quarta-feira, agosto 24, 2016

Da poesia como o grito insubmisso: Ricardo Gil Soeiro. Por Maria João Cantinho. Na Caliban.


A literatura poder ser fulgor e ferida, grito insubmisso ou iluminada solidão. Mas ela será sempre lucidez e desmesura, poderosa e subtil máquina de interrogar. Poeta e ensaísta, Ricardo Gil Soeiro (1981) aproxima-se da escrita como se de um alfabeto luminoso se tratasse, plasmado numa obra em que se entrelaçam, em mútua ressonância, poesia e ensaio. No domínio do ensaio tem vários livros publicados, entre os quais Iminência do Encontro (2009, Prémio Pen Clube-Primeira Obra), Gramática da Esperança (2009) e, mais recentemente, A Sabedoria da Incerteza (2015). No domínio da poesia tem revelado um percurso singular e coerente que integra obras como Labor Inquieto (2011) ou Palimpsesto (2016), uma tetralogia que lhe ocupou os últimos anos de escrita. Assumindo-se como aprendiz de enigmas, a sua poesia fala-nos do amor e do tempo, da morte e da metamorfose. Marionetas, anjos necessários, Bartlebys: afinal, máscaras plurais em que se oculta e se revela o pendor reflexivo de um lirismo eminentemente dialógico. É a partir dessa polifonia que ergue a sua partitura inquieta, dilacerada entre a sedução do segredo e o apelo do encontro.

Comecemos pelo teu último livro de poesia “Palimpesto” (Deriva, 2016). A ideia ou a imagem da escrita sobre a escrita é uma das metáforas privilegiadas da tua oficina poética, como outras que estão patentes em alguns títulos teus, como “Alfabeto dos Astros”, “Caligraphia do Espanto”, etc. A que obedece este teu ímpeto da poesia: à escrita ou à leitura?

Creio que é na História Universal da Infâmia que Jorge Luis Borges define a leitura como uma actividade posterior à de escrever: mais resignada, mais cortês, mais intelectual. Concordo em absoluto e, como vês, inicio a minha resposta com uma citação e isso é em si um gesto sintomático. Assumo, sem complexos, essa presença de uma profunda alteridade. A verdade é que só temos as palavras da tribo, a língua dos outros, a língua do universel reportage de que falara Mallarmé. O máximo a que podemos aspirar, parece-me, é fazer estremecer a linguagem: abrir aqui uma brecha, acender ali uma imagem, desencadear acolá um novo ritmo. Como que semeando uma fecunda discórdia no seio da própria língua. Para mim, a poesia nasce dessa aporia: começa a partir da sua própria impossibilidade. É a partir dessa multiplicidade de vozes que, de facto, se inicia o enigma e a singularidade do sentido. É uma alteridade, frágil e incomensurável, que irrompe e que assombra quem escreve. Na procura de uma voz própria influem outros discursos e outras referências que vão esculpindo e continuamente reconfigurando novos modos de declinar o mundo. A noção de “palimpsesto” obedece justamente a esta ideia da escrita sobre escrita e da vibração plural do sentido.


Curioso teres começado pelo Jorge Luís Borges, um autor que cultivava a escrita como palimpsesto no seu sentido mais pleno. Lembro-me, por exemplo, das obras sem autor ou da forma como ele trabalhava permanentemente o enigma da literatura. O poeta é atravessado por muitas vozes e isso é uma condição inevitável, mas também é irrecusável, não achas? É porque há quem queira ser original a qualquer preço e há até quem não leia enquanto escreve. Também o fazes?


