência e horrores nazis. Dagerman tenta compreender, percebe aqui e ali o que levou quase um povo inteiro a jurar lealdade até à morte a um Führer (não a uma constituição que o III Reich nunca teve) e o ter levado a declará-lo mesmo tendo sido obrigado nos últimos dias a defender uma pátria já exangue e em derrota total. Nos pequenos julgamentos de desnazificação realizados pelos ingleses e americanos aos colaboradores das SS, das SA ou do NDASP, estes não se arrependiam, pura e simplesmente diziam que tinham «jurado lealdade» pelo que não conheciam outra maneira de o evitar. Stig Dagerman adivinhou aqui uma das tragédias que assolaram o povo alemão, alguns culpados, outros nem tanto, outros (principalmente o peixe graúdo dos nazis) aproveitados para o funcionalismo da nova social-democracia e da democrata-critã CDU.

Júlio Henriques, num apontamento final sobre Stig Dagerman, dá-nos uma espécie de epitáfio escrito por este último, num esboço de um romance (O Viajante, de 1951): «Deixo simultaneamente sonhos imutáveis e ligações inconstantes. Deixo uma carreira promissora que simultaneamente me prometeu o desprezo por mim mesmo e a consideração geral. Deixo simultaneamente uma má reputação e a promessa de uma reputação ainda pior ainda. Deixo uma centenas de milhares de palavras, algumas escritas com prazer e a maior parte escritas com tédio e por dinheiro. Deixo uma situação financeira miserável, uma posição hesitante perante os problemas do nosso tempo, uma dúvida que já serviu mas de boa qualidade, e a esperança duma redenção. 
Levo, na minha viagem, um conhecimento inútil do globo uma leitura superficial das filosofias e da terceira via, um desejo de extinção e a esperança de uma redenção. Levo, ainda, um baralho de cartas, uma máquina de escrever e um amor desgraçado pela juventude europeia. E levo, finalmente, a visão duma pedra tumular que se ergue no deserto ou no fundo do mar com a seguinte inscrição: 

«Aqui jaz/um escritor sueco/que sucumbiu por nada/o seu crime: a inocência/esqueçam-no muitas vezes.»

Stig Dagerman não tem grandes ou nenhumas expectativas sobre a capacidade de a humanidade fazer o bem, principalmente quando esta se enquadra em instituições burguesas do Estado e do liberalismo capitalista. Sabe do que é capaz e nota-o no seu olhar perspicaz de jornalista e escritor quando conhece in loco a Alemanha após a II Guerra Mundial e o sofrimento do povo alemão, que teve  a ver mais com vingança inútil, como de rapina sem limites. Mais a mais, quando ele observou que essa mesma rapina e exploração atingia as classes mais desprotegidas e sem crimes nazis, enquanto os ricos e os membros do partido nazi se safavam e nada lhes faltava. É claro que na campanha eleitoral de 1946, na Alemanha, os partidos burgueses negavam veementemente a existência de luta de classes. Pudera...

Deixo aqui registado um dos trechos mais significativos e também mais dilacerantes de «Outono Alemão»: «Que distância haverá entre literatura e sofrimento? Será ela função da natureza do sofrimento, da sua intensidade ou do espaço que os separa? A obra literária estará mais próxima do sofrimento que causa o reflexo do fogo ou daquele que provém do próprio fogo? Exemplos imediatos, tanto no espaço como no tempo, mostram existir relações praticamente directas entre a literatura e o sofrimento remoto, fechado, sendo porventura possível afirmar que o facto de sofrer com os outros constitui uma forma de literatura ardentemente em busca das suas palavras.(...)». (pág.132)

