quarta-feira, fevereiro 26, 2020

«O Futuro é para Sempre - experiência, expectativa e práticas possíveis», de Paula Godinho

Resultado de imagem para o futuro é para sempre paula godinho

Editado em 2017, pela Letra Livre (cada vez melhor) e pela Associação Galega da Língua de Santiago de Compostela, Através, Paula Godinho consolida-se como uma antropóloga de referência em Portugal e provavelmente para lá da nossa raia ou da linha ténue que nos separa da Europa. Não percam este livro.

O livro é formado por uma Introdução, Lides de Rotina (sobre as trabalhadoras têxteis de Verim, na Galiza), Na Penumbra do Poder (sobre o raiano e comunal Couto Misto ou Mixto, como queiram), Ecos Teimosos (sobre o processo de Reforma Agrária no Couço)  e um Tout Ça N'Empêche Pas, Nicolas (este capítulo mais explicativo e da metodologia da Antropologia)

Li-o com crescente interesse, sublinhando aqui e ali partes que me pareceram importantes de referir já que, por coincidência conheço todos os locais que Paula Godinho nomeia. A saber, Verim na Galiza quando editava autores galegos na Deriva e passeava por lá com frequência, o Couço onde me desloquei duas vezes em plena Revolução (PREC com muito orgulho) e o Couto Misto pela mesma razão de Verim. Não sei se é da idade ou não, mas as coisas dão agora para me emocionar. O «Futuro é para Sempre» tem esse condão de me «pregar» na leitura e ver-me a mim com 17 anos no Movimento Alfa, lá referido aliás, em Toulões concelho de Idanha-a-Nova (cujas ocupações são enumeradas em Castelo Branco) e participar na ocupação das terras dos Almeida Garrett e dos Marrocos! Ocupou-se igualmente a casa soberba da herdade e morada dos proprietários absentistas. Vi crescer a creche no 1º andar dessa casa e conseguimos dar aulas de alfabetização na sala de jantar ao lado com candeeiros a petróleo. Também vi, infelizmente, o que a Paula Godinho conta no capítulo sobre as derrotas da RA no que respeita à iminente entrega da UCP aos antigos patrões, com a anuência em contra-corrente do técnico do IRA e algum mal-estar interno com os salários dos operários agrícolas. «Porque o contabilista e o tratorista teriam de ganhar o mesmo, se não trabalhavam na terra?». Coisas assim. Com uma grande diferença. A autora esteve anos estudando e recolhendo provas escritas e orais no terreno acompanhando todos os momentos intensos e significativos de culturas próprias urbanas e rurais sem a irritante imparcialidade de alguns. Paula Godinho põe-se ao lado dos subalternos explorados em várias redes e intensidade pelas classes dominantes e pelo poder.

Logo na Introdução, Paula Godinho diz ao que vem citando Agier: «Vivemos um longo momento de incerteza, com as vidas a tornarem-se precárias por mais tempo e com os seres humanos a habituarem-se a materialidades provisórias, a mobilidades sem ancoramento e sem direção, com 'inovações' constantemente exigidas, nas quais o passado e o futuro são ignorados». Quanto á exigência de inovação lembro-me de memória de uma frase de Debord e o quanto vale esse objetivo, «Quando o patrão exige inovação, o escravo honesto proclama de imediato a sua própria modernidade!». A partir daqui o leitor não deve voltar atrás. Mais a mais com outra citação que Paula Godinho vai buscar a David Harvey «O capitalismo nunca cairá por si. Terá de ser empurrado. A acumulação de capital nunca parará. Terá de ser travada. A classe capitalista nunca abdicará do seu poder. Teremos de lho retirar». Aqui o leitor não pode colocar o livro de lado. Se o fizer vá então ler o Henrique Raposo e o Neves. Ainda é nesta introdução que a autora nos dá uma visão mais clara da metodologia que utiliza quer em trabalho de campo, quer na explanação teórica, com profusão de nomes e referência bibliográficas que nos obrigam a nós, leitores desprevenidos, a pesquisar sobre a obra ou obras deste ou daquele autor citado.