Concordo que é inevitável. Não há texto que não brote de outros textos, a escrita é visitação, reverberação. Borges sabia-o como poucos. Negá-lo é não só ingénuo, mas simplesmente impossível. Isto não significa que ao rumor colectivo da língua e da memória literária o poema não procure responder com a inscrição de uma assinatura, a irredutibilidade de um estilo, uma linha de fuga. É a isso, aliás, que o poema almeja, o absolutamente singular. Herberto Helder exprime com o fulgor que o caracteriza este desejo impossível, quando diz em Servidões: “quero criar uma língua tão restrita que só eu saiba,/e falar nela de tudo o que não faz sentido/nem se pode traduzir no pânico de outras línguas.” É exactamente isto. Através de palavras que são as palavras de todos imprimir um cunho pessoal, perpetuar a nossa impressão digital. Manuel Gusmão escreveu páginas luminosas a este respeito, quando se reporta ao imperativo de “reinventar uma coralidade para a poesia”, nela singularizando uma voz, respondendo à invenção com invenção. Gusmão di-lo num poema de um modo admirável: “corta a minha mão e escreve com ela um poema que seja teu.” A escrita, parece-me, progride através deste equilíbrio sempre precário entre continuidade e ruptura, entre tradição e talento individual (para utilizar a terminologia de Eliot). Repara que a célebre injunção poundiana do make it new parte justamente de um mestre da colagem e da citação. Quanto à segunda questão: depende muito das circunstâncias. Na maior parte das vezes, leio constantemente. Poesia e ensaio, fundamentalmente. Mas quando estou imerso num dado projecto poético, numa fase já mais adiantada, preciso de estar a só com os poemas. É uma fase de absoluta concentração e obsessão. Pressupõe recolhimento, lentidão. Auscultação e apuramento. A tal espera vigilante… Tomo notas, levo-as comigo para todo o lado. Mobilizam-me por completo. E depois é rever, rever.


O que fazemos com os autores que amamos ler é o que interessa, justamente. Não é tanto o que lemos, mas sobretudo como lemos, por irmos ao encontro do que queremos ler. Na tua obra Espera Vigilante, publicada em 2011, podemos encontrar a forma como entendes o gesto poético, essa auscultação de que falas e, num texto de João Amadeu Oliveira da Silva sobre a tua poesia, em “Salvar a imperfeição das coisas”, ele fala em enigma e em promessa…é disso que se trata? A promessa da linguagem enquanto possibilidade, não só da linguagem, como da própria comunidade?


Sim, eu diria que essas são duas linhas fortes da minha escrita. Somos seres em fuga, espíritos errantes perdidos no labirinto do tempo. A poesia procura dar conta dessa travessia enigmática, mas fá-lo sempre de um modo turvo, encenado e visceral. É um testemunho do nosso espanto perante as coisas. O poema sedutor é aquele que guarda uma margem de indecidibilidade e de segredo, que insinua mais do que explicita, que deixa entrever mais do que postula. O mistério permanece, assim, intacto. Todos estes fios se entrelaçam na ideia de comunidade com que me interpelas. Como sabes, sempre privilegiei essa vertente ética, pois considero-a vital. Gostaria de pensar que a poesia participa de forma decisiva nessa construção antropológica de sentido, que assume o mundo como a nossa tarefa, como diria o Benjamin. A ideia de que, através da linguagem, um humano se dirige a um outro humano, conseguindo interromper por breves instantes a sua solidão irredutível.


A ideia da poesia ou da própria linguagem como tarefa remete-me sempre para a poesia de Paul Celan, sobre o qual tens escrito textos ensaísticos. Onde reforças precisamente a dimensão ética da poesia. Estudar autores como George Steiner, Walter Benjamin, Levinas, Derrida, entre outros, não tem sido para ti uma fonte de inspiração poética? E como convives com essa dimensão ensaística na tua poesia? Elas entram em conflito?


Sem dúvida, o ensaio encontra-se em permanente diálogo com a poesia, mas não exactamente em termos de transposição directa, o que seria vão e fútil. Confesso que, quando escrevo, não penso muito nesses termos. Mas agora que colocas a questão é interessante notar que o ensaio (literário e filosófico) consegue suscitar um tipo de reflexão diferente daquela que outro tipo de texto proporciona. Eu diria que, por vezes, há naturalmente uma confluência nas obsessões e nas preocupações dos dois registos. Obviamente que há vasos comunicantes entre o discurso poético e o discurso ensaístico, mas creio que ambos divergem quanto aos seus propósitos e processos. Como te disse há pouco, o poema não postula, é a multiplicação de várias alucinações. Claro que o ensaio genuíno é também inventividade, aventura e risco. É poiesis e não somente techné. Se quiseres, o ensaio é razão apaixonada e a poesia é também pensamento. São dois tipos de lucidez e de rigor. Ambos são criação. É difícil dizer mais do que isto. Porventura, haverá uma voracidade muito própria da poesia, o poema é omnívoro, alimenta-se do mais ínfimo detalhe, da mais incoativa imagem interior. Depois impõe a justeza da palavra exacta, a síntese, a condensação. O ensaio, por sua vez, será talvez mais rígido em termos formais. Mas os dois discursos coabitam em mim sem qualquer drama.