Em cada linha de «Outono Alemão», Stig Dagerman partilha desse sofrimento, não tanto para com os alemães que eram, em última análise, os «culpados» de exercerem sofrimento aos outros povos dominados, mas pelo absurdo do sofrimento de homens, mulheres e crianças baseado na guerra em bombardeamentos a cidades onde a temperatura atingia os 1000 graus centígrados, na vida permanente em caves húmidas, na morte pela fome e tuberculose até meados dos anos 50, na prostração psíquica de seres humanos que viam os seus entes queridos, famílias inteiras a soçobrarem em menos de uma semana, a serem obrigadas a roubar, a matar inclusive, a prostituírem-se para sobreviver. Tudo isso, Dagerman observou, sentiu talvez como nenhum outro jornalista ou escritor da altura, também não isentos de culpa acerca da imagem que davam dos próprios alemães. É dele esta ideia transcrita em «Outono Alemão»: quando se pergunta a um alemão, ou alemã, com fome e desprovida de qualquer bem material ou de afecto, se vivia melhor no tempo de Hitler, a resposta provavelmente não seria aquela que o jornalista queria ouvir; mas é esse mesmo jornalista que vai escrever no seu artigo que o amor a Hitler ainda perdura na Alemanha!

domingo, junho 18, 2023

Estudos 10. Elfriede Jelinek


 

«Confissões de uma Máscara», Yukio Mishima

 


Livros do Brasil, ed. de bolso. Tradução e apresentação de António Mega Ferreira

Tradução a partir do inglês, tal como Mishima exigia quando não era possível fazê-lo directamente do japonês, de António Mega Ferreira cuja apresentação, quanto a mim, seria dispensável. Aliás, cada vez mais penso que toda e qualquer apresentação de um clássico como é «Confissões de uma Máscara» ou é acompanhada por dados novos e análises baseadas em factos seriamente estudados ou é inócua. Isto para todas as apresentações ou introduções, não estou a pensar particularmente nesta.

É um clássico que é um poema de amor. Não o amor entre um homem e uma mulher, embora também o seja, mas amor no sentido mais abrangente do conceito quer ocidental ou oriental. Aqui, não há lugar para ambiguidades. Um amor em tempo de guerra total, em tempo de Hiroshima e bombardeamentos constantes às cidades japonesas que fazem pensar na morte possível e omnipresente, que é o mesmo, segundo Mishima, de pensar numa vida possível: «Foi nesta época que aprendi a fumar e a beber. Quero dizer que aprendi a fingir que sabia fumar e beber. A guerra suscitara em nós uma maturidade estranhamente sentimental. Esse sentimento vinha-nos da sensação de que a vida podia terminar aos vinte anos; e nem sequer admitíamos que pudesse haver qualquer coisa para lá destes poucos anos que nos restavam(...)» (pág.116).

O amor é portanto, além da identificação e do carinho pelo outro, a necessidade de confronto com a conquista, com o poder,  saber exactamente os passos a dar como um libertino, mas sabendo que há o limite do desejo que no caso de uma mulher, Sonoko ou as prostitutas de um bordel, o conduzirá a uma espécie de impotência por falta dessa líbido em torno do feminino. Mishima é um homossexual e tenta perceber desde jovem o que é, num crescimento natural de entusiasmo e de uma postura recatada, não totalmente fugidia por obrigação social de que está apartado. A atracção física pelos colegas de liceu é descrita em «Confissões de uma Máscara» com um misto reconhecível da vergonha imposta pela família e pelos outros, pela sociedade em geral, ainda por cima eivada pelo militarismo nipónico, e, igualmente, por uma beleza assumida pelo corpo masculino. Atracção essa que levará Mishima a um verdadeiro culto do seu próprio corpo que muscula nas artes marciais até à sua morte trágica em 1970. «Desde que estava obcecado pela imagem de S. Sebastião que eu tinha o hábito de cruzar as mãos acima da cabeça, quando estava nu. Tinha um corpo magricelas, sem o mínimo reflexo da beleza luxuriante de Sebastião. Naquele momento, pus-me uma vez mais em pose, e, como por acaso, o olhar dirigiu-se para as minhas axilas. Foi então que um misteriosos desejo sexual despertou em mim.» (Pág.90).

A parte final do livro, quando ele se encontra com Sonoko, já no final da guerra e entretanto já casada com um funcionário de um Ministério, é de tal modo arrebatadora e de tão grande beleza literária que me escuso de a transcrever aqui porque perderia todo o sentido. Proponho-vos essa leitura.

segunda-feira, junho 12, 2023

«Cavalos em Fuga», Yukio Mishima

 


Livros do Brasil, Outubro de 2022. Tradução de Tânia Ganho

No Japão entre as duas guerras existiam dois fortes movimentos: um, de cariz «moderno» vinda da Era Meiji do século XIX, tentava alinhar pelo Ocidente e não perder o comboio do desenvolvimento e do progresso capitalistas; outro, claramente conservador, fazia alinhar as forças comummente chamadas de direita e extrema-direita com os valores entretanto perdidos da era dos samurais e do xogunato que pretendiam revivificar o carácter divino do imperador. 