Em Verim explora-se o sobretrabalho, mal pago e sem direitos das costureiras. A lógica do patronato é a deslocalização, falências fraudulentas e salários baixos. Os patrões, posso eu dizê-lo, embora no livro esteja ausente a referência a Zara e outras/os modistas de renome mundial. Voltou-se à exploração do século XIX e com o medo à mistura. Nenhuma costureira quis dar o seu nome nas entrevistas dadas, mas apontando irregularidades várias e violências no que se refere ao trabalho repetitivo e de pura exaustão física quer na oficina, quer em casa (aqui ainda é pior, porque se rompem laços familiares e trabalha-se quase as 24 horas do dia). Caso exemplar testemunhado por vários autores que conheci, e referido por Paula Godinho, é o facto de na Galiza não ter existido a guerra civil de 36/39 mas antes os paseos onde se fuzilavam os suspeitos pela calada da noite. Assim, o poder reivindicativo foi sempre fraco o que levou, durante o franquismo ao abuso das classes dominantes espanholas. Hoje isso aumentou e a autora lembra a deslocalização para o Nepal e os desastres mortíferos de Dacca, sem que nenhuma empresa têxtil multinacional se tenha responsabilizados pelas centenas de vítimas. É a deslocalização...

O Couto Misto já é mítico.. A resistência silenciosa quase aquiescente da população das três aldeias veio dos confins do feudalismo. O comunalismo era praticado às claras, não tinham juízes de fora, não cumpriam serviço militar, eram contrabandistas e era uma zona de refúgio ou zomia (James C. Scott) para os perseguidos pelo poder. Gente boa. Mas extremamente maltratada pelos governos do Estado Espanhol e Português. Paradoxo: os liberais que em 1864 acabaram com o Couto Misto, dividindo-o pelos dois estados, com o argumento que as linhas de fronteira teriam de ser claras, ou melhor, de traços grossos em vez de finos, e acabar com o que restava de vestígios medievais e do enclave que o ligava a Portugal por uma estrada privilegiada. O liberalismo vinha aí com o sempiterno «progresso». Para não me alongar: li das melhores descrições históricas, sociológicas e antropológicas no tratamento do Couto Misto. E no que se tornou hoje.

Quanto à Reforma Agrária, como ela é descrita e contada, não vale a pena alongar-me. Estamos lá. A ver as pessoas. E a ouvi-las. Como num filme.

António Luís Catarino
26 de fevereiro de 2020

sexta-feira, fevereiro 21, 2020

Dois livros de Herta Müller


Creio que já disse por aqui que não sigo os prémios Nobel só porque o são. Alguns são mesmo maus e evito falar deles. Não é o caso de Herta Müller que o ganhou em 2009 e de quem li dois livros. «Tudo o que tenho trago comigo» é mesmo avassalador não só pelo estilo imprimido que capta a atenção contínua do leitor e que se repete em «Hoje preferia não me ter encontrado» título mais bem escolhido que o francês «La convocation».

«Tudo o que tenho trago comigo» é uma história verdadeira mas pouco conhecida entre nós, ocidentais ganhadores de guerras e de vitórias várias e por vezes vãs contra outros povos. Adiante. Pouco conhecemos do pós-45 para a minoria alemã da Roménia (mas pressente-se o mesmo de outras minorias alemãs em países do Leste), donde é oriunda Herta Müller. Lê-se na página 14 a ironia fina da sua condição no pensamento da personagem central da narrativa, : «A minha mãe e especialmente o meu pai acreditavam, como todos os alemães na cidade de província, na beleza das tranças louras e das meias brancas até ao joelho. No quadrado negro do bigode de Hitler e em nós, saxónios da Transilvânia, que éramos membros da ariana raça. O meu segredo era já, sob o mero ponto de vista físico, a maior monstruosidade. E, sendo romeno, acrescenta-lhe ainda crime contra a raça». Oskar Pastior será um jovem membro de uma família alemã que terá de reconstruir a URSS devastada pela guerra. Aliás, todas as famílias das minorias alemãs terão de entregar um membro (geralmente o mais novo e com mais força) para essa mesma reconstrução. Foi o que aconteceu a Oskar que passa 5 dos seus anos num campo de trabalho. Da descrição desse campo no meio de nada, passa-se fome e como a fome é descrita! O «Anjo da Fome» acompanha-o sempre nesses 5 anos e nem sempre é bom e lhe dá bons conselhos. No campo vive-se o tédio dos gestos repetidos «Tenho medo que se morra de tédio quando se está morto» diz Bea Zakel, um amigo. Sobreviveu e encontrou-se com Herta Müller, 60 anos depois, onde nem a família já o quis: «Ninguém me quer cá e eu de forma alguma posso partir» ou ainda esta declaração confrangedora, «Se, nesta vida, me quisessem de novo deportar, uma coisa eu saberia: há coisas primeiras que já querem as segundas, mesmo contra o nosso querer. O que é que me compele a manter essas ligações. Porque quero eu, à noite, ter direito à minha miséria. Porque não consigo ser livre. Porque obrigo o campo de trabalho a obedecer-me. Saudades de casa. Como se eu precisasse.»

