sábado, julho 31, 2010

Conto da Travessa das Musas, por Andreia Brites, Os Meus Livros [Agosto 2010]


João Pedro Mésseder cultiva a metáfora, o sentido figurado, o regionalismo ou arcaísmo, sem medo de ser incompreendido pelas crianças que o lêem. Esta exigência não se tem verificado negativa, bem pelo contrário. Uma razão possível e verificável neste livro ilustrado, é a sinceridade e afectividade que este discurso transpira.
Há um pacto de proximidade que se estabelece logo no inicio: esta é uma história que aconteceu há muito tempo no Porto.Há um menino, privado por razões sociais, do convívio livre com as pessoas da rua, que deseja poder uma dia abandonar a janela de sua casa, correr e andar num carro de esferas. Apesar de todas as referências a uma época distante, o sentimento de liberdade, de risco, e de deslumbramento com o mundo que nos rodeia é intemporal.
As ilustrações, compostas por colagem e desenho a carvão, destacam elementos que ajudam a identificar elementos menos comuns.
     Andreia Brites, Os Meus Livros [Agosto 2010]

Das coisas boas do Facebook

Sabe bem ler isto, vindo de uma Bad Girl :-)


 

Alfabeto Adiado, de José Ricardo Nunes, por José Mário Silva, no Expresso

**** Alfabeto Adiado, José Ricardo Nunes

Jurista ele formação, José Ricardo Nunes publicou cinco livros de poesia e dois de ensaio antes de se estrear na narrativa curta com "Alfabeto Adiado": 23 textos em que a linguagem está no centro de tudo, substituindo-se por vezes a própria realidade.   
Nestas histórias fugidias, contadas sempre na primeira pessoa do singular (um "eu" difuso e problemático), os narradores assumem "uma existência exclusivamente literária" que não apenas os afasta do "curso de uma vida normal" como os precipita em abismos de perdição e estranheza. Uns descarrilam, outros apagam-se sem se perceber porquê, ou desligam-se gradualmente do que os rodeia (a família, o emprego, as rotinas quotidianas). Ficam suspensos, presos no lodo com água pela cintura, escondidos em buracos para sobreviver à desolação do mundo, encostados as cordas a "esmurrar o vazio". Há neles um impulso itinerante, um talento para a deriva que os empurra através da Europa, uma fome de redenção impossível de satisfazer. De uma forma ou de outra. 
Sentem-se deslocados, desfasados, em "dissonância" com o "fluir do tempo". Depois, nos seus casulos de solidão, escrevem sobre o que lhes acontece: os tormentos obsessivos, o brusco resvalar para a loucura, É uma escrita em "selvagem propagação" que tanto se aproxima do rigor cortante de Robert Walser como do engenho barroco de Borges (por exemplo, no exercício metafísico de  'Repetição da Minha Vida ou, mais explicitamente, em “O Livro”, que inverte os pressupostos da célebre história de Pierre Menard). Incómodo, imperfeito, cheio de arestas, literatura pela literatura.  "Alfabeto Adiado" surge a contracorrente na ficção portuguesa actual. E esse é o maior elogio que se pode fazer. 
                  José Mário Silva, Rev. Actual, Expresso, 31 de Julho de 2010

quinta-feira, julho 29, 2010

A Biblioteca vai à praia ... e leva O AQUÁRIO de João Pedro Mésseder (texto) e Gémeo Luís (ilustração)






Desde o passado dia 1 que na Praia do Molhe está instalado o Bibliocarro, um serviço das bibliotecas municipais, em parceria com a STCP. Trata-se de uma biblioteca itinerante, que funciona durante este mês na Praia do Molhe, entre as 9h00 e as 12h30. Livros, jornais, revistas, música, multimédia e internet estão ao dispor dos veraneantes. 

Durante a cerimónia foi prestada uma homenagem à escritora Matilde Rosa Araújo, recentemente falecida, através de um momento de leitura de alguns dos seus mais belos poemas. As crianças assistiram ainda a uma "hora do conto" musicada. O livro "O Aquário", de João Pedro Mésseder, da Deriva Editora, foi a obra contada por Maria Adelaide Silva, acompanhada pelo percussionista Juca, de origem cabo-verdiana.
[ler a notícia na íntegra no site da Câmara Municipal do Porto]




O AQUÁRIO, obra recomendada pelo PNL  para o 3.º ano, vai conhecer um 4.ª edição em Setembro.


Recensão Casa da leitura:


Esta narrativa de João Pedro Mésseder, com ilustrações de Gémeo Luís, recria literariamente a temática da diferença, apelando, de forma implícita, para a tolerância e aceitação do outro. O aquário, enquanto espaço fechado e limitado fisicamente, gera conflitos e metaforiza, de alguma forma, a vida em sociedade, também ela dominada muitas vezes por lutas pelo poder e pelo domínio dos outros. A resolução positiva da intriga segue-se à necessidade de colaboração entre todos de modo a resolver problemas comuns. As ilustrações de Gémeo Luís, além de cristalizarem algumas das cenas dominantes da narrativa, iniciam o leitor no jogo intertextual ao promoverem o diálogo com outras obras dos mesmos autores, como é o caso de O g é um gato enroscado.

Avanço de Temporada: as capas de "Magic Resort" de Florencia Abbate e "Nenhum Lugar" de Ricardo Romero


 "Magic Resort" de Florencia Abbate e "Nenhum Lugar" de Ricardo Romero estão quase, quase a chegar.
Para já. ficam as capas.

quarta-feira, julho 28, 2010


[a entrevista a Paulo Kellerman foi retirada do blogue Novos Livros]

1- O que representa, no contexto da sua obra, o livro «Chega de Fado»?
R- É a quarta colectânea de contos que publico na Deriva. Tecnicamente, continuo a tentar diversificar e explorar as potencialidades das formas mais breves de narrativa, seja o conto, a micro-narrativa, o diálogo dramático. Tematicamente, perpassa por todo o livro – o que acontece pela primeira vez, de modo consistente – um certo desejo de indignação e insurreição, que caracteriza as personagens (normalmente apáticas e conformadas, quase desistentes) mas que também pode ter uma leitura mais abrangente e ser lido no contexto do nosso actual momento social. Daí o título do livro, no sentido em que o termo “fado” pode designar, de forma abrangente, um certo estado de espírito melancólico e dramático, resignado, uma persistente lamúria e passividade, uma desistência sofrida, uma saudade passiva do que foi.

2- Qual a ideia que esteve na origem do livro?
R- O livro é constituída por dezenas de estórias que foram escritas ao longo dos últimos dois anos e, na sua maioria, divulgadas no blogue. Parti do conceito do título e seleccionei, sequenciei e, por vezes, reescrevi todas essas estórias de forma a formar os dez “capítulos” que constituem o livro; cada um destes “capítulos” é composto por um número variável de contos que retratam diversos momentos do relacionamento entre as personagens que integram esse “capítulo” e tendem a derivar para uma intenção de resolução, de superação, de confrontação. O livro nunca deixa de ser uma colectânea de contos, onde cada estória é autónoma e vale por si, mas encerra igualmente uma leitura mais subliminar, já que cada um dos “capítulos” pode ser visto como um esquiço de uma novela em potência.

3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R- Estórias que vou colocando no blogue, uma peça de teatro e os primeiros alinhavos de um romance que não sei se virá a ser efectivamente escrito.




Os livros do Paulo na Deriva:

 


terça-feira, julho 27, 2010

"LOBISOMEM " - Estranhas Criaturas de Henrique Manuel Bento Fialho

LOBISOMEM 
Não preciso de luas cheias para que os uivos se soltem da garganta e sigam disparados contra as estrelas. Basta-me o quarto minguante das iniquidades, a lua gibosa dos hipócritas, a mediocridade dos cretinos aleitados pela sagrada vaca da pesporrência.
...Na verdade, não careço de dia treze para que o azar me bata à porta e entre sem sequer eu ter oportunidade de perguntar quem bate. Queixar-me não posso, mas dói quando o pêlo irrompe dos poros, as unhas saltam afiadas para fora dos dedos, os dentes procuram a carne que satisfaça o apetite.
...Quem pensar que não dói, desengane-se. Pago a raiva com uma incomensurável solidão. Mais ainda quando dizem estar comigo todos os crápulas de latido dissimulado. Debaixo do meu uivo, mal podem imaginar sua ínfima condição de cachorros domésticos.
Henrique Manuel Bento Fialho, in Estranhas Criaturas


O seu livro aqui.

segunda-feira, julho 26, 2010

Miguelanxo Prado


Miguelanxo Prado é argumentista, ilustrador.  Nasceu em A Coruña, 1958. Estudou arquitectura e antes de se votar à BD dedicou-se à pintura e à escrita. Revelação da BD espanhola em 1988 com o seu primeiro álbum Mundo Cão, a sua carreira tem sido recheada de sucessos. Em 1993 publica o álbum Traço de Giz, que recebeu o prémio dos livreiros BD 93, o Alph-art do melhor álbum estrangeiro de Angoulême e o prémio especial do Festival de Sierre em 1994. Em 1995 estreia-se na BD infantil com a adaptação da célebre obra de Prokofiev (1936) “Pedro e o Lobo”. Da sua versátil carreira fazem parte outras obras notáveis como Fragmentos da Enciclopédia Délfica, Stratos, Crónicas Incongruentes, Quotidiano Delirante (3 volumes), e Tangências. Com um traço esplêndido, uma visão nova da perspectiva das cores e argumentos plenos de pertinentes críticas humanas, este autor galego é já um dos nomes consagrados da BD internacional. O filme De profundis, uma história de mares, cetáceos e tormentas com música do compositor Nani García, foi proposto para os Prémios Goya como melhor longa-metragem de animação de 2006.  

