segunda-feira, janeiro 30, 2023

«Só o Tempo Dirá», de Jeffrey Archer

 

Livrinho de bolso, como se requer a um policial. Jeffrey Archer tem um condão não só de escrita, mas também, como convém a qualquer boa história, de saber do que fala. E para além da sua experiência de vida em confronto com a justiça que conhece bem, visto que esteve preso por fuga aos impostos, ainda por cima como deputado conservador, descreve com verosimilhança todas as tramas que nos descreve.
Como conservador, acredita que o mérito pode ser o impulsionador do elevador social, mas também sabe que não somos parvos ao ponto de acreditar totalmente nisso. Portanto, os livros de Archer devem ser lidos como minitratados de luta de classes, mas ao contrário. Daí a importância de o ler. Não só por isso, porque é inegável a qualidade da sua escrita e do suspense que suscita, mas também por isso.

Bertrand, col. 11/17 de bolso.
Tradução de Fernanda Oliveira
2018

quinta-feira, janeiro 19, 2023

«Vida a Crédito - arte contemporânea e capitalismo financeiro», Tomás Maia

 

Este é um dos livros mais estimulantes sobre a filosofia da arte contemporânea que foram editados em Portugal nos últimos anos. Tomás Maia, professor das Belas-Artes de Lisboa, consegue aqui uma síntese notável sobre a ligação da chamada «arte contemporânea» com o capitalismo financeiro. Livro algo denso, mas inevitável na utilização de uma linguagem complexa se o objetivo era o rigor de análise que é empreendido pelo autor. Conseguiu-o plenamente. A obra está dividida em quatro capítulos, sendo o primeiro e o último dedicados propriamente à «arte» ou ao que é considerado arte, hoje. Os capítulos dois e três dedicam-se ao valor das mercadorias e o papel do sujeito como produtor e detentor da força de trabalho, utilizando o papel do uso e da troca marxiana, superando inclusive as teorias de Marx com a referência a Debord, Jappe, Kurz entre outros e não deixando de notar a influência de Hegel, Feurbach ou mesmo Kant que precederam Marx. Mas é Adorno (iniciador do conceito de «indústrias culturais») e Walter Benjamim que no capítulo I são motivo de análise mais pormenorizada de Tomás Maia. Ultrapassando em parte a velha questão do «fim da arte» foca-se essencialmente na tentativa de responder ao subtítulo da obra: há ou não uma relação entre a arte e o capitalismo financeiro? A resposta é claramente um «sim». E os exemplos são vários que concretiza sobre esta relação íntima principalmente no capítulo IV.

Fazer uma síntese de uma síntese para uma ficha de leitura é sempre um exercício difícil mas, vejamos: Marx, em «O Capital» já adjetiva a mercadoria como fétiche, embora Anselm Jappe e, antes dele, Kurz do Grupo Krisis, tenha aprofundado o fetichismo da mercadoria como sendo o valor real do capitalismo. Assim a fórmula M-D-M, (mercadoria - dinheiro - mercadoria) seria a base do valor de troca dessas mesmas mercadorias que, aniquilando o seu valor de uso, torna-se mais-valia ou lucro para o detentor dos meios de produção. O capital financeiro que exige lucro infinito transforma-o mais tarde na fórmula D-M-D' que não só traduz a acumulação de dinheiro como o multiplica, tornando a mercadoria um mero instrumento que se esgota em si próprio. Assim, Tomás Maia descreve que o capitalismo financeiro tem agora um objetivo claro: o de tornar a mercadoria obsoleta ou inútil, baseando a sua ação num crédito infinito, ou seja, uma crença que o abraça numa religião cuja base se encontra no cristianismo, incluindo a transubstanciação do dinheiro. Deus, que exige de nós a dívida do perdão e do arrependimento, transforma-se em capital. Melhor: em capital acumulado indefinidamente, volátil, também ele imortal, em dívida permanente para qualquer crente/consumidor, portanto devedor eterno (a «Vida a Crédito»). Portanto, perante a vida a crédito e crescente acumulação que só terminará com a morte do capitalismo (senão mesmo do planeta se não o pararmos) a fórmula será D-D'. É aqui que a chamada arte contemporânea se revê.