A tua obra “A iminência do Encontro” resulta de uma investigação profunda e um diálogo intenso com George Steiner, onde exploras a ideia de “leitura responsável”. De que leitura é esta que falas, de um acto ético de interpretação do mundo e da própria literatura?

Há uma imagem célebre de Kafka (que Steiner gosta muito de citar) que diz que “um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós.” Esta imagem é muito feliz justamente porque espelha a intensidade ontológica que deve presidir ao acto de leitura. Há ali um tom de urgência. A reivindicação de algo absolutamente inadiável. A vivência autêntica de que falava Proust. A ideia de que todo o leitor é leitor de si mesmo. A leitura responsável que anima Steiner é a apologia da compreensão enquanto acto moral. O conceito está plasmado na sua obra Presenças Reais e o termo que ele utiliza é answerability, que encerra a tripla vertente de “responder por”, “responder a” e “responder perante”. Claro que a poética do sentido, perfilhada por Steiner, encerra um conjunto complexo de temáticas que nascem do diálogo que ele estabelece com outros autores. Heidegger, Derrida, Bloch, Celan, Broch e tantos outros… Nem sempre esse diálogo está isento de polémica e de perplexidades. Mas é por isso mesmo que o seu pensamento é tão fascinante.


Tens uma obra vasta e intensa, sobretudo quando pensamos na tua juventude. Há todo um lado programático na tua obra que é visível, sobretudo na poesia. Não te vou perguntar se escreves muito porque isso já o sei (risos), mas se, quando escreves, tens sempre presente uma linha estrutural ou se esse aspecto programático é inconsciente e te limitas a segui-lo…


Tens razão. A ideia da estrutura e da arquitectura do livro é muito importante para mim. Tenho tentado, não sei se com sucesso, que cada volume se assuma como um objecto autónomo e não se resuma a uma mera recolha de poemas, mais ou menos arbitrária. O José Ángel Cilleruelo assinala isso mesmo num magnífico texto sobre o meu livro A Rosa de Paracelso, intitulado “A Exacta Densidade da Escuridão.” O que não quer dizer que os contornos da estrutura estejam perfeitamente determinados à partida. Os próprios poemas encarregam-se de ditar o ritmo. Há poemas que se atraem mutuamente e isso tem implicações ao nível da composição. Há avanços e recuos. É um processo contínuo. Encaro um livro como a hipótese privilegiada para explorar determinados cenários, certos estilhaços de sentido. Cada volume deve acolher a diversidade de registos e promover a plasticidade de diferentes linguagens e de diferentes vozes. Essa ideia de uma polifonia dramática, de uma encenação textual, é determinante. Mas um livro deve também ter uma identidade própria. É como se cada volume fosse palco experimental para a articulação de certas imagens, cenas ou cintilações. Claro que se os poemas individualmente soçobrarem, o enquadramento estrutural esboroa-se e não conseguirá sustentar as parcelas que conferem densidade ao conjunto. O poema individual deve valer por si mesmo, deve poder ser lido à margem do horizonte mais amplo que o enquadra; mas, se lido à luz dos alicerces que lhe conferem consistência e unidade, ele sairá decerto enriquecido pela teia de reenvios e de ecos que, entretanto, se gerará. Repara que, quando falo da ideia de livro, não me estou a reportar à concepção onto-teológica do livro (de que fala Derrida) que caracteriza muito do que hoje passa por literatura; refiro-me, isso sim, àqueles livros que revelam uma complexidade desarmante e que, assim, procuram minar o princípio da identidade. São esses os livros que me interessam.
A nossa sociedade, de ideologias moribundas e refém de uma visão digestiva da literatura, em que os escritores mais lidos são pivots das televisões, precisa de poetas e de poesia ou isso é um luxo?
Essa é uma questão imensa a que eu, decerto, não conseguirei responder convenientemente. Sabemos da gloriosa inutilidade da poesia. É porque se situa à margem da lógica do calculável e do quantificável que a poesia se torna indispensável a quem deseja criar para si mesmo um espaço de silêncio e de instrospecção. É um espaço de desaceleração, de uma lentidão essencial que resiste à cultura reinante do ruído e do espectáculo. É portadora de uma incondicionalidade irredutível, reivindica para si uma singularidade absoluta e, portanto, parece-me que nunca terá muitos leitores, embora, idealmente, fosse desejável que chegasse ao maior número de pessoas possível. Justamente porque ela luta contra a massificação, contra a padronização, contra as bestas céleres (O’Neill). Estará sempre em dissonância com o servilismo mercantilista que caracteriza boa parte das nossas sociedades tardo-capitalistas. Em todo o caso, ela persistirá, ela resistirá, exercendo o seu papel de permanente vigilância sobre a linguagem, uma linguagem que se faz inquietude e assombro. É esse o seu papel intempestivo, creio. Embora ela também seja interpelação do agora. Respondendo concretamente à tua pergunta, diria que a poesia é um luxo profundamente necessário. Porque opera uma essencial problematização da linguagem, porque cultiva a incandescência da pergunta, porque, enfim, nos torna mais inteiros e humanos, mesmo quando nos fala de uma beleza convulsa e atormentada.