Na Deriva, Miguelanxo Prado  ilustrou Perigo Vegetal, de  Rámon Cáride.

domingo, julho 25, 2010

O Homem que Via Passar as Estrelas | Deriva Editores





O Homem que Via Passar as Estrelas, de Luís Mourão, é uma viagem ao centro dos planetas do Sistema Solar, guiada pelo grande astrónomo da Humanidade, Sir Isaac Newton.
O descontentamento dos planetas é geral, e um de cada vez, procuram Sua Majestade, o Sol, cada um com o seu protesto. Em vão. É noite e Sua Majestade não recebe visitas. Newton é acordado com a chegada repentina destes planetas que afirmam que dali não saem sem serem ouvidos.

O Homem que Via Passar as Estrelas é um texto dramático, com ilustrações de Sandie Mourão e com prefácio de Máximo Ferreira. E será acompanhado de um dossiê/Kit de observação de estrelas da autoria de Paulo Simões.

Em breve, mais notícias sobre O Homem que Via Passar as Estrelas.

Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos, Pascal Quignard


"Há que enfrentar esta aversão. Pode-se defender hoje em dia o conector ou a moda consiste nos brancos.A regra parece ser o texto esfarrapado. Pelo menos na arte moderna o efeito de descontínuo substituí o efeito de ligação. Aliás, o próprio procedimento parece contraditório. Para começar, o fragmento coloca uma dupla dificuldade que não é confortável ultrapassar: a sua insistência satura a atenção, a multiplicidade adoça o efeito que a sua brevidade aguça." (pg. 23)
***

"G. Agamben assinala que desde Miguel Ângelo o inacabamento é teimosamente exaltado pela arte e que se pode explicar este gosto por uma espécie de prazer derivado do fetichismo. Schlegel mostrava que, como as obras que admirávamos mais - quer dizer, desde a Renascença, as obras da Antiguidade - tinham chegado no estado de fragmentos, as obras dos modernos procuravam assumir esse estado logo ao nascerem, imputando o fascínio que exercem à fragmentação e julgando que estes pedaços, que evocavam totalidades indizíveis e ausentes ao provocarem o desejo do todo, ampliavam a emoção."(pg. 45)


Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos, Pascal Quignard
Para ler mais, clique aqui.

A colecção Pulsar dirigida pelo Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, inclui textos relevantes em torno da literatura e de outras artes. Estes pequenos livros, que se podem ler numa viagem de comboio ou a uma mesa de café, pretendem emitir um sinal luminoso, sentidos de um pensamento, fulgurações de palavras. Como os enigmáticos e distantes pulsares.

sábado, julho 24, 2010

Conto da Travessa das Musas, de João Pedro Mésseder (texto) e Manuela São SImão (ilustração) no Público

Rita Pimenta destaca , hoje, no Público, Conto da Travessa das Musas, de João Pedro Mésseder (texto) e Manuela São SImão (ilustração).

Uma história passada na cidade do Porto, num bairro popular. João, o protagonista, "vivia no primeiro andar de um prédio novo mas baixo, numa rua estreita de casinhas velhas, habitadas por gente pobre, onde pelo fim da tarde se ouvia, por vezes a corneta de um azeiteiro, sempre acompanhado do seu burro: Travessa das Musas: assim se chamava a rua nesse tempo". Um tempo que o autor João Pedro Mésseder descreve com muita clareza, recorrendo a palavras por muitos esquecidas (ou desconhecidas): locanda, zurzir, rapazio, impropérios, bulhas. [Rita Pimenta]
 

sexta-feira, julho 23, 2010

Avanço de Temporada: Florencia Abbate e Ricardo Romero na Deriva



Em Setembro, na Deriva, Florencia Abbate, com Magic Resort e Ricardo Romero, com Ninguna Parte

Florencia Abbate nasceu em Buenos Aires, no dia 24 de Dezembro  de  1976. Licenciada em Letras pela
Universidad de Buenos Aires - UBA, é jornalista cultural e autora dos romances  El Grito e Magic Resort.


Florencia Abbate es una de las escritoras más jóvenes y prolíficas del panorama literario actual. Supo desde fines de los años noventa, proyectar con sus libros un claro ajuste entre la búsqueda experimental y el empleo de formas clásicas. Sin ser netamente rupturista, Abbate es una autora posmoderna. Así lo definen algunos de los conceptos esenciales del posmodernismo como: la indeterminación, la incertidumbre y sobre todo la fragmentación que constituyen algunos aspectos medulares de su narrativa. La autora de El grito recurre a estos y otros elementos, para desarrollar sus personajes y modos de escritura con notable fluidez. El resultado es admirable, dado que su prosa articula el pensamiento de nuestra época. Ecléctico, vertiginoso, tecnocrático; y lo transcribe en una suerte de “realismo delirante”, como ella lo prefiere definir. De este modo, sus libros revelan las múltiples capas que estructuran los vínculos humanos actuales, en una era de constantes transformaciones. La literatura de Florencia Abbate es un audaz espejo que pone al descubierto con objetividad las deficiencias de la moral contemporánea. (continua)


Entrevista a Florencia Abbate   aqui.




Ricardo Romero nasceu no Paraná, em 1976. Licenciado em Letras pela Universidade de Córdoba, vive, actualmente, em Buenos Aires. Ninguna Parte é o seu primeiro romance. Dirige a revista literária Oliverio.
Em 2006, publicou um livro de contos, Tantas Noches como sean necesarias. Em 2008 publicou El síndrome de Rasputín e este ano Los bailarines del fin del mundo,  obras de vivem nas margens do    fantástico, do absurdo e do policial.

"El silencio y la calma del desierto sólo eran interrumpidos por el chasquido de su encendedor. Lo encendía y lo ponía frente a sus ojos esperando que el viento lo apagara. Cuando el viento lo apagaba volvía a encenderlo y la llama se alzaba por un instante, vibrando en su anaranjada transparencia, hasta que la brisa la apagaba otra vez. "Tal Vez debería comprarme una pipa" se dijo Mauricio, "dicen que es una buena forma de dejar de fumar". Esto era lo que Mauricio se decía. En tanto, todo el desierto parecía estar esperando que su encendedor se quedara sin gas".
Entrevistas a Ricardo Romero aqui e aqui.

Tradução de Patrícia Gomes.

quinta-feira, julho 22, 2010

Avanço de temporada: O Homem que Via Passar as Estrelas, de Luís Mourão




O Homem que Via Passar as Estrelas, de Luís Mourão, é uma viagem ao centro dos planetas do Sistema Solar, guiada pelo grande astrónomo da Humanidade, Sir Isaac Newton.
O descontentamento dos planetas é geral, e um de cada vez, procuram Sua Majestade, o Sol, cada um com o seu protesto. Em vão. É noite e Sua Majestade não recebe visitas. Newton é acordado com a chegada repentina destes planetas que afirmam que dali não saem sem serem ouvidos.

O Homem que Via Passar as Estrelas é um texto dramático, com ilustrações de Sandie Mourão e com prefácio de Máximo Ferreira. E será acompanhado de um dossiê/Kit  de observação de estrelas da autoria de Paulo Simões.

Sobre o valor do  TEATRO na Educação, diz Carlos Fragateiro (e nós concordamos):


Se nos países em vias de desenvolvimento se utilizaram e utilizam os instrumentos e a linguagem teatral para lançar campanhas de informação e de prevenção ao nível dos temas primários, porque é que no interior dos chamados países desenvolvidos não poderemos utilizar os mesmos instrumentos e a mesma linguagem, a do teatro, para lançar toda uma campanha de agitação e desafio nos domínios da inteligência e da imaginação?
Falamos naturalmente do retomar da ideia de um Teatro Didáctico e/ou de Intervenção, de um teatro que conte histórias fantásticas onde o único limite seja o infinito, histórias com capacidade de despertar e alimentar o imaginário de cada espectador e de o motivar a desenvolver as suas capacidades de associação e de descoberta, a resolver enigmas e a responder a problemas a que é necessário dar resposta para que as histórias avancem e os conflitos se resolvam. Uma prática teatral que seja capaz de confrontar os espectadores com histórias e personagens que têm a procura da invenção como objecto central do seu percurso, histórias que mostrem como essa capacidade de invenção é fundamental para o desenvolvimento do ser humano, de todos os seres humanos. No fundo, estamos à procura de uma prática teatral que conte histórias que nos emocionem, de um teatro que provoque e obrigue a trabalhar o cérebro, de um teatro que seja o Alcoitão dos neurónios, de um teatro capaz de ser um espaço privilegiado para a cerebroterapia. (daqui)

Em breve, mais notícias sobre O Homem que Via Passar as Estrelas.

quarta-feira, julho 21, 2010

Encontros Luso-Galaico-Franceses (actas)




A Deriva Editores acompanha a  memória dos Encontros Luso-Galaico-Franceses, editanto as comunicações destes  encontros que acontecem, todos os anos, em Novembro, na Biblioteca Municipal Almeida Garrett.


Grandes autores para pequenos leitores 
–  José António Gomes
Como o próprio título indica, a obra Grandes Autores para Pequenos Leitores – Literatura para a Infância e a Juventude: Elementos para a Construção de um Cânone propõe uma releitura crítica de um significativo conjunto de obras literárias de potencial recepção infantil e juvenil publicadas nas línguas portuguesa, galega, inglesa e alemã. Pretende-se, com este trabalho, pôr em evidência não só a elevada qualidade estética de tais obras, mas também a sua relevância para a própria evolução da chamada literatura para crianças e jovens, factores que contribuíram para que, ainda hoje, continuem a ser merecedoras de leitura pelas novas gerações e objecto de diferentes abordagens críticas.
Do Livro à Cena 
– Sara Reis Da Silva, Marta Neira Rodríguez
Neste volume reúnem-se os trabalhos apresentados nos XIII Encontros Luso-Galaico-Franceses do Livro Infantil e Juvenil, realizados na Biblioteca Municipal de Almeida Garrett, no Porto, entre os dias 15 e 17 de Novembro de 2007. Sob o tema ? Do Livro à Cena?, vários especialistas, oriundos de diferentes realidades culturais e linguísticas, reflectiram sobre o texto dramático para a infância e juventude, dando, igualmente relevo à sua concretização em espectáculo teatral. A publicação em livro das ideias partilhadas durante os dias dos Encontros surge como uma forma de estimular o interesse pelo teatro para a infância, mantendo viva a reflexão sobre uma prática que merece atenção dos investigadores e do público em geral. 