Isao é a personagem que Mishima dá vida neste romance brutal e de uma grande beleza literária, onde poderemos ver algum fio autobiográfico, principalmente na questão dos valores defendidos em vida por Mishima e que o levará a fazer seppuku ritual filmado pelas televisões em 1970, após a tentativa falhada de exigir um levantamento militar que repusesse a antiga ordem política nipónica. Tal como Mishima, Isao em «Cavalos em Fuga» faz seppuku após assassinar Kurahara, o patrão dos patrões japoneses, que tudo corrompe inclusive dando dinheiro, secretamente, à jovem e pura Associação de Patriotas de que Isao era membro destacado e praticante de Kendo uma arte marcial dos samurais. Isao e os seus vinte jovens companheiros criam, a par com a legalizada Associação de Patriotas, uma clandestina Liga do Vento Divino (Kamikazé significa literalmente «vento divino») que glosava uma associação secreta do século XVII que era formada por samurais cujo objectivo era manter e defender o imperador contra todas as influências externas e estranhas à tradição milenar do Japão, budismo incluído.

Não devemos, contudo, menorizar ou reduzir o romance de Mishima, um autor excepcional que, talvez não por acaso, conheci e entusiasmei-me nos meus vinte anos, com um libelo da extrema-direita ou tradicionalista. Mishima está fortemente imbuído de uma forte ética do corpo e da mente e não é por acaso que o seu objecto de ódio se concentra sobretudo no capitalismo e no que ele representa de corrupção. Muito antes do assassinato pelo punhal do já citado Kurahara, Isao/Mishima traçava-lhe o perfil: «Um dos seus comentários mais conhecidos, citado por um jornal, denotava uma displicência que parecia cuidadosamente forjada: ''É claro que o grande índice de desempregados é desagradável. Mas é uma falácia tomá-lo automaticamente como sinónimo de uma economia frágil. O senso comum diz-nos que o contrário é que é verdade. Para haver bem-estar no Japão não é necessário que haja alegria na cozinha de toda a gente.'' Essas palavras suscitaram raiva e rancor e ficaram gravadas na mente das pessoas. 

A maldade de Kurahara era a de um intelecto que não tinha laços com o sangue nem com a terra natal. De qualquer maneira, embora Isao não soubesse nada sobre Kurahara enquanto indivíduo, a maldade dele era-lhe absolutamente clara.

Havia os burocratas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, ansiosos por agradar a Inglaterra e à América, transbordando charme, capazes só de jogar a cartada da coqueteria. Os empresários, que fediam a lucro e a ganância, farejando o solo em busca do seu jantar, como gigantescos papa-formigas. Os políticos autotransformados em montes de corrupção. As cliques militares, tão encouraçadas com o culto do carreirismo que pareciam escaravelhos imobilizados. Os académicos, de óculos,  quais larvas brancas inchadas. Os especuladores, desejosos de explorar a Manchúria, a sua amada filha bastarda. E o próprio céu reflectia um panorama de pobreza, como cores de sol-nascente espalhadas pela terra. Kurahara era uma cartola de seda fria e preta colocada no meio desta lamentável paisagem. Sem o dizer, Kurahara desejava muitas mortes, ansiava por elas.» (pág.241)

Torna-se evidente ao longo da leitura deste romance que Isao tem o seu fim traçado. Torna-se um chefe carismático  da jovem Liga do Vento Divino, mas sabe interiormente que só ele terá forças para levar a cabo a tentativa de chamar o Japão ao caminho dos seus ancestrais. É traído pelo próprio pai, afasta-se de Makiko que o ama e que mente em tribunal para o salvar, é traído igualmente por membros do exército, é preso e levado a tribunal, sendo-lhe dado uma leve pena suspensa, cuja condescendência ele desconfia por ser tomado por militante de direita. Tem por garantido que se fosse de esquerda a pena pesada ou perpétua e a tortura seria uma realidade. No início do livro, Isao Iiunuma chega a invejar os estudantes universitários de extrema-esquerda pela sua postura diante da polícia. Portanto, para Isao, no final de tudo, compreende que o seu acto será solitário. Violento, mas solitário e necessário para redimir os ancestrais e os deuses insultados pelo dinheiro e pela corrupção ocidental.