A minha pergunta é um teste à tua paciência: achas que os teus poemas são atormentados ou é a própria poesia que não pode deixar de sê-lo? Falo da “ferida” e lembro-me do livro de Ramos Rosa, como esse belíssimo título “A intacta ferida”. Há um poema em que ele diz: “Não tenho lágrimas/estou mais baixo/junto à cal”. Há nisto uma melancolia, enigmática certamente, que nos deixa de lábios colados ao silêncio. É este o limbo que cabe ao poeta?


Essa última imagem que utilizas é magnífica! De facto, escrevemos sempre às escuras. Não sabemos muito bem porquê. Cioran, intransigente e clarividente como só ele soube ser, disse uma vez que escrever literalmente salvou-o. Sabemos como essa ideia da escrita como salvação caiu em descrédito, e talvez com razão. Por ser demasiado solene e grandiloquente. Mas Cioran, o mais corrosivo de todos os pensadores, não hesitou em afirmá-lo. O reconhecimento de que, se não fosse a escrita, teria provavelmente cometido suicídio. Por muito sombria que fosse a sua visão da existência, o facto de poder verbalizá-la através da escrita tornava mais tolerável essa ausência de sentido. Não trazia propriamente redenção. Mas é a ideia de que formular o desastre e o absurdo de algum modo mitiga e confere algum tipo de sentido a esse desastre, ao naufrágio da nossa condição. Há como que um júbilo na nobreza de reconhecer a incomensurabilidade das nossas vidas, a visceral estranheza das coisas. A poesia, tal como eu a entendo, debate-se com todas estas questões. Demora-se nelas: detém-se nas feridas, nas fendas, nas fissuras. Namora com o absoluto de que nos sentimos desamparados, seres cindidos que somos. E daí essa melancolia sem cura, oblíqua e perene, “que nos deixa de lábios colados ao silêncio.”


Como é que olhas para a poesia contemporânea? Como dialogas com ela? Ou não pensas nisso e segues o teu instinto, a tua voz?


Olho com grande entusiasmo! Basta olhar para os jovens poetas que têm despontado no último decénio: sobretudo para a diversidade das suas propostas estéticas. Sigo com muitíssimo interesse praticamente tudo o que se vai publicando. Há coisas realmente muito boas! Totalmente díspares, mas a maior parte delas muito estimulantes. Há um diálogo muito frutuoso entre os poetas da minha geração, embora também se verifique, por vezes, um acantonamento em capelas literárias mais ou menos dogmáticas. Talvez isso seja inevitável. É pena a dificuldade de publicação, especialmente por parte das editoras de referência. Algumas delas demitiram-se, pura e simplesmente, de publicar jovens autores. Na poesia, isso é particularmente nefasto. Mas as pequenas editoras têm feito um trabalho absolutamente extraordinário. Sem esse trabalho subterrâneo, algumas das mais surpreendentes revelações dos últimos anos teriam sido adiadas. Creio que todos nós, enquanto leitores, lhes devemos estar gratos: pela sua obstinação e pela sua generosidade.