A memória nos livros: História e histórias
– Ana Margarida Ramos, José António Gomes e Sara Reis Da Silva

Na presente obra, encontram-se compilados artigos de autoria variada, que representam as versões escritas da pluralidade de intervenções que integraram a iniciativa em questão. Correspondentes, pois, às actas dos 14ºs Encontros Luso-Galaico-Franceses, este volume dá conta dos trabalhos aí concretizados pelos participantes – uma vez mais, nesta edição, oriundos de três espaços linguísticos diferentes – e dos seus contributos distintos para a abordagem, reflexão e divulgação da temática em epígrafe e, genericamente, da problemática do livro infantil e juvenil. Recorde-se que, nestes Encontros, através de conferências – asseguradas por universitários/investigadores – e debates, ateliês (por exemplo, de promoção do livro e da leitura ou de ilustração) e encontros para o público adulto e infantil, exposições (de uma grande variedade de ilustrações) e, mesmo, venda de livros, procurou suscitar--se, à semelhança das edições anteriores, a troca reflectida e aberta de saberes e experiências do domínio da literatura e ilustração para crianças e jovens, bem como da promoção do livro e/ou mediação de leitura

terça-feira, julho 20, 2010

Era uma vez....à Deriva (com rumo certo, desde cedo!)

  
Conto da Travessa das Musas, Vozes do Alfabeto, O Aquário são três livros infantis que  têm muito  para ensinar. Um mesmo autor - João Pedro Mésseder - e três ilustradores diferentes: Manuela São Simão, João Maio Pinto  e Gémeo Luís.
 
O Conto da Travessa das Musas, o mais recente título, é uma viagem por um tempo antigo - uma história que se passou no Porto há muitos anos.
Uma história de um menino sem tempo para ficar quieto. Uma história que fala de mercearias, de lojas de miudezas, de carrinhos de linhas e fivelas, de José Gomes Ferreira, de um polícia gordo e pachorrento, de carrinhos de madeira e de flocos de neve (os rebuçados...). 

Uma história de um tempo em que os meninos brincavam na rua. Uma história que se passa no Porto, no centro do Porto com o João. 
 Uma história que vale bem a pena o desafio de procurar a Travessa das Musas.



«Álbum poético de dimensões reduzidas, Vozes do Alfabeto é mais um exemplo da criatividade associada à exploração das potencialidades da língua portuguesa, das suas grafias e dos seus sons. As letras do alfabeto são o mote para um conjunto de poemas muito divertidos, onde os efeitos sonoros são constantes. Herdeiros das rimas infantis, em particular das lengalengas, dos trava-línguas e de outros géneros e formas da tradição oral, os textos exploram uma dimensão lúdica da literatura ao mesmo tempo que, implicitamente, promovem o desenvolvimento de competências fonológicas, linguísticas e literárias. As ilustrações, muito coloridas, ocupam as páginas ímpares da publicação e partem do texto que acompanham, ligando a letra aos objectos e/ou personagens. Funcionando quase como um jogo, o pequeno álbum revela-se particularmente adequado para os primeiros leitores.»
Ana Margarida Ramos in Casa da Leitura


O Aquário
Uma história de peixes, cores e sabores para os mais pequenos. Um aquário é também um mundo em miniatura, onde se jogam relações entre iguais e diferentes, novos e velhos, e onde se geram preconceitos e ideias feitas. As ilustrações ajudam a compreender situações e personagens, sem deixarem de construir um cenário onírico e sedutor.

O Aquário  tem evidente recursos para a leitura orientada na sala de aula. Aprovado e recomendado pelo Plano Nacional de Leitura para o 3º ano, tem uma amplitude muito maior de intervenção nas escolas como comprovam as experiências descritas aqui aqui aqui e aqui

José Ricardo Nunes | Câmara Clara | 28 de Julho


Dia 28 de Julho, José Ricardo Nunes à conversa no Câmara Clara a propósito de Alfabeto Adiado.
 
A emissão diária de Câmara Clara destaca o o que de mais relevante está a acontecer: da música ao teatro, do cinema à literatura, da dança às artes visuais. Ideias úteis para usar todos os dias (em não mais do que seis minutos)

Apresentação de "Chega de Fado", de Paulo Kellerman - dia 24/7 - Marinha Grande

Apresentação de  Chega de Fado, de Paulo Kellerman, dia 24 de Julho, pelas 21.30, no Sport Operário Marinhense (Bar),  na  Marinha Grande.
Dramatização de alguns excertos do livro pelo GATO - grupo Teatral (encenação Pedro Wilson).

segunda-feira, julho 19, 2010

A Mobilização Global seguida de O Estado de Guerra de Santiago López-Petit (trad. e notas de Rui Pereira)



A nova questão social: o mal-estar
Os efeitos que a mobilização global produz sobre os seus sujeitos — sobre os sujeitos que lhe estão sujeitados — são numerosos e novos. Basta ver a mudança no tipo de doenças ligadas ao trabalho. Na actualidade, as mais numerosas têm a ver com alguma forma de mal-estar psíquico. Não em vão, 70 por cento das baixas laborais de longa duração correspondem a transtornos mentais. A imposição do «ser precário» manifesta-se nas chamadas doenças do vazio: depressão, insónia, ansiedade… São as novas enfermidades próprias de uma sociedade na qual a norma já não se baseia na culpabilidade, mas na responsabilidade. Uma sociedade que enterrou a autonomia operária, substituindo-a pela autonomia do Eu, ou seja, pelos contínuos apelos a que sejamos autónomos e responsáveis. A este
sofrimento que poderíamos englobar sob o rótulo de «miséria da abundância», haverá que acrescentar, indefectivelmente, a própria «abundância da miséria» que sob as faces mais tradicionais (fome e morte) alastra pelas cidades gueto globais e pelas periferias das grandes cidades. A mesma mobilização global, que faz coexistir a miséria da abundância com a abundância da miséria, tritura as nossas vidas.Vida triturada quer, aqui, dizer que a mobilização global produz mal-estar e sofrimento autênticos. Não se trata de sermos expropriados da nossa vida (ainda que evidentemente não sejamos seus donos), mas sim do facto de a própria vida ser simplesmente aniquilada: reduzida a nada. Mediante a generalização da impotência e da indiferença, a nossa vida é separada do querer viver, o que implica para a vida, a sua própria perda enquanto fonte de valor. in A Mobilização Global seguida de O Estado de Guerra, Santiago López-Petit, Deriva Editores, 2010.


Encomendar aqui.

domingo, julho 18, 2010

Futuro Primitivo, de John Zerzan


 O Futuro Primitivo é, para nós, a obra mais marcante de John Zerzan. Para além de reflectir uma revisitação teórica da Pré-História, ataca violentamente as ideias preconcebidas da antropologia oficial e dá-nos a possibilidade de encontrar uma ténue saída para a catástrofe iminente.
 
«A divisão do trabalho, que tanto contribuiu para nos submergir na crise global do nosso tempo, age diariamente para nos impedir de compreender a origem do terror do presente. Mary Lecron Foster (1990) peca, certamente por eufemismo, quando afirma que, hoje em dia, a antropologia está «ameaçada por uma fragmentação grave e destrutiva». Shanks e Tilley (1987) fazem eco de um problema semelhante: «o objecto da arqueologia não é somente o de interpretar o passado, mas de transformar a maneira como é interpretado em benefício da reconstrução social actual.» Evidentemente, as Ciências Sociais, por si só, limitam a perspectiva e a profundidade da visão necessária que permitiria uma reconstrução como esta. No capítulo referente às origens e ao desenvolvimento da Humanidade, o leque de disciplinas e de sub-disciplinas cada vez mais ramificadas – antropologia, arqueologia, paleontologia, etnologia, paleo-botânica, etno-antropologia, etc. – reflecte o efeito redutor e incapacitante que a civilização personificou desde o seu início.No entanto, a literatura especializada pode dar-nos uma ajuda bastante apreciável, na condição de a abordar com método e vigilância apropriadas, na condição de decidir não ultrapassar os seus limites. De facto, as deficiências destas maneiras de pensar mais ou menos ortodoxas correspondem às exigências de uma sociedade cada vez mais frustrada. A insatisfação da vida contemporânea transforma-se em desconfiança perante as mentiras oficiais que servem para legitimar tais condições de existência; ela permite, assim, desenhar um quadro mais fiel ao desenvolvimento da humanidade. Explicou-se, exaustivamente, a renúncia e a submissão que caracterizam a vida moderna pelas contingências da «natureza humana». No fim de contas, o mito da nossa existência pré-civilizada, pretensamente vivida por privações, brutalidade e ignorância acabou por fazer parecer a autoridade como uma benfeitoria que nos salvou da selvajaria. Invoca-se sempre o «Homem das Cavernas» e o «Homem de Neanderthal» para nos lembrar como nós seríamos sem religião, Estado ou trabalhos forçados.(...)» Futuro Primitivo, de John Zerzan

sexta-feira, julho 16, 2010

"Para uma poesia Pobre", de Robert Bréchon (excerto sobre a poética de Kenneth White)




"Ramos Rosa chamou à antologia das suas obras A palavra e o lugar. É verdade: ele é por excelência o poeta do lugar. Kenneth White seria mais o poeta da ausência ou, como ele diz, do não-lugar, ou seja da busca perpétua de um lugar. «Os poetas viajam» dizia Michaux. Kenneth White, poeta escocês que acabou por fixar residência em França, primeiro no sopé dos Pirenéus e depois na Bretanha, não cessou nunca de vagabundear através da Europa, da Ásia e da América. Escreve em inglês e traduz-se a si próprio para francês. Ligado à sua cultura céltica maternal, fascinado pelo Oriente, mas tendo atravessado os grandes movimentos intelectuais europeus, sente-se um «espírito sem morada». Toda a sua obra é uma espécie de anabase: a sua itinerância não é nem exploração nem conquista. Segue o preceito do mestre Eckhart: «avança no teu próprio território». O que procura não é o lugar do mundo. «Estou sempre em marcha, indo a parte nenhuma, em casa. A viajar assim, onde vou? A nenhum sítio. É difícil, mas chegarei um dia. Parte nenhuma é toda a parte, é por mim»).
Não que Kenneth White não sinta a realidade do mundo.Pelo contrário, existem poucas obras tão sensoriais e tão sensuais. Mas o poeta não se deixa nunca fechar, colar à sensação. Paisagens, comidas, corpos femininos, tudo é signo, tudo remete para outra coisa. Kenneth White afronta o mundo com o seu corpo, mas a experiência que tem dele é cosa mentale. Nenhum escritor, tanto quanto me parece, soube a este ponto fazer convergir as duas vias da arte moderna, a de Théophile Gautier («Sou um homem para quem o mundo exterior existe») e a de Novalis («O caminho vai para o interior»).
 