Se na tradição da arte ocidental a arte obedece à sequência O-S-O' em que O é o primeiro objeto, S o sujeito-artista e O' o segundo objeto, no plano da «arte» contemporânea se até meados do século XX ainda poderíamos, segundo Maia, identificar o sujeito e a obra (mercadoria) nessa fórmula, hoje encontramos o S-S' não sendo necessária qualquer obra que sustente enormes transações o que determina uma verdadeira contrafação no plano da arte.

Este tipo de «arte» já denunciada por Boris Groys, Ferrari, Berger e outros que Maia cita, mesmo sem concordar totalmente com o primeiro, é acompanhada por um discurso sofisticado, falho de qualquer lógica filosófica, apresentado por curadores (é aqui que ele se afasta de Groys que reconhece o curador como o artista de hoje que nada «explica», não escreve, apresenta instalações onde parodia ou «ironiza» a sociedade, sem mais comprometimentos), folhas de sala salpicadas de palavras que nada dizem (a «falsa doxa» com um discurso aparentemente filosófico mas seu inimigo, que Sousa Dias já desconstruiu em obras editadas e referido igualmente por Maia), museus privados e públicos, fundações que se multiplicam, leiloeiras, marcas de luxo, críticos de arte, colecionadores, administradores de empresas, colaboradores e assistentes proletarizados por «artistas» de obras monumentais de volumetrias estapafúrdias (não sei bem porquê mas lembrei-me de Joana Vasconcelos!), guias e intérpretes mal pagos mas que tentam «interpretar» o artista, etc...etc...

Hoje, a arte contemporânea vale mais que a Bolsa de Valores a nível mundial e Tomás Maia não só dá números, como explica que a tendência é a de aumentar, embora os colecionadores mais ingénuos (digo eu) exijam cada vez mais um mercado regulador do valor das «obras» que aparecem no mercado com cotações absurdas que ninguém sabe de onde aparecem. Aqui não há CMVM's que lhes valha... Basta dizer que em 17 anos o valor do mercado da arte aumento 1400% tendo uma taxa de retorno atual de 7,6% (chega a 12/15% para obras acima dos 100 mil dólares) quando as taxas de juro eram quase negativas! As fórmulas apresentadas anteriormente já deixaram pois de ter sentido pela ausência da própria obra. Só o sujeito-«artista», narcisista portanto, é que vale pelo seu marketing próprio ou na sua posição num ranking mundial. Hoje vende-se por milhões de dólares obras «imateriais», i.e. que não existem de todo. Não resisto a um exemplo que Tomás Maia nos dá: «(...) o The Fine Art Group - um notório fundo privado de investimento em arte - comprou uma obra que ainda não existia. Mais: quando a revendeu com um lucro de 40%, [permaneceu] inexistente a mesma obra (...) e não sendo revelado o nome do «artista» (pág.216)». A arte NTF (non-fungible token) é igualmente significativa da especulação e tende a aumentar; um simples ficheiro jpeg, que reproduziu banalmente milhares de posts, foi vendido como sendo a terceira «obra» mais cara de sempre em leilão, por um «artista» ainda vivo. Não se disse quem era. Mas perante a desmaterialização da arte ou a inexistência da obra, vende o sujeito-artista á simples fórmula marxiana (não marxista que Maia felizmente não utiliza) de S-S'! O artista vende o artista! A obra (mercadoria) já não é necessária.

Concluo tendo em conta o que Tomás Maia refere na página 156 e que me parece importante trazê-la aqui, tentando com isto aclarar um pouco melhor o título do livro, embora saiba de antemão que só o lendo todo e fazendo as necessárias conexões entre os capítulos se consegue ter a visão completa da obra e do pensamento do autor:
«(...) Em toda a parte, desde que há capitalismo, a humanidade submeteu-se ao trabalho a crédito; e, desde que a finança capitalista impera globalmente, a humanidade submeteu-se à vida a crédito. O crédito - doravante co-extensivo à totalidade da vida humana, e doravante decisivo para a reprodução do capital - é então a figura depurada da expropriação do tempo (do devedor) e da apropriação do tempo (pelo credor): a forma final de ucronia, ela própria pensada como finalidade da metafísica (parousia ou fim do Tempo). No capitalismo e, mais particularmente, insisto, no capitalismo financeiro, culmina a metafísica ocidental enquanto ucronia.»