Maria João Cantinho
Autora, ensaísta e poeta. Crítica literária e professora.

terça-feira, agosto 16, 2016

Los dáimones tatuados de Ricardo Gil Soeiro. Leitura do filósofo Armando Pego da Universitat Ramon Llull

Los dáimones tatuados de Ricardo Gil Soeiro.




Angelus Novus,
Paul Klee (1920)

Hace un par de años reseñaba en este espacio los dos primeros volúmenes poéticos de la Tetralogía palimpséstica que mi desconocido amigo Ricardo Gil Soeiro había publicado entre 2012 y 2013 con los títulos de Da vida das Marionetas y Bartlebys reunidos. Como una amistad literaria, por definición, está tejida de la materia del olvido, la ausencia de sus noticias me aseguraba que un proyecto poético tan ambicioso no sólo se culminaría, sino que habría de volver a encontrarlo ya terminado. A fin de cuentas, una lección de la poesía moderna consiste en que no hay más lector que el que llega, hipócrita y semejante, demasiado tarde. Me encuentro así por fin con otro volumen que recoge la tetralogía al completo, con los dos libros que faltaban entonces, Comércio com Fantasmas (2014) y Anjos Necessários (2015), bajo el título general de Palimpsesto (Oporto, 2016).

Gil Soeiro deja claro desde el prólogo, bajo la significativa rúbrica de Tesis para una Poética Palimpséstica, que su planteamiento bebe, formal y materialmente, de la melancolía de Walter Benjamin sobre las ruinas de un origen que, en un sentido muy amplio, el pensamiento postestructuralista -más derrideano que foucaultiano en este caso- ha dejado desmantelado.

La poética de Soeiro no es escéptica ni desesperada. Más bien, ensaya bucles rítmicos y estructuras férreamente rizomáticas -como los 120 poemas del conjunto, divididos en treinta por cada libro- entre los dos pronombres personales que me atrevería calificar en su caso de im-propios: yo y tú. La base de su diálogo radial es, pues, hermenéutica. En él resuenan ecos celanianos, más próximos a P. Szondi que a H. G. Gadamer. ¿Qué queda tras la inscripción en el discurso de una voz que, al enunciar, traza su ausencia?: “Toda palabra es ya un inicio tardío. Escribir es desmantelar la quimera del origen, desenmascarar la fábula de lo inaugural”.

Me propongo, pues, adentrarme brevemente en esta dialéctica de imposible potencia por un sendero secundario que remite, paradójicamente, a otro origen que no es el de la (post)modernidad con el que continuamente sus poemas dialogan en un tenso contrapunto: de F. Pessoa a T. S. Eliot, entre P. Klee y M. Chagall. Me refiero al mundo clásico que, expropiado, regresa fantasmal para exigir el rescate -la venganza desposeída- de su olvido.

El poeta, como un Odiseo órfico, se aventura tras la máscara del decir donde a la fábula de un deseo ausente se opone una resistencia que abre una reescritura que, en ruinas aunque no inacabada, no se da por vencida. Soeiro define con exactitud este movimiento: “El sentido no tiene fin. Porque en el comienzo está la ruina, el sentido está siempre por venir”. A lo lejos oigo la respiración de M. Blanchot como un Bóreas victoriosamente derrotado: “La esencia de la literatura es escapar a toda determinación esencial, a toda afirmación que la estabiliza o incluso la realiza; no está jamás ya allá, está siempre por reencontrar o por reinventar”.

La lectura de Comércio com Fantasmas me ha dejado un sabor a palimpsesto de literatura latina. La lección de Ovidio, que ya señalaba en mi reseña a Bartlebys reunidos, se me hace más perentoria en estos poemas que intentan tejer, como indica el subtítulo, una epistolografía espectral. No me refiero tanto a las Heroidas como a ese libro extrañamente ausente, que no desaparecido, de los gustos actuales como es Tristia, que es un epistolario de destinatario incierto, en domicilio fugaz. En él el amor y el exilio conjugan una cópula que se consuma interrumpida.