Tant de choses ne sont plus
il ne reste que le soleil

que le soleil là-haut
blanc or,et nu

pas libre sans doute
mais plein de sa propre nécessité

c'est le matin d'un monde
et je suis là comme un roc à respirer

à respirer vers le soleil.

(Yoga du Soleil)

«A present l'espace
 immense est tout autour de moi
et toi fleur d'or tu es en moi

l'art d'Orient dont j'ai fait mon étude
c'est ta chair et tes os
la courbe de ton oeil
ta langue et sa musique

en face
de tes seins nus
la religion perd toute réalité

et la beauté lisse
de ton ventre amoureux
accomplit la philosophie»

(Fille de connaissance)

O não-lugar que Kenneth White procura, o supremo, essencial, de que todos os outros são apenas o reflexo ou o resto, é por ele chamado o mundo branco ou a terra diamante. É ao yoga que vai buscar a via que aí conduz.
  
Mas Kenneth White é um yoghi em estado selvagem, sem disciplina, sem método, sem outras técnicas além das da poesia. E é também ao Oriente que vai buscar a forma poética que constitui a via para o mundo branco. Essa forma, que está para a grande poesia ocidental como um jardim japonês está para o parque à francesa, é feita de jorros, de estilhaços, de rupturas e de silêncios. O seu modelo é o haiku japonês ou o sidjo core ano. O poema já não é um continente mas um arquipélago. E lerei, para ilustrar esta estética, aquele dos seus poemas onde, tanto quanto me parece, a economia de meios é levada ao extremo; é o poema intitulado Matin de neige à Montréal:

«Certains poemes n'ont pas de titre
Ce titre n'a pas de poeme
Tout est là dehors»

(it's all out there)

Existe em Ramos Rosa qualquer coisa de luminoso, existe em Kenneth White qualquer coisa de aéreo. Nada disso acontece em Alain Morin. Ele é o poeta da clausura ou, o que vem dar ao mesmo, do exílio. Ele é, como diz o poema de Saint-John Perse com o mesmo título, «Etranger sur toutes les greves de ce monde... Hôte précaire à la lisière de nos villes». O mundo terraqué de Ramos Rosa, o mundo branco de Kenneth White, por muito «pobres» que sejam, são ricos ao lado do de Morin. A própria natureza está aí ausente; o homem também. Na consciência devoluta não subsistem mais que alguns objectos que vão ocupar todo o espaço e proliferar como um cancro mental."  ( «Para uma poesia Pobre»,  de Robert Bréchon», in Poéticas do século XX, (Coord. Maria Alzira Seixo), Lisboa, Livros Horizonte, 1985)


A Deriva editou O Espírito Nómada, de Kenneth Whit:
«Desde há alguns anos para cá, a palavra “nómada” anda no ar. De um modo vago e que necessita apenas de tornar-se preciso, designa o movimento que se esboça no sentido de um novo espaço intelectual e cultural. Mas nas nossas culturas mediatizadas, cada palavra, de imediato sub-traduzida torna-se pretexto para uma moda. Do que aqui se trata não é de um assunto de moda mas de mundo.»

«O nómada que existe em cada um de nós como uma nostalgia, como uma potencialidade, não tem a noção de identidade pessoal, a «consciência de si» é-lhe estranha. Sem dizer «penso» ou «sou», põe-se em movimento e a caminho faz melhor do que «pensar», no sentido denso da palavra, enuncia, articula um espaço-tempo de múltiplas focalizações que é como que um esboço do mundo.
O movimento nómada não segue uma lógica rectilínea, com um princípio, um meio e um fim. Tudo aqui é meio. O nómada não segue para qualquer lugar, e para mais em linha recta, mas evolui num espaço e regressa muitas vezes às mesmas pistas, iluminando-as e talvez, se for um nómada intelectual, com novas luzes.
Neste livro onde se encontrarão portanto mais peregrinações que problematizações, mais mapas que retratos, o prazer de peregrinar acaba por levar a melhor sobre o desejo de saber (aumentar e renovar o campo do saber) e no final da viagem será menos importante a questão de saber do a de ver no vazio.»
Kenneth White (do Prefácio)

O Espírito Nómada, de Kenneth White





O Espírito Nómada é um livro central da teoria da geopoética de Kenneth White. Meditando profundamente sobre a crise da vida moderna, Kenneth White questiona sem cedências o sentido do nomadismo e da deriva como alternativa de vida. Um sentimento poético baseado na procura e na forte ligação à terra e à natureza. Neste ensaio, Kenneth White, escocês há muito radicado na Bretanha, viaja pelos nomes de vários poetas a fim de dar um sentido político, poético e cultural à vida que nos resta.  


"Se o nómada intelectual que vamos considerar sob formas diversas nestas páginas, for niilista (o «niilista perfeito» de Nietzshe) orientalizante (pesquisador, em última análise de um «Oriente» não situado nos mapas), mundialista (mas que, como Husserl, põe durante muito tempo a tese do mundo entre parêntesis), anarquista (sem bomba nem bandeira), demoníaco (como Sócrates e não como Cagliostro) e errático (dado que nenhuma via é a via completa), é antes de mais um intelectual de novo tipo, móvel e múltiplo, abrupto e rápido, que não pertence a qualquer intelligentsia, não se liga a qualquer ideologia e é de difícil solidariedade, excepto com o universo (e mais - ao filocosmismo pode misturar-se, como o sal na água, um quanta de acosmismo superniilista). Esse novo intelectual não surgiu ex nihilo. Nasceu num dado momento da cultura ocidental e tem uma história. É essa história que eu tentarei trazer à luz nas páginas que seguem."
          in Espírito Nómada,  de Kenneth White

quinta-feira, julho 15, 2010

Utopias Piratas, Peter Lamborn Wilson



«O islamismo, no fim de contas, é o mais recente dos três monoteísmos ocidentais, e contém por isso a sua dose de crítica revolucionária do judaísmo e do cristianismo. A apostasia de um autoproclamado Messias ou de um pobre e anónimo marinheiro seria invariavelmente vista, nesta perspectiva, como um acto de revolta. O islão, em certa medida, foi a Internacional do século XVII – e Salé talvez o seu único e verdadeiro “Soviete”. À primeira vista, Salé aparenta ser um lugar ímpio, um ninho de piratas ateístas e violentos – mas assim que observamos e escutamos com mais atenção, quase podemos ouvir o eco das suas vozes distantes, recortadas em apaixonados debates e exaltadas oratórias. Os textos perderam-se ou talvez nunca tenham existido; era uma cultura oral, uma cultura auditiva… é difícil discernir os seus últimos murmúrios… mas não totalmente impossível!» in Utopias Piratas, de Peter Lamborn Wilson

Peter Lamborn Wilson neste seu recente trabalho, foca a acção corsária da independente República pirata de Salé, durante o século XVII. Corsários, sufis, pederastas, mulheres mouras «irresistíveis», escravos, aventureiros, rebeldes irlandeses, judeus hereges, espiões britânicos, heróis populares da classe trabalhadora e até um pirata mouro em Nova Iorque, emprestam a este livro um ambiente livre constituído por comunidades insurrectas nunca verdadeiramente dominadas e portadoras de uma praxis de resistência social que abalou seriamente os estados europeus. Peter Lamborn Wilson, nascido em 1945 e investigador e poeta norte-americano com vasta obra editada, escreveu «Sacred Drift: Essays on The Margins of Islam», na City Lights e «Scandal: in Islamic Heresy», Autonomedia.