Editora - Sistema Solar/ Documenta
Abril de 2022


Na Galeria da Revista «A Ideia». Manuel de Castro e Pedro Oom

 

Na Galeria da Revista «A Ideia». Dois desenhos de Pedro Oom e Manuel de Castro em memória destes surrealistas. Uma colaboração pessoal com uma revista alternativa incontornável. 


«O Manipulador», de John Grisham

 

Mais um livro a justificar quão obcecado me encontro pelo policial. Este tem a particularidade de se meter com sistema trinitário da política, da justiça e do sistema prisional americano que, ironia à parte, todos sabemos ser exemplar. E John Grisham não brinca em serviço. Para além de bom escritor tem um posicionamento político extremamente crítico para com os EUA. 
Um advogado negro está encarcerado, por dez anos, numa prisão de um estado federal que nem é das piores, embora já tenha passado por várias bem más. A história começa aqui e acreditamos na sua inocência. O seu escritório foi contratado por pessoas nada recomendáveis que o meteram numa história de evasão fiscal recambolesca. O final é incrível e como vai sendo hábito nos policiais atuais, os «maus» talvez ganhem na teia ao FBI que entretanto montaram. A narrativa é rigorosa e cerebral, no entanto o autor teve o cuidado de dizer que nada daquilo que contou foi real. Não fosse o diabo tecê-las.
Ler Grisham é também ter um posicionamento político: «O meu companheiro de cela é um miúdo negro de dezanove anos, de Baltimore, condenado a oito anos de cadeia por vender crack. Gerard é como um milhar de tipos que encontrei nos últimos cinco anos, um jovem negro de uma cidade interior, cuja mãe era adolescente quando o teve e cujo pai desapareceu há muito. Abandonou a escola no décimo ano e arranjou trabalho a lavar pratos. Quando a mãe foi presa, Gerard foi viver com a avó, que está a criar uma horda de primos. Começou a consumir crack, depois a vender. Não obstante a vida nas ruas, Gerard é uma alma bondosa sem um pingo de maldade. Não tem qualquer historial de violência e não devia desperdiçar a vida na prisão. É um de entre um milhão de jovens negros que estão a ser armazenados pelos contribuintes. Neste país, somos aproximadamente dois milhões e meio de reclusos, de longe o maior número de encarcerados em qualquer sociedade semicivilizada. (pág.82)».
E a descrição do sistema de justiça americano contínua, sendo que a própria Constituição americana é regularmente ultrapassada e alterada conforme a decisão dos legisladores e juízes sem que daí venha mal ao mundo. E prende-se, prende-se muito, com penas completamente dementes e gratuitas que obrigam cidadãos sem qualquer perigosidade, alvo de pequenos erros, ou mesmo inocentes, a passarem anos infindos na prisão e a desfazerem uma vida normal, perguntando-se a si próprios «Como é que isto me aconteceu?»

terça-feira, janeiro 10, 2023

«Como se o Mundo Existisse», de Ana Teresa Pereira

Acompanho esta autora desde que iniciou o seu processo de escrita nos anos 80. O registo literário não mudou muito, por isso posso dizer sem me enganar (demais) que é das escritoras mais coerentes e mais sólidas no estilo que mantém. Felizmente. Há um verdadeiro mistério na sua escrita e que Jorge Silva Melo, nos lembra em texto colocado na contracapa deste «Como se o Mundo Existisse». Diz ele: «Que neblina é esta que nunca levanta nas histórias sem fim de Ana Teresa Pereira, que abismos (de paixão?)? E, no entanto, são nítidos os contornos, nada se esfuma, vemos tudo, as cores vibrantes dos vestidos, as jarras, corredores, portas, escadas, portões, jardins, labirintos. Que espelhos são estes, sempre lá, mas se abrem portas, nos camarins, nos quartos alugados, nos hotéis? Que teatros são estes onde se ensaia? Que homens são estes, estátuas monstros? Leio sem parar estas histórias misteriosas (são contos? apontamentos?), são uma janela sempre. Aqui, com Ana Teresa Pereira, ler é ver, voltar a ver, voltar a ler.»