El género de la carta abre un espacio, que más allá de su temática sobre el amor y la amistad, ensaya la capacidad de la palabra poética por saltar sobre el discurso de la identidad del emisor y su destinatario, que es como el mar que separa el inhóspito Ponto de la perdida Roma. Radicalizada, cada carta es el esbozo de unos rostros que se disuelven en la gramática de las caricias evaporadas por la mano que tinta – que mancha- el mapa de sus sentidos por venir.

Incipit

De fantasma para fantasma,
escribo para decirte que hay
palabras mudas que nos desnudan.
Secretos que permanecerán entre nosotros.
Entretanto, quizás la vaga certeza de
que no existimos llegue a compensar
el miedo de cambiarnos en desiertos de luz.
Quedaremos en espera uno del otro:
murmurando confidencias y mintiendo
absoluciones como quien ofrece al viento
la eternidad de incontables cartas vacías.
Cartas como besos escritos que jamás
llegarán al abrigo de su puerto.
Me quedo aquí, en este pedazo de papel,
aguardando, como si fueses camino.

(Ricardo Gil Soeiro, Comércio com Fantasmas)


Desde este punto de partida, el lector, amante espectral, acaba sobrescribiendo su nombre sobre la interrogación que el poema cierra a tientas, entre los paréntesis que se desbordan incluso en una escritura poemática. A diferencia de F. Pessoa, no es sólo el poeta sino el lector quien finge en su silencio el silencio que, dolorido, no guarda aquel: “Bien vistas las cosas, es muy parecida a la poesía el arte epistolar: la pasión por el vacío, la propensión a las palabras que encienden soledades, la puesta en escena de una siempre inacabada conversación entre fantasmas”.

La naturaleza de estos fantasmas es, en último término, angélica. El ángel de Gil Soeiro tutela el comercio espectral de unas marionetas que se abstienen de ser y que, por ello mismo, inscriben de nuevo las letras de posibles sentidos sobre aquello -el poema- que, inanimado, queda como huella de una epístola errante. Repito que su ángel no es rilkeano sino que conjura, melancólico, el apocalipsis inmanente de Benjamin.

Es constante, en su imaginería y hasta en el moldeado de sus reflexiones en prosa, la remisión a las Tesis sobre la historia, entre las que sobresale, además del famoso comentario dedicado al ángelus novus de Klee, su comienzo con la figura de un autómata movido escondidamente por un enano jorobado que era maestro en ajedrez. Si el mesianismo de Benjamin alegorizaba la teología proscrita del materialismo histórico, Gil Soeiro interroga entre los restos del siglo XX las posibilidades apenas afloradas del “tiempo del ahora”.

En la figura del ángel, como el eclipse de la imaginación solar de Occidente, puede acaso, finalmente, explicarse la ausencia de las trazas daimónicas de Grecia: “Simplemente amo todo lo que / jamás me podrá pertenecer. / Digo amor porque no conozco / otra palabra para belleza”. A la belleza terrible que intuyen estos poemas, que bucean en E. A. Poe y Wallace Steven o en Heiner Müller o Wim Wenders, de alguna manera estremecedora podrían aplicarse, como un epitafio, las palabras con que Allan Bloom define la vida filosófica de Sócrates: “puede contener todas las formas de vida, pero en un sentido que es totalmente ajeno a quienes la llevan. Es justicia sin la ciudad, piedad sin dioses, Eros sin cópula ni reciprocidad”.

La Chute de l’Ange, 1941: Marc Chagall

Caemos una y otra vez.
Somos la propia caída en estado puro.
Y si acaso llegamos a volar muy alto,
luego regresamos al caos del mundo,
donde escenificamos, sin ingenio, el infeliz
destino de un Ícaro demasiado soñador.
Guardamos dentro de las venas el vago
recuerdo de un paraíso perdido.
Nos persigue la desnudez de la nostalgia,
la oscuridad de una insoportable tristeza.
Caemos siempre.
Una y otra vez.

(Ricardo Gil Soeiro, Anjos necessários)



Sin orígenes, la conjetura de la caída es abismal.