Estranhas Criaturas, de Henrique Manuel Bento Fialho



OPHIUCHUS

   Já ninguém se indigna com o que quer que seja. Toda a gente tem perguntas a colocar, dúvidas a fazer, objecções a levantar. Não haja dúvida, porém, de que já ninguém se indigna com o que quer que seja.
   Houve um tempo em que a indignação se confundia com a ignição, agora ela é apenas o recheio de um saco de tempo perdido. Talvez seja mesmo preferível uma metáfora, uma vestimenta distintiva, maquilhagem a condizer, compras no supermercado.
   Há poetas que citam outros poetas e dizem indignar-me é o meu signo diário. Mas dizem isto com as mãos nos bolsos e os ombros encolhidos. Talvez tenham razão e eu esteja equivocado. Talvez seja preferível afundar a indignação no saco, aconchegar as costas ao conforto da poltrona e exercitar os dedos num teclado.
   Façam-se weblogs, corredores por onde passear a maça inerte da nossa agonia. Afinal, teremos todos um ar muito respeitável à hora da nossa morte. E uma licenciatura também.
                                                           in Estranhas Criaturas, de Henrique Manuel Bento Fialho

Encomende aqui.

terça-feira, julho 13, 2010

"O livro", in Alfabeto Adiado, de José Ricardo Nunes

"À beira da conclusão apercebi-me de que o livro já existia. Descobri-o num canto da prateleira, atrás de umas encadernações luxuosas, coberto de pó. O autor era-me totalmente desconhecido. Indaguei. Nenhuma referência nas Histórias da Literatura. Os livreiros também não sabiam. Edição de autor, modesta, composta e impressa por uma remota tipografia que falira sem deixar rasto. Correspondia na íntegra a tudo o que escrevera até então. Frase a frase, parágrafo a parágrafo, página a página." "O livro", in Alfabeto Adiado, de José Ricardo Nunes

Encomendas aqui.

sexta-feira, julho 09, 2010

Carta, de Matilde Rosa Araújo




Carta

Porto, cidade sempre tão perto. Um instante mágico na minha memória, instante que se repetiu tantos anos.
Chegar de comboio, atravessando a Ponte Maria Pia, a luz tímida dentro do comboio, aquele cheiro da locomotiva ao qual posso chamar aroma.
Olhar através do vidro da janela, olhar, querer ficar com a imagem, o comboio já a abrandar num cansaço manso. E o apitar da máquina, canto roubado de agonia.
E a cidade naquele instante da janela, a cidade vista, namorada da ponte. Rosto moreno de granitos, lágrimas com risos de chuva a iluminá-la.
Rosto moreno de granito com beijos de sol em doce afago. 
O rio, que se chama Douro com tanta razão.
Para mim, o Porto é chegar. Como um sonho sonhamos, mas como contar o que é, o foi o sonho?
Cidade severa e meiga, granitos que de longe se afagam.
O sonho continuado tantos anos do meu olhar a cidade, da Ponte Dona Maria Pia.

Matilde Rosa Araújo, in Com Quatro Pedras na Mão

Com Quatro Pedras na Mão é livro/ CD em que o Porto  o Bando dos Gambozinos canta o Porto a partir de textos de  de José Mário Branco, Filipa Leal, João Pedro Mésseder, Jorge Sousa Braga, Luís Nogueira, Matilde Rosa Araújo, Luisa Ducla Soares e Joaquim Castro Caldas, entre outros.
A coordenação do projecto  esteve a cargo de Suzana Ralha.

Estranhas Criaturas, Henrique Manuel Bento Fialho

 

Faça a sua encomenda para  deriva (at) derivaeditores (dot) pt

Apenas de Passagem (e.book), de Paulo Kellerman



Paulo Kellerman autor que já publicou na Deriva quatro livros: Gastar Palavras, Silêncios entre Nós, Os Mundos Separados que Partilhamos e, recentemente, Chega de Fado, publica agora, em formato digital, o resultado das cumpliciades com Tina Azinheiro.


Disponível na Livraria Arquivo.


"O TEXTO A MEIA DISTÂNCIA" - 15 DE JULHO - Quintas de Leitura

quinta-feira, julho 08, 2010

Estranhas Criaturas, de Henrique Manuel Bento Fialho




Estranhas Criaturas, de Henrique Manuel Bento Fialho

   "Querido poeta que te queixas das contas por pagar: rescinde os contratos. Nas aldeias abandonadas do interior há casas com poços e terrenos por cultivar. Cria galinhas, poemas que ponham ovos, um ou dois porcos, uma pocilga de poemas. Ainda há peixe para pescar, passarinhos por carpir. Levaram-te as asas? Borda asas de ferro nos ossos, deixa que lhes chova para cima até ficarem ferrugem, ri da pobreza. Não esperes pelos cossacos. Mete um STOP no queixume enquanto aqueces a sopinha instantânea ao microondas. Afinal, para que queres um telefone se a solidão não te lamenta? Queres telefonar à solidão ou esperas que ela te ligue?
   Querido poeta, não vês que para escutares o teu Bach no iPod é fundamental haver quem invente o iPod, é preciso Bach e quem o distribua pelos ouvidos dos surdos, são precisos balcões abertos e caixas registadoras. Afinal de que te queixas? Segue o exemplo de tantos dos teus pares e mata-te, abdica, dedica-te à mendicidade. Ou será que tens medo dos becos escuros da cidade? Afinal o que resta em ti de poeta?
   És já só a vergonha de um sonho por cumprir, um sonho de vida literária, um amigo das cavernas discursivas, tens a lábia de quem mete conversa e atira contra o espelho o cuspo venenoso da vaidade, queres-te encapado, esterilizado na lombada, consolado no autógrafo, sonhas com mulheres lindas levantando-se a teus pés, és a contraprova da poesia, nada do que resta em ti é já poesia porque tudo o que em ti resta é, afinal, uma ausência confrangedora de coragem, as franjas duma dor sem nervo, o tremor da desconfiança, um palanque, recitais, um queixume do que afinal pretendias sem vontade para tanto.
   Sai de casa, faz-te à estrada, segue o exemplo. Mata-te. Querido poeta que te queixas da sociedade, por que te ligas à sociedade através de uma rede sem fios? "
Estranhas Criaturas, de Henrique Manuel Bento Fialho 

PARTIR, de Catherine Corsini e O ATALANTE, de Jean Vigo no cinema Medeia Teatro do Campo Alegre


História de um amor explosivo, PARTIR, da realizadora (e actriz e argumentista) francesa Catherine Corsini (A Nova Eva), com Kristin Scott Thomas, Yvan Attal e Sergi López, estreia hoje,  quinta-feira, 8 de Julho, no cinema Medeia Teatro do Campo Alegre. Todos os dias às 18h30 e 22h.

Na próxima terça-feira, 13 de Julho, à noite, será exibido O ATALANTE, de Jean Vigo, numa homenagem a Henrique Alves Costa, no centenário do seu nascimento, organizada pela Medeia Filmes, Cineclube do Porto e um grupo de amigos daquele que foi uma figura incontornável do cinema no Porto.

o porto, ÒPorto | Ciclo de Cinema

terça-feira, julho 06, 2010

Carta, Matilde Rosa Araújo



Carta

Porto, cidade sempre tão perto. Um instante mágico na minha memória, instante
que se repetiu tantos anos.
Chegar de comboio, atravessando a Ponte Maria Pia, a luz tímida dentro do
comboio, aquele cheiro da locomotiva ao qual posso chamar aroma.
Olhar através do vidro da janela, olhar, querer ficar com a imagem, o comboio já
a abrandar num cansaço manso. E o apitar da máquina, canto roubado de agonia.
E a cidade naquele instante da janela, a cidade vista, namorada da ponte. Rosto
moreno de granitos, lágrimas com risos de chuva a iluminá-la.
Rosto moreno de granito com beijos de sol em doce afago.
O rio, que se chama Douro com tanta razão.
Para mim, o Porto é chegar. Como um sonho sonhamos, mas como contar o que
é, o foi o sonho?
Cidade severa e meiga, granitos que de longe se afagam.
O sonho continuado tantos anos do meu olhar a cidade, da Ponte Dona Maria Pia.

Matilde Rosa Araújo, in Com Quatro Pedras na Mão





Com Quatro Pedras na Mão é livro/ CD em que o Porto  o Bando dos Gambozinos canta o Porto a partir de textos de  de José Mário Branco, Filipa Leal, João Pedro Mésseder, Jorge Sousa Braga, Luís Nogueira, Matilde Rosa Araújo, Luisa Ducla Soares e Joaquim Castro Caldas, entre outros.
A coordenação do projecto  esteve a cargo de Suzana Ralha.




domingo, julho 04, 2010

Alfabeto Adiado, José Ricardo Nunes


«Quem sou eu, na voragem dos rostos?
Era só uma palavra o que mendigava às pessoas.
Palavra atrás de palavra. Até nada sobrar desse alfabeto adiado.
Passados anos percebi. Eu, sentado a escrever. Indigente.» [texto da contracapa]

sábado, julho 03, 2010

Alfabeto Adiado, de José Ricardo Nunes : o livro




O outro, a alteridade, a impossibilidade, o desgaste, a representação, o apagamento, a invisibilidade,o loop. Estas  são algumas das  palavras que serviram, ontem, na livraria Índex  para ler "Alfabeto Adiado", de José Ricardo Nunes. 

Perspicazmente,  Pedro Eiras revelou-nos  os interlocutores de  Ricardo Nunes outros:  Pessoa,  Herberto Helder e Borges.

Faz-se em  Alfabeto Adiado uma homenagem a Herberto Helder, pois, como notou Pedro Eiras, Os Passos em Volta têm também 23 textos. Vinte e três, o mesmo número das letras do nosso alfabeto antes dos recentes acrescentos e o mesmo número de textos deste Alfabeto Adiado. Mas a cumplicidade entre autores não se fica por aqui.

Há, neste Alfabeto Adiado, uma profunda solidão autoral. Uma desespero radical porque o eu já não se revê em si, mas também não se revê no outro.