Por mim, bastavam estas palavras tão certeiras, tão nítidas de Jorge Silva Melo para parar por aqui deixando-vos a descrição de «Como o Mundo Existisse» pela mão de um dos maiores autores e encenadores contemporâneos entretanto falecido. Contudo, julgo que esta neblina surge também de Londres e envolve as personagens de Ana Teresa Pereira com uma mestria como poucos o sabem fazer. Esse nevoeiro é tanto urbano como rural e as personagens são claramente (porque a autora não tenta esconder-nos) de Conan Doyle, das irmãs Brontë, de Enid Blyton ou de John Dickon Carr (alguns policiais dele estão na nova coleção Vampiro, disponíveis). Ana Teresa Pereira fala-nos destes autores (cita muitos mais) e das suas personagens com um carinho indiscutível e que convidam já a conhecer esses mistérios que envolvem as personagens que tiveram vida em atores de Hollyood ou em séries da BBC e que conhecemos bem. Tem uma ligação tão íntima com o cinema e com os livros policiais que dificilmente não acabamos a sua leitura para saltar para uma estante próxima e devorar os policiais ou ir aos dvd dos filmes de Hitchcock escondidos em qualquer caixote na garagem, visto que agora vê-se cinema por streaming no espaço exíguo de um ecrã de TV, coisa que deve ser quase impossível ver Ana Teresa Pereira a fazê-lo. Leiam este trecho da autora: «John Franklin Bardin escreveu que não há diferença entre um romance policial e um romance ''sério'' (o que deveria ser evidente, mas em 2021 ainda não é). Há bons livros e maus livros. Um bom livro é o que nos faz experimentar um mundo novo. Devil Take é uma experiência muitíssimo perturbadora. Como observou Patricia Highsmith, todos nós, nalguma altura da vida, conhecemos estes sentimentos, mas damos um passo atrás e não nos atrevemos a pensar no que teria acontecido se não o fizéssemos; os que conseguirem ler este romance não o esquecerão tão cedo. (...) pág.113» Essa perturbação é inegável nos livros de Ana Teresa Pereira. Nuns, mais, noutros menos certamente, mas só quem conhece profundamente toda a trama de obras de uma grande carga psicológica pode escrever assim.

E deixo-vos com este belíssimo trecho de «Como se o Mundo Existisse»: 
«Sento-me na mesa, fazendo cair o cinzeiro, e começo a abanar as pernas para trás e para a frente. Meu amor, é a redenção que procuras, que palavra vazia, a redenção através de um anjo que foste descobrir não sei onde? Ele olha para mim e não sei o que vê. A rapariga com o feio casaco comprido, o rosto inexpressivo, os olhos baixos e traiçoeiros. Ou a mulher de calças pretas e camisa branca, o cabelo preso na nuca, que parece um rapazinho com o rosto de um anjo de Botticelli. ''Fiery the Angels rose, and as they rose...'', o poema de Blake que uma de nós aprendeu quando estava a estudar; a tempestade chegou e os anjos ergueram-se à sua rente. (pág.59)». São estes anjos, omnipresentes nos livros de Ana Teresa Pereira que nos levam a territórios de não-lugares, às terríveis obsessões das personagens que provavelmente constroem o maravilhoso dos seus livros.