Quanto ao livro existem páginas inesquecíveis como esta: «Enquanto os conduzia [aos seus companheiros] ao longo do carreiro que atravessava os campos, Isao reparou nos vestígios carbonizados de um incêndio que não estavam ali na véspera. as cinzas finas de palha queimada tinham deixado um padrão cinzento no trilho, mas no sítio onde se concentravam num sulco eram pretas retintas. Esse negro misturava-se com o vermelho da argila de uma maneira que cativava Isao. Estranhamente, não foi a mistura de cinza e uns quantos restos de palha fresca que suscitaram pensamentos sobre o incêndio fulgurante no seu auge, mas sim o sulco negro esmagado por uma roda. O vermelho intenso e bárbaro das chamas, o preto forte do sulco: eis a expressão perfeita, o perfeito contraste. Ser ateado e, depois, extinto com os pés: ambos tinham o mesmo poder vívido. A associação que tudo isto provocou na mente de Isao foi, obviamente, o espectro da revolta.» (págs. 268,269)

domingo, junho 04, 2023

Estudos 9. Robert Walser

 

Robert Walser. Aguarela e tinta-da-china

«Petite Prose», Robert Walser


Éditions Zoé, 2009. Trad. do alemão para francês de Marion Graf
«Petite Prose», publicado em 1917, corresponde ao período em que Robert Walser vivia em Bienne e é considerado um dos livros mais importantes e característicos da sua obra. São vinte e um textos maravilhosos, de uma finíssima ironia, em que alterna a autobiografia e a ficção. As personagens, muitas vezes, são mesmo reais (Luisa Schweizer «Louise», Rosa Schätzle «Rosa», Franz Blei, e outros) mas colocando-as em situações fictícias, desenvolvndo uma narrativa atravessada por uma ironia por vezes cáustica, outra vezes de uma tristeza ou euforia invulgares. Quanto mais se conhece Robert Walser, mais se quer saber. Quanto a este livro ele é publicado tinha Walser já 40 anos e as personagens que ele criou nas suas pequenas narrativas eram ainda vivas. Há quem explique esta «demora» em publicar, mas o escritor era completamente alheio, ou mesmo adverso, a qualquer carreira literária. Parece que o seu irmão mais velho, pintor de renome, Karl Walser, terá sido o responsável por o apresentar a editores suíços, já que a guerra o tinha impedido de viver em Berlim onde já escrevia para alguns jornais e editado pequenos poemas. Contudo, creio que não se pode ver os trabalhos de Walser à luz de um trajecto normal de um escritor. Foi internado durante perto de 20 anos no hospício de Herisau e nessa ocasião não publicou absolutamente nada, dedicando-se a escrever, a lápis, autênticos quebra-cabeças em pequenos textos que levaram anos a decifrar. Pouco importa para o caso. A escrita de Robert Walser é luminosa e o que nos deixou basta para sabermos de que é feita a sua poesia, tenha ela o formato que tiver.

«Basta

Je suis né à telle et telle date, j'ai grandi `tel et tel endroit, j'ai fréquenté l'école comme il se doit, je suis ceci et cela et m'appelle tel et tel, et je ne réfléchis pas beacoup. Rapport au sexe je suis un homme, rapport à l'État, je suis un bon citoyen et pour ce qui est du rang, j'appartiens à la bonne société. Je suis un membre propret, tranquille et sympathique de la société humaine, ce qu'on appelle un bon citoyen, j'aime boire ma bière avec raison et je ne pense pas beaucoup. Évidemment, j'aime surtout bien manger, et tout aussi évidemment, je suis loin d'avoir des idées. Loin de moi toute réflexion pointue; loin de moi d'avoir des idées, et c'est pour cela que je suis un bon citoyen, car un bon citoyen ne réfléchit pas beaucoup. Un bon citoyen mange sa soupe, et basta! (...)» (págs. 65/66).