"Um dia de cada vez, repito eu ao espelho quando me levanto. Não tenho a certeza de ser eu, mas consola-me pensar que, se realmente for eu, me encontro preparado para as inevitáveis armadilhas de mais um dia." (pg. 32)

"Às vezes olho-me ao espelho num relance, na esperança de que a surpresa produza melhores resultados. Todavia, o braço esquerdo do reflexo, quando me aproximo para assumir mais uma derrota, apenas consegue tocar no meu braço direito. Talvez seja a única relação que possa manter comigo." (pg. 54)

 Nesta convergência de universos, a metáfora do espelho de Jorge Luis Borges adequa-se perfeitamente a Alfabeto Adiado:   «todo o homem é dois homens e que o verdadeiro é o outro.» (Borges) 


Na sessão de apresentação, no Porto, falou-se ainda de Flaubert e do seu incompleto Bouvard e Pécuchet, mas, mesmo não tendo sido falado na sessão gostava de cruzar este Alfabeto com "este" Baudelaire:

Perdido neste mundo desprezível, acotovelado pelas multidões, assemelho-­me a um homem cansado, cujo olhar não vê atrás de si, nos anos distantes, senão desprezo e amargura, e diante de si apenas vê uma tempestade onde nada de novo está contido,nem ensinamento nem dor. (Baudelaire)
Podíamos dizer mais. Desvendar mais. Acrescentar uma inconfidência do autor, que confessou  que parte deste livro foi escrito na prisão, mas o melhor é  ler o livro em vez deste seu pálido  reflexo. (já agora, a capa, é um pormenor do quadro Reflection de Lucian Freud).

sexta-feira, julho 02, 2010

Miguel Carvalho, Prémio Gazeta 2009 com "Joaquim Ferreira Torres - Os segredos do Barro Branco"


O jornalista da Visão Miguel Carvalho ganhou o Grande Prémio Gazeta 2009 pelo trabalho “Os segredos do Barro Branco” sobre Joaquim Ferreira Torres, figura ligada à oposição violenta ao 25 de Abril e assassinado em 1979.  Miguel Carvalho publicou na Deriva "Aqui na Terra"
A REPORTAGEM DISTINGUIDA, na íntegra.
Joaquim Ferreira Torres - Os segredos do Barro Branco

Joaquim Ferreira Torres, industrial e financiador da rede bombista de extrema-direita, foi assassinado a 21 de Agosto de 1979. A morte serviu conveniências privadas e políticas. Mentores e autores não foram descobertos. O crime prescreveu. Trinta anos depois, a VISÃO traz a público novos dados e documentos.


Esta é a história de um homem controverso, de fortuna suspeita, que tentou cair nas graças do fascismo, deu dinheiro à oposição democrática, tirou comunistas da cadeia e ajudou «pides» e empresários a fugir. Um dia, ameaçou «abrir o saco» e calaram-no. A tiro

Naquela manhã, Joaquim Ferreira Torres levantou-se mais tarde do que o habitual. Normalmente, estaria a pé às seis horas. Mas o jantar terminara para lá da meia-noite e ele havia passado a madrugada com dores na coluna. Estava, contudo, bem-disposto ao pequeno--almoço. Era Verão e a família mudara da vivenda das Antas, no Porto, para a sua Quinta de Vila Nova, em Penafiel. A mulher, Elisa, ia para as termas de São Vicente, ali perto. O marido continuava a fazer o percurso diário entre a casa e a fábrica têxtil de que era proprietá rio, em Famalicão, ignorando o significado da palavra férias.

Apesar de discreto e reservado, regressara uma das últimas noites carregando uma mala com mil contos, fruto de um negócio com ciganos.

Atarefado, nem deu importância ao facto de, naquele período, alguém lhe rondar a quinta, questionando os caseiros sobre as suas rotinas. Estranhara apenas as avarias no telefone, quase sempre ao final da tarde. O aparelho parecia ter vontade própria e os técnicos tardavam em descobrir o defeito.


Tal não o impediu de marcar o referido jantar. Encomendara uns melões no restaurante Tanoeiro, em Famalicão, onde almoçava amiúde. O tenente-coronel Oliveira Marques e a esposa eram esperados à noite, vindos de Lisboa. Torres juntou à mesa a mulher, o Quinzinho sobrinho que criou como verdadeiro filho desde os onze meses após a morte de um irmão, a irmã Sãozinha e o cunhado Mota Freitas, major da PSP, entre outros familiares. Antes e depois da refeição, os homens reuniram no escritório. Oliveira Marques foi embora já passava da meia-noite.

Quando acordou, Torres vestiu uma camisa, casaco e calças claras, tipo caqui.
Apertou o cinto de cabedal vermelho e calçou uns sapatos castanho-claros picotados, de pala. No pulso, um Ómega de ouro. Num dedo, o anel, também em ouro, com brilhante de sete quilates.
Guardou a carteira com umas dezenas de contos e numa pequena pasta preta colocou documentos, cerca de 42 mil pesetas e 200 marcos. No casaco, levava a caneta em ouro e a agenda, cheia de contactos.
Nomes de homens de negócios, polícias e militares de várias patentes, velhos conhecidos do antigo regime, cónegos, políticos e cadastrados.
O industrial fez-se à estrada no seu Porsche vermelho 911 T, por volta das oito horas. Em Paredes, comprou os três matutinos do Porto e seguiu viagem. Três quilómetros à frente, na estrada nacional que liga Paredes a Paços de Ferreira, talvez vendo um rosto familiar, abrandou.
Numa emboscada de execução tipicamente militar, desconhecidos, munidos de armas pouco habituais no País, disparam contra ele vários tiros, atingindo-o sobretudo no crânio. Torres tombou, morto, para o lado direito do condutor.
Passavam 15 minutos das oito horas do dia 21 de Agosto de 1979. O Porsche contava mais de 77 mil quilómetros. Duas jovens iam comprar vinho quando deram o alerta. Joaquim Ferreira Torres tinha 54 anos, negócios menos claros, fortuna invejável e ligações íntimas a meios políticos, económicos e militares. Aguardava, em liberdade condicional, a repetição do julgamento da rede bombista de extrema-direita. Garantira que «abriria o saco» sobre os segredos e cumplicidades desse tempo. A morte ficou conhecida como «o crime do Barro Branco», lugar onde o calaram para sempre.
Até ali, ele tinha granjeado fama e fortuna vindo do nada e do esquecimento, ao estilo do mito americano. Nascera no simbólico 13 de Maio, em 1925, em Rebordelo, Amarante, um de 17 irmãos. Fez o ensino básico e vendeu carvão em Vila Pouca de Aguiar, onde o pai trabalhou nas minas. Também passou madeiras para Espanha, clandestino.
Foi marçano numa loja de mercearias finas e, no final dos anos 40, já andava por terras transmontanas, de bicicleta ou motorizada, como comissionista e vendedor de rifas, ganhando bom dinheiro com sorteios de chocolates e navalhas.
Em Murça, conhece Elisa, da aldeia de Noura, com quem haveria de casar. A rapariga trabalhara numa padaria e era governanta.
«Uma lasca de mulher, muito cobiçada», diz quem a conheceu. Namoram pelos quintais. E ela é sua cúmplice nas fugas à polícia, que metiam saltos pelos telhados e esconderijos em tonéis de vinho. Os mandados de captura contra ele sucediam-se. E do tribunal de Chaves desapareceria, mais tarde, o seu registo criminal, que incluiria um historial considerável de abusos de confiança.
Nos anos 60, já negociante de vinhos em Rio Tinto, Torres abre em Angola armazéns «com tudo do bom e do melhor para comer e beber», segundo um antigo inspector da PIDE. As relações e os negócios fluem. A partir de 1964, Sousa Machado, empresário, recorre a ele para fazer face a problemas económicos na Companhia Mineira do Lobito e nos hotéis Presidente e Panorama, em Luanda. Ao longo de anos, pedirá montantes da ordem dos 200 mil contos, empréstimos cuja totalidade não liquidará até à morte do amigo. O filão, porém, são as operações em diamantes e divisas.
Torres conhece Tschombé que, com ajuda da CIA e de diversos mercenários, tenta a secessão da província diamantífera do Katanga, no Congo. Quando o líder africano cai em desgraça, Salazar que lhe cedera armas dá refúgio aos familiares. Mas será o homem de negócios de Amarante a velar pelos interesses dos herdeiros de Tschombé. E pelos seus, claro.

UMA FORTUNA INCALCULÁVEL
Regressa, deposita lingotes de ouro na banca e dedica-se à especulação bolsista, mantendo laços com amigos de África.
Os bancos disputam-no e negoceia, fazendo-se caro. «Já ganhei mais mil contos! », ouviam-no, ao telefone, com gestores e administradores. Entre outros investimentos, compra terrenos, uma tipografia, uma casa de câmbios e chegará a ser dono de 27 quintas no Norte do País. Passeia-se num Jaguar 4.2, anda de Porsche e num Mercedes amarelo 350 SLC, desportivo. É amigo do banqueiro Pinto de Magalhães e do empresário Xavier de Lima, quase dono de Setúbal, a quem ajudaria a recuperar a fortuna.
É avalista de negócios no turismo e outras áreas. Devedor dele, Sousa Machado abre--lhe portas nos meios políticos e militares.
Hábil e desconfiado, anota tudo. Dos 110 contos que gasta nuns botões de punho a uma pulseira para a mulher no valor de 90 contos. O círculo íntimo sabe apenas o estritamente necessário. É de fúrias e impõe rotinas de forma quase militar, sem transigências.
Rigoroso, manda repetir textos à máquina por causa de vírgulas.

CULTIVA GOSTOS A PRECEITO

Os fatos e os sapatos são feitos às dúzias, por medida, nas melhores lojas de Santa Catarina, no Porto. De Londres, traz tecidos, sem falar mais do que o português.

Em casa, cultiva uma decoração imponente e aparatosa, com móveis franceses, que convidados classificam como «neobarroco da burguesia». Os jantares são opíparos e a garrafeira não destoa. Comprara mais de cem garrafas de Barca Velha, ao preço de muitos ordenados da época. Preferia colheitas de 64 e 65. Ou um Faustino I, Rioja, de 66. Se acompanhassem uma perdiz cozinhada pela mulher, tanto melhor.

Conquistado o estatuto financeiro, ao ritmo de «pronto-a-vestir», Torres procura a legitimação social que lhe faltava. Os seus ciúmes tinham um nome: Gonçalves de Abreu, comendador, dono de um império industrial, figura prestigiada, presidente da Câmara de Amarante. A autarquia e uma comenda eram o seu sonho. Ele esmera-se. Em finais dos anos 60, compra a fábrica têxtil Silma, em Famalicão, à família do destacado antifascista e comunista Lino Lima. Por mais de uma vez fará uso dos seus contactos para tirar o advogado dos calabouços da PIDE. Na Silma, onde a sirene marcava os ritmos das gentes de Brufe e Calendário, Mário Sousa, Maria de Sousa e Maria da Glória somaram 66 anos de trabalho. «O senhor Torres foi um bom patrão. Tinha as suas manias, mas pagou sempre os ordenados, mesmo quando esteve preso e fugido», contam. A sindicalista Ondina Coutinho travou com ele braços--de-ferro, a doer. «Nada era dado sem luta.