Quanto ao segundo livro aqui citado de Herta Müller «Hoje preferia não me ter encontrado» é uma descrição realista da Roménia de Ceausescu. Um livro abafado, preso, sufocado pela ideia da fuga e da convocação iminente da Securitate. Mas houve a transgressão da mulher a quem a escritora dá vida. Na fábrica de confeções onde trabalhava, em jeito de brincadeira ou talvez algo mais sério, enviava nos bolsos das calças para onde eram exportadas para Itália pequenos papéis com o seu nome e morada na esperança de um italiano a procurar e levá-la. As intimações tornaram-se regulares e é neste clima que tudo se passa. O medo, a superstição contra os medos, os temores à noite, a transpiração contínua antes de cada interrogatório. Além disso os dois casamentos falhados. O primeiro marido, operário como ela, foi o seu denunciante à polícia; o segundo, alcoólico tratava de espiar os outros. Talvez a ela própria. O romance termina rapidamente com a descida abrupta do elétrico em que viajava. Cortou com tudo, ao que parece. Mas como se pode cortar com tudo numa sociedade que ela própria cortou com os laços entre as pessoas?

António Luís Catarino
Coimbra, 21 de fevereiro de 2020

Um poema de 1981 de Luís Nogueira encontrado em alfarrabista


31 de janeiro deste ano. Pelas 11:00 entro na Sá da Costa, em Lisboa, transformada agora num enorme alfarrabista. Demorei-me bastante até encontrar uma pérola de Luís Nogueira de poema feito. Dirijo-me à menina da caixa com outros livros na mão e este que não era mais que um suplemento da Fenda Edições de Coimbra, talvez o seu número 4. Ainda hoje tenho a revista, mas não este suplemento de julho de 1981. O preço pedido era absolutamente incrível. Obsceno. Disse-lhe isso mesmo, mas que o levava porque o poeta foi meu amigo. Acrescentei que não poderia ser vendido sem a respetiva revista e que estavam a truncá-la. A menina vai lá dentro ao patrão e fez-me um desconto de...75%. O que tornou impossível a minha estadia mais que uns segundos para receber o troco.
Dedicado a Isabel Maria, fica aqui parte de «5 poemas & 1 envio (1975-1979)» em memória do Luís:

Devia trabalhar em silêncio, des-
palavrar máscara após máscara
até ao rosto febril
este remorso que se fez comigo
e povoa de espingardas voadoras
os degraus tépidos do sono;

chegar aos olhos
e vestido para tudo: dias tranquilos,
fúrias atlânticas, primaveras macias, indecisas.

Devia trabalhar o tempo todo
sentado à mesa da noite
e com a garantia das lágrimas;

deixar que os rios,
a premeditada inconstância das chuvas
e algum mar
alisassem por sua conta o trilho
por onde a memória trilha
tantos dias perdulários.

Ou então esquecer:
para as urnas douradas, o quinhão da insónia
como herança:
os limites prosperados da lembrança...

(...)

Luís Nogueira
julho de 1981