quinta-feira, maio 11, 2006

Páginas de um Diário Alemão - III, de João Pedro Mésseder


Berlim, 14 de Agosto, 20,00 h

De manhã, outra volta por esta metrópole que se diz liberal, cosmopolita, multicultural. Na Karl Marx Allee, em breve serão arrasados os edifícios dos anos 60, enormes paralelipípedos para habitação construídos pelo governo socialista. Em seu lugar erguer-se-ão arranha-céus, esmagando simbolicamente o coração da Berlim vermelha, muitos deles desfigurados por enormes logótipos luminosos, como já hoje se vê.
O que mais impressiona aliás, na cidade reunificada, é o afã ocidental em ajustar contas com o passado recente através de uma arquitectura poderosa que rasura ou oculta os sinais da História. Essa mesma atitude que, após a reunificação, levaria às infames campanhas contra Heiner Müller e Christa Wolf — e Brecht também as pagaria, caso este tempo fosse ainda o seu. Do mesmo modo que, em poucos anos, zonas de fronteira foram preenchidas por prédios de escritório e comércio, vão-se apagando os traços de uma vida alternativa.
Trata-se, afinal, de um triste epílogo. Por um lado, a pressão e a propaganda das potências ocidentais, o clima de Guerra Fria e a espionagem, a corrida aos armamentos e a ilusória imagem de um paraíso consumista difundida pela ex-Alemanha Ocidental; por outro, os trágicos erros dos responsáveis políticos da ex-RDA (assassinatos no Muro e muitos outros) e o crescente divórcio entre dirigentes e população. Tudo fez o sistema resvalar para a limitação das liberdades e para o despotismo burocrático e policial, não obstante as muitas conquistas alcançadas no domínio da economia e no plano dos direitos humanos e sociais (trabalho e habitação, acesso à educação, à saúde, à cultura). A Perestroika acabaria por dar o golpe de misericórdia neste triste estado de coisas.
É por isso que todos os dilemas, perplexidades e debates da esquerda europeia passam por Berlim, onde os novos e restaurados edifícios da zona oriental ostentam, com arrogância, os anúncios luminosos das multinacionais e de outras grandes companhias alemãs e ocidentais. Assim se exibe o espectáculo da globalização capitalista, nova (?) rica e neo-liberal, diluindo-se a memória revolucionária de uma cidade que foi palco do espartaquismo, da resistência à barbárie nazi e da malograda tentativa de construir uma sociedade mais justa.

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Tarde em Potsdam — por estas paragens foram rodadas, em 1974, algumas cenas de «Barry Lyndon». Para o olhar, é fácil deixar-se seduzir pela elegância amarela e cobre do palácio barroco de Sanssouci, mandado edificar por Frederico, o Grande, da Prússia — que gostava de Voltaire e sepultava os seus cães num canteiro próximo, com direito a lápides de granito. De repente estamos no refinado século XVIII e, no ouvido da memória, um tema escolhido para o filme de Kubrick — o ‘andante con moto’ do trio para piano, violino e violoncelo em mi-bemol de Schubert (opus 100) — acompanha a descida do jardim real, com seus amplos degraus de vinhas e figueiras que Frederico teimou em plantar nesta terra fria e húmida. Ao fundo da esplendorosa escadaria verde, um caminho à direita do curso de água conduz ao ouro da Casa Chinesa por entre as árvores de um jardim inglês. De chinês, as grandes figuras esculpidas apenas têm os olhos; os corpos são germânicos.
Tempo ainda para visitar o Cecilienhof, palácio-chalé em estilo inglês, construído durante a Primeira Guerra como residência de Verão do príncipe herdeiro, Guilherme, e da mulher, Cecilie von Mecklenburg-Schwerin. Uma vez derrubado o Muro que por aqui passava, a vista dos jardins para as águas do Havel dir-se-ia obra de paisagista. Cecilienhof é também o lugar da Conferência de Potsdam, em 1945. Recuar até esse tempo, no gabinete de trabalho de Stalin ou a sete palmos da mesa onde Churchill, Truman e o secretário-geral do PCUS se reuniram para decidir os destinos do mundo…
Regressamos a Berlim atravessando Potsdam. Entre belas mansões, palacetes e jardins, vêem-se as casas dos generais soviéticos que aqui estavam destacados, perto da sede local do KGB. Olhando para a esquerda e para a direita da estrada, convocam-se imagens de um passado ainda recente, estranho misto de romance de espionagem à John Le Carré e de utopia disfórica, mundo que a pouco e pouco se tornou cinzento e duro, embora conservasse em fundo a grandiosa elegância dos cenários: no rio e nos lagos, nos enormes parques da realeza prussiana, nos palácios e vivendas setecencistas e oitocentistas. Apenas as casas da velha comunidade russa, com seus rendilhados de madeira, quebram alegremente este equilíbrio.
Por fim, atravessamos a ponte onde russos e americanos trocavam espiões durante a Guerra Fria e reentramos, pouco depois, em Berlim Ocidental para uma última paragem no Estádio Olímpico — esse mesmo onde o Ogre discursou e Leni Riefenstahl compôs hinos em imagens à beleza dos corpos atléticos.

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O céu de Berlim – inevitável (re)tirada lírica

Sobre bandeiras ao vento — frenéticas ondas — e cúpulas de cobre, o céu de Berlim esqueceu a poeira dos mortos, dos construtores de muros e frustrados futuros. Acolhe agora os incineradores da memória que edificam, sobre escombros e paredes crivadas de balas, falsos paraísos de vidro e luz aprisionada. O céu da nova Berlim é dos fazedores de cinza e dos comedores de oiro. Um dia ainda os veremos a implorar uma cerveja no inferno.

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