Mas tivemos condições de fazer inveja na região.» Militante do PCP, Ondina garante que Torres «nunca promoveu perseguições políticas na empresa». Já no estertor da ditadura, ele faz, porém, avultados donativos ao partido único, associações, bombeiros, misericórdias e instituições de caridade. As Irmãzinhas dos Pobres agradecem-lhe 50 contos entregues pessoalmente a Marcelo Caetano, presidente do Conselho. Colecciona medalhas de benemérito e benfeitor. Mas antes de tudo isso, já tinha um convite irrecusável...
Torres é nomeado para presidir à Câmara de Murça em 1971. Influências de um amigo salsicheiro a quem emprestara dinheiro. As verbas que faltavam ao município e que o Estado, somítico, não libertava, tinha-as ele. A terra dá um salto, ganha urbanidade. Oferece a cada morador um balde de plástico para o lixo que uma viatura camarária recolhe diariamente. Na rua, homem cénico que era, gesticula e dá ordens. «Exercia o mando, tinha dinâmica e visão», assinala José Gomes, antigo presidente da autarquia.

A COMENDA QUE NÃO VEIO

«Manda electrificar aldeias, abrir caminhos, construir estradas. Aparece de surpresa nas freguesias e, quando a verba se encontra esgotada, abre a bolsa e resolve os problemas», contava o seu vice-presidente.
Deu vida a lugares isolados, escolas.
«Foi um santo homem. Quem não é agradecido, é melhor não andar neste mundo», rende-se o lojista Alfredo Meireles. Adianta dinheiro que o Estado lhe pagará depois, aos bochechos. Estende a sua fábrica têxtil, dá terrenos pessoais para a construção de casas e inaugura uma piscina de fazer inveja na região. «Com ele, Murça seria a Suíça de Trás-os-Montes», crê José Gomes.

O populismo aflora. Empresta dinheiro a munícipes e paga a jornalistas por conta da montra impressa dos seus feitos. Dá banquetes de lagosta e assados, lautos. «Torres, Torres, Torres, és a nossa glória», canta-se.

Embalado, o edil até inaugura fontanários sem água, enquanto funcionários despejam baldes às escondidas para simular a liquidez que faltava ao momento. O Primeiro de Janeiro garante que ele «é o padrão do homem que todos desejariam ter como presidente». Adílio, Pedro, José, António e Mário, velhotes que comentam os assuntos da terra numa garagem da vila, ainda hoje garantem não haver espécie igual. «Até as casas de banho públicas lhe devemos.» Torres sonhou. Alto. Um dia, a vila engalanou-se para receber Américo Tomás e o autarca até pagou um livro para impressionar o Presidente da República na esperança de atribuição da comenda.

O Governo, porém, investigara a vida deste self made man nascido entre montes. «Não sabia nada de política, queria que todos vivessem bem e só pensava no próximo negócio.

Mas descobriram que ele não tinha a folha limpa», conta quem acompanhou o processo. Avisado, Tomás cancelaria a visita, desculpando-se com uma gripe. «Só quiseram dar-me Murça», lamentou-se o industrial, junto de amigos.

Tentara tudo para cair nas graças do fascismo.

Mas não encaixava na moldura do regime, que desdenhava de quem entrava fulminante na vida pública, com ares de novo-rico de extracção duvidosa. A revolução acentuaria o desfasamento, não sem luta. Júlio Montalvão Machado, primeiro governador civil de Vila Real em democracia, só consegue afastá-lo do cargo em Dezembro de 1974, após uma frustrada investida dos militares, recebidos pelo povo com varapaus, sacholas e forquilhas.

«Ele teria saído a bem, mas as pessoas queriam-no e lutaram com tudo. Foi o próprio Torres quem impediu que eu levasse um arraial de porrada.» Segundo Montalvão, era «um homem cordato, um excelente presidente para aquela gente», reconhece.

Apesar das ambições caídas por terra, ele não seria propriamente apanhado de surpresa pelo 25 de Abril. Dias antes das eleições de 1973, perspicaz e bem informado, convida César Príncipe a aparecer na casa das Antas. A relação entre ambos é boa, mas o jornalista do JN, relevante figura da oposição democrática, ligado ao PCP e calejado nas conspirações, receia as vigilâncias da PIDE. Arrisca. E Torres vai directo ao assunto: «Sei que está com a oposição.
Nada contra. Como sabe, tenho de defender o regime para proteger os meus interesses.
Vou dar mais dinheiro à ANP e alugar um helicóptero para a campanha. Mas também quero ajudar a oposição.» César escuta, estupefacto. «Ele queria começar a dialogar com o pré-poder e eu era quem estava mais à mão.» A oferta, «um envelope com algumas centenas de contos », tinha atrelado um pedido. «Sei que vai discursar num comício do Coliseu e queria que fizesse um ataque ao comendador Abreu.» César rejeita a condição. O donativo entra à mesma nas contas. «Anónimo, claro.» Torres joga em dois tabuleiros e, na despedida, confidencia: «Este regime está para acabar. É a PIDE quem mo diz.»

AS PRATAS, AS BOMBAS E A FUGA

Com as fervuras da revolução, Torres previne-se. Vende património incluindo 18 quilos de barras de ouro e prepara refúgio na Galiza. Ajuda «pides» a «dar o salto».
Nunca deixará, porém, de tentar pontes com os protagonistas do momento, como fez com Macedo Varela, militante comunista.
«Quis fazer um donativo ao MDP/ /CDE, mas com o objectivo de queimar alguém.
Recusei, claro», conta o advogado de Famalicão. Para ele, o industrial «não era esquisito em matéria de ideologias. Queria estar bem com Deus e com o Diabo». Mas ele teme o demo da foice e do martelo.
No início de 1975, é o fiel depositário de diversos valores de banqueiros, industriais e empresários nortenhos em fuga para Espanha.
Pratas, ouro, marfins, jóias e obras de arte de pessoas das suas relações são colocadas em casas e armazéns seguros, entre Tuy e Vigo, levadas por vezes em furgões atulhados. Ele controla a fronteira de Valença: guardas-fiscais escolhem na sua fábrica peças de vestuário. Abre contas para amigos em bancos galegos. Gere ele os dinheiros e os juros e aluga garagens para que possam esconder os Porsches, Mercedes e Jaguares.

O general Spínola foge para o estrangeiro e funda o MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal).

O braço-direito é Alpoim Calvão, militar responsável pelo sector operacional do movimento. No Norte de Portugal, Torres põe e dispõe e os apoios surgem de todo o lado. O presidente Mobutu, do antigo Zaire, oferece 5 mil espingardas semiautomáticas.

O comendador Abílio de Oliveira passa um cheque de um milhão de pesetas para a compra de armas. Dos quartéis, também saem algumas. O MDLP destrói, incendeia e faz explodir dezenas de sedes, casas, carros e estabelecimentos ligados, sobretudo, ao PCP e seus militantes. Há mortes. A rede bombista congrega autarcas, empresários e militares de diversas safras, sacerdotes, mercenários angolanos, ex-pides, seguranças do PSD, CDS e PS e gente para todo o serviço, com cadastro condizente. «Mais a direita de aldeia, caceteira e borrachona», refere um inspector da PJ desse tempo. Enquanto oferece roupa e dinheiro a retornados das ex-colónias, Torres ordena atentados e paga. Empresários compram-lhe dólares a um preço mais elevado e contribuem para a causa.

O movimento é despesa cara: as viagens de Spínola e os gastos de Alpoim custam mais de 3 mil contos por mês.

Com pouco de ingénuo, Torres sabe que o dinheiro é também usado para outras aventuras. Dirigentes no exílio compram casacos de peles de 900 contos e gastam «como lhes apetece». Um bombista queixa-se de passar fome, «enquanto outros se banqueteavam nos melhores hotéis». Por cá, a democracia pode esperar. Bombas explodem por conta de ódios de estimação e desavenças pessoais. O movimento comporta-se como «uma autêntica mafia», descreve quem o viveu por dentro.

As conspirações do MDLP com os moderados do Conselho da Revolução (Vítor Alves e Canto e Castro) sucedemse.

Torres, porém, diz-se «traído» quando os mentores do 25 de Novembro de 1975, liderados por Eanes, não cumprem o que alegadamente prometeram ao saudosismo de direita: Angola é entregue ao MPLA e o PCP iria continuar na legalidade. As bombas não param. Nem quando Vítor Alves e Canto e Castro reúnem novamente com o movimento, na casa de Valentim Loureiro, no Mindelo. Há armas e operacionais em roda livre. Sem perder de vista os alvos políticos, com o dedo de Torres. Em Abril de 1976, é assassinado o padre Max e dá-se o atentado à Embaixada de Cuba, em Lisboa.

Eanes é eleito em Junho para Belém, o País tenta normalizar. Torres é então detido com outros elementos ligados à rede bombista, entre os quais o seu cunhado Mota Freitas e o operacional Ramiro Moreira.

DO EXÍLIO À MORTE


O industrial é preso em Caxias, onde assina cheques e despacha assuntos relacionados com os seus negócios. Mas é libertado, alegadamente corrompendo um magistrado na fase de instrução do processo, a troco de vários milhares de dólares.

Na sequência das investigações da PJ, o Conselho Superior de Magistratura receberia uma recomendação oficial para abrir, no mínimo, um processo disciplinar ao magistrado. Nos arquivos do Conselho, confirmou a VISÃO, não consta que tal tenha sido feito.