sábado, junho 03, 2023

«Morte a Crédito», Louis-Ferdinand Céline

 

Livros do Brasil, 2023. Tradução de Luiza Neto Jorge
Escrever mais sobre Céline quando poderá estar tudo escrito sobre ele? A questão que coloco é qual a verdadeira razão de se voltar à sua leitura, se não pela paleta que Céline nos mostra sobre a realidade humana, bem testemunhada pela sacanice, invejas, violências várias e constante repugnância pelos outros? Principalmente, Céline sabe do que fala e atira-nos à cara o que ela, a humanidade, tem de pior. Sabe-se o que o autor foi e os «estudos» que dele se faz e da sua literatura não é menos responsável pelos lugares-comuns que lhe foram atribuídos e que me recuso a dar eco aqui. Não é pois novidade a personalidade muito particular de Céline, sem dúvida, mas o libelo antimilitarista e anti-bélico está inteiramente presente no que escreve e o mesmo se passa sobre o desprezo que nutre face à burguesia rapace e hipócrita, seja ela de pequena ou grande dimensão. 

«Morte a Crédito» foi escrito em 1936, quatro anos após a publicação da «Viagem ao Fim da Noite». Nessa ocasião, antes da II Guerra Mundial, Louis-Ferdinand Céline era considerado um homem de esquerda, premiado e convidado pela intellentsia das letras francesas para palestras sobre o seu modo muito particular de escrever, comparando-o inclusive a Rabelais devido ao seu argot cáustico e irónico. Depois foi o que se viu com a colaboração com os alemães, embora nos seus romances nada sobressaia desse mesmo apoio. Digo romances, não os célebres panfletos ainda hoje proibidos de publicar em França e que o levaram à maldição e ao ostracismo a partir de 1945

De qualquer maneira, este romance editado pela Livros do Brasil, em Fevereiro de 2023, tem uma tão difícil como excelente tradução de Luiza Neto Jorge, o que lhe acrescenta um valor inquestionável. A mesma poeta também esteve na base da tradução, nos anos 80, de uma edição publicada pela Assírio & Alvim. Paradoxalmente, a trama de «Morte a Crédito» passa-se antes da «Viagem...». Não sendo consideradas obras totalmente autobiográficas, esta última descreve a sua vida terrível na frente da guerra de 1914/18 e a recuperação dos ferimentos sofridos, acrescentando as viagens que o autor faz à América e ao Congo juntando, no final, a sua experiência de Paris, também como médico e frequentador de bares soturnos. Já em «Morte a Crédito» realça-se a sua vida antes de se juntar ao corpo militar francês que combateu contra a Alemanha. A conclusão do livro é de uma ternura imensa (a conversa mantida com um Ferdinand exausto perante um tio que é o único a compreender os seus azares e insociabilidade constantes) contrastando com a violência imprimida durante toda a narrativa e que descreve um ambiente familiar de cortar à faca com o pai que o agredia violentamente e uma mãe doente, queixosa e que era igualmente vítima das frustrações paternas. Nada disto, contudo, será comparado aos trabalhos verdadeiramente indignos a que se sujeitou para sobreviver, para «ganhar a côdea»,  ou a perspectiva de um amor quase sempre fugaz. Alguns momentos há que são de cunho surrealista como aquele em que com os De Pereires, em fuga de Paris por imensos calotes e dívidas, cria uma quinta pedagógica para ser criada uma «Nova Raça»; claro que esta «nova raça» não fez mais do que passar fome e frio, roubar e assaltar todas as quintas limítrofes ao «falanstério» e que se viu, subitamente, fechado pela polícia e com o seu responsável a suicidar-se com uma caçadeira. Não deixo de considerar esta «experiência» tão ironicamente relatada como uma metáfora inesquecível no campo literário sobre as ideologias assentes na criação de «novas raças» europeias que floresciam desde o final do século XIX e inícios do século XX e cujas consequências horríveis se vieram a dar-se na II Guerra Mundial. 

Céline é um clássico incontornável.