Em Março de 1977, Torres é avisado um dia antes da emissão de novos mandados de captura e foge para Espanha. O irmão Avelino leva o Mercedes por Chaves, ele segue com o irmão Adelino por Valença, num BMW. Irado, desabafa contra «os pulhas» da magistratura e do Conselho da Revolução. «Dei milhares de contos àqueles filhos da puta para me ver livre deles e agora tentam mandar-me novamente para a cadeia.» Em Vigo, ocupa o quarto 710 do Hotel Nisa, que já lhe é familiar. Tem uma linha de PBX só para ele e controla, na recepção, todos os passaportes de portugueses ali hospedados. Se desconfia de alguém, diz ao dono do hotel: «Para este, da próxima, não há quartos.» Gere contas bancárias abertas na cidade e tem um cofre na Suíça.
A família visita-o aos fins-de-semana.
Almoça e janta no Las Bridas, onde uma sala mais recolhida é construída a seu pedido.
Aluga um apartamento junto ao El Corte Inglés. Atribuem-lhe relações amorosas com mulheres de amigos e de presos da rede bombista. Improvável, porém. Os seus devaneios eróticos ter-se-ão limitado a envolvimentos com meninas de cabaret, às quais não precisava pagar o silêncio.

Torres seria julgado à revelia, mas absolvido no processo da rede bombista, a 6 de Julho de 1978, talvez ainda escudado pelo magistrado «amigo». Mantém-se entre Vigo e o Porto, sente-se inseguro. Vendera a Valentim Loureiro a antiga casa de câmbios, em Lisboa, e o Porsche, carro que recuperará nesse ano. Uma parte dos seus terrenos e quintas está nas mãos de Castro Martins, o Mata-o-Pai, envolvido em negócios duvidosos. Fictícias ou não, o amigo demora a acertar contas das transacções.
Elisa Torres chega a apontar-lhe uma pistola em Valpaços. Mas tudo já estaria saldado quando Castro Martins aparece morto, nos anos 80, a boiar no Douro, no enfiamento do restaurante Mal Cozinhado.
No Brasil, Torres leva «uma banhada» num negócio de ouro. Zanga-se com Alpoim Calvão e Sousa Machado (ver caixa).

«O Alpoim saiu-me um grande filho da puta», desabafa, perante família e amigos.

Mesmo em dificuldades, ajuda famílias de presos da rede bombista e antigos operacionais a refazer a vida no estrangeiro. Recebe ameaças. E não perdoa nem esquece.

Um dia, sentado no sofá de casa, vê Vítor Alves na televisão. Irrita-se: «Filho da puta, bem me enganaste! E andaste a beber do meu vinho e a comer do meu presunto!» No início de 1979, parte das fortunas e valores retirados de Portugal no pós-revolução continuava em contas e cofres estrangeiros.

Ou adormecida em garagens e quintas de Ourense, na Galiza. À porta dos mais estrelados hotéis de Vigo, ainda abundavam os carros de luxo, com as indisfarçáveis matrículas negras de Portugal. A revista espanhola Sábado Gráfico repara nos portugueses que gastam generosamente dólares e marcos, enquanto outros compatriotas, despejados, pelas excursões, no porto daquela cidade galega, comiam a tigela de caldo nos passeios. Por cá, Torres recebe a má notícia: o julgamento da rede bombista, da qual saíra absolvido, é anulado e será repetido. Paga uma caução de 250 contos e aguarda em liberdade.

A INVESTIGAÇÃO POSSÍVEL

Inconsolável, diz a amigos e família, que, se for a tribunal, abrirá o livro. Falaria das páginas negras do MDLP, incluindo o furto da coroa de Nossa Senhora da Oliveira, do museu de Guimarães. E na utilização de grandes quantias de dinheiro e armas pertencentes ao movimento. Tinha vivido por dentro as conspirações e reuniões anteriores ao 25 de Novembro.

Lidava com bombistas e contrabandistas.
Sabia quem lhe devia dinheiro e porquê.

A poucas semanas de se sentar no banco dos réus, tudo terminaria, porém, numa curva do lugar do Barro Branco. E num silêncio ensurdecedor.

O crime apanha a PJ do Porto ainda a digerir a democracia. No activo, permanecem agentes do tempo em que eram dispensados do serviço para colar os cartazes do partido único. Em carros da Judiciária, também tinham saído objectos de valor para Espanha no pós-25 de Abril. Geram--se conflitos. Fausto Saraiva, o inspector que primeiro chega ao local do crime e logo devolve à viúva objectos pessoais da vítima, junta pistas avulsas em abono de uma tese «ideológica», inclinando a autoria do crime para a extrema-esquerda. As suas diligências, na fase decisiva, «dificultaram, para não dizer aniquilaram, quaisquer futuras hipóteses de abordagem» de diversas fontes anónimas, dirá, mais tarde, um relatório da própria PJ. As audições formais de testemunhas ou possíveis implicados iniciaram-se onze meses depois dos factos. Por essa altura, já a família de Torres tinha mudado as contas no estrangeiro de sítio e um irmão da vítima se tinha suicidado, tendo a seu lado recortes de jornais e fotografia do crime. Rigoroso, só um relatório do inspector Mouro Pinto, que também esteve no local.
O andamento do processo teve situações anómalas e caricatas. Avelino, o irmão que mudaria nos anos 80 os sobrenomes Torres Ferreira para Ferreira Torres para cavalgar a memória e o mito do mano Joaquim, pôs um carro à disposição da PJ e pagou viagens, refeições e outras despesas aos investigadores, com cerca de 7 mil contos entretanto pedidos à viúva. Apesar de anunciado várias vezes, um prometido livro da sua autoria a denunciar os implicados no crime ainda aguarda publicação.
Manuel Macedo, também MDLP, assistiu a interrogatórios e gastava 50 a 60 contos em almoços de perdizes e cabritos com jornalistas e inspectores da Judiciária.
O ex-MDLP Ângelo do Nascimento, sobre o qual pendiam vários mandados de captura, é encontrado com armas e caçadeiras, mas mandado embora.
Em 1982, Artur Pereira, da Secção Regional de Combate ao Banditismo da PJ, assume a investigação, dá ordem e alguma solidez ao processo. Alpoim Calvão, Vítor Alves e Canto e Castro são ouvidos, sem adiantarem contributos para o desvendar do crime. Há teses para todos os gostos, com a alegada vendetta do Barro Branco a oscilar entre 3 mil e 4500 contos para os executantes.

O processo atravessaria três gerações da PJ. E acabaria nas mãos de Vítor Alexandre, na Direcção Central de Combate ao Banditismo. Mesmo com arquivamentos pelo meio, a Judiciária faz escutas e novas inquirições que ajudam a sustentar uma acusação no crime do Padre Max, que acaba em julgamento. Mas o caso Torres, «enfim. é um enigma muito grande. Até depois de morto dá problemas», diria Manuel Macedo, apanhado nas escutas.
Ao longo de anos, vários dos visados em notícias e citados no processo ameaçaram recorrer aos tribunais, rejeitando «calúnias e difamações». A PJ rende-se em meados dos anos 90. Alpoim Calvão, com depoimentos contraditórios, gera a «forte suspeita» de intervenção nos factos ocorridos, mas faltam indícios sólidos.
O despacho de arquivamento assinala «alguma lógica» na lista de motivações relacionadas com os «negócios escuros » do MDLP e as conspirações da rede bombista com o Conselho da Revolução.
O crime prescreve em 1995.
A 21 de Agosto de 1979, quando ameaçara «abrir o saco», Joaquim Ferreira Torres não tinha percebido o timing da democracia.
Conspiradores de outros tempos tinham sido reciclados para o conforto dos cargos, das instituições e do poder político.
Outros andavam envolvidos nos negócios.
Queriam iniciativa privada, lucros e normalidade democrática. E sossego, por favor.

Passos de uma investigação

Para esta reportagem, a VISÃO realizou dezenas de entrevistas a pessoas que contactaram com Joaquim Ferreira Torres ou que, por alguma razão, estiveram por dentro de passos da sua vida e da evolução dos acontecimentos. Muitas solicitaram anonimato.

Outras, como Joaquim Costa Torres, a quem a vítima sempre tratou como filho, recusaram «terminantemente» prestar declarações. A VISÃO teve ainda acesso a diversas cartas, fotos e outra documentação que permanece à guarda de um advogado a quem a viúva falecida em 2008 confiou vários arquivos. Foram ainda consultadas, com precioso empenho da Secção Central do Tribunal Judicial de Paredes, as mais de 1800 folhas do processo de instrução.

Últimas cartas
Em 1978, por alegado intermédio de um amigo, Torres emprestara 20 mil dólares para os negócios de Alpoim e do empresário Francisco José Sousa Machado. Passados os prazos, Torres não havia recebido o dinheiro.

Em várias cartas a Alpoim confessa, desesperado, atravessar «grave crise financeira». É violento com o destinatário e manda recados ao Chico Zé, que, refere, não demonstrara vontade de resolver o problema. «O que mais me custa é não poder cumprir com as minhas obrigações», diz. E termina uma das missivas, ameaçando Alpoim. «Peço-lhe, caro Guilherme, não me obrigue a ter de pensar de si o que não desejaria nunca.» Já em 1979, Torres troca correspondência com Carlos Bernardo Vieira, empresário guineense, primo e «irmão de sangue» de Nino Vieira, Presidente da Guiné-Bissau. Nas missivas, falam de um negócio e sabia-se que Torres sonhava com um banco naquele país. Carlos Vieira garante que Valentim Loureiro é conhecedor das suas influências e diligências junto do poder político da Guiné. E diz estar a esforçar-se «para que o seu negócio se concretize de forma a ter margem para eu ganhar também algum para a educação das minhas filhas», escreve. A dada altura, percebe-se, o negócio parece emperrar. Torres morreria semanas depois da última carta.


POR MIGUEL CARVALHO