Relógio D'Água
Junho de 2021

 

quinta-feira, janeiro 05, 2023

«O Hóspede da Casa do Infinito», exposição de Avelino Sá no CAPC

 





"O Hóspede da Casa do Infinito", exposição de Avelino Sá no Círculo Sede (na Castro Matoso) e na Sereia do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. Até 14/01/2023. Mostro a minha folha de sala riscada como uma cartografia que pretendi identificar. O hóspede é Holderlin. As cores são em técnica de encáustica (uma cera) sobre madeira e os grafismos que lembram, entre outros, Álvaro Lapa, tornam a visita obrigatória. A técnica inovadora de acamar várias ceras sobre madeira criam uma espécie de caderno de pautas de onde saltam palavras e letras. O debate é este sábado às 14:30 no edifício da Sereia em conversa com João Barrento, Fátima Lambert, Luís Quintais e performance poética de Jorgette Dumby. Uma mostra austera, sóbria, viva. Com sentido.

quarta-feira, janeiro 04, 2023

2 de janeiro - 100 anos do nascimento de Mário-Henrique Leiria

Este meu desenho enquadra-se numa exposição que realizei no Liquidâmbar em Coimbra, intitulada «Abjectos Surreais» e é uma referência a Mário-Henrique Leiria. Decorreu entre 1 a 28 de Outubro de 2021. Este desenho é uma colagem, tinta-da-china e aguarela a escala de cinzentos, em tamanho A4.  Lembra-se que este poeta abjeccionista e surrealista merece, nesta data redonda, um tratamento pelo menos igual a outros de importância bem menor nas chamadas «letras» portuguesas. Para mais, calcorreou o mundo nunca se habituando ao modo tão canino de ser português, pelo que deve ser conhecido internacionalmente. Pede-se, pois, que haja um/a curador/a que se disponibilize à causa!

 

segunda-feira, janeiro 02, 2023

«Betão», de Thomas Bernhard


Pela segunda vez, no espaço de duas semanas apenas, vejo-me a ler mais um livro titulado de «Betão»! Não sei se é mau ou bom sinal, mas tanto me importa. O primeiro «Betão», de Anselm Jappe, como é evidente para quem o conhece, nada tem a ver com este de Thomas Bernhard. Este último, situa-se numa espécie de tragicomédia, onde se instala a procrastinação, a doença, a depressão, os terrores do mundo pequeno que envolvem a personagem, Rudolfo, um escritor que se prepara há dez anos para escrever a primeira frase de um romance sobre Mendelsshon. Odiando a irmã com quem por vezes vive, não consegue, contudo, deixar de estar com ela, mas, quando está. espera ansiosamente que se vá embora. As duas situações impedem-no de criar ou começar o tal romance, que não é um romance, nem um conto, ou um ensaio de música embora trate de música!

É provável que se veja aqui a influência de Kafka, mas eu lembrei-me várias vezes de Bartleby, de Melville, e daquele seu icónico «I prefer not to». Gostei de ler Thomas Bernhard mesmo um livro sem qualquer parágrafo. Daí o ter lido logo de seguida? Numa só noite? Pese embora (ironia minha aplicada ao betão, mesmo que a ironia tenha falhado pela necessidade de explicação) a torrente de pensamentos do autor, concorde-se com ele ou não (com a personagem, bem-entendido) sobre a raiva a Viena, cidade que eu gosto muito, ele não deixa de ser um excelente autor que tem uma visão muito particular sobre o Outro:

«Por um lado, sobrestimamos o outro, por outro, menosprezamo-lo e estamos sempre a sobrestimarmo-nos e a menosprezarmo-nos, e quando nos deveríamos sobrestimar, menosprezamo-nos, tal como nos deveríamos menosprezar quando nos sobrestimamos. E, de facto, sobrestimamos todo o tempo, principalmente o que projetamos fazer porque, na verdade, cada trabalho do espírito é, como qualquer outro trabalho, sobrevalorizado em exagero e não há no mundo nenhum trabalho do espírito a que este mundo sobrevalorizado não pudesse renunciar, tal como não há ninguém, nenhum espírito, a que não se devesse renunciar neste mundo; aliás, a tudo se deveria renunciar caso tivéssemos força e coragem para isso. (pág.29)»

Rudolfo, que está há dez anos para iniciar a primeira frase de um livro sobre Mendelsshon não gosta de lugares que não seja a sua casa na aldeia de Peiskham, na Áustria. Abre uma exceção para Sintra e Palma. Quando diz que vai por quatro meses, ao terceiro dia já se encontra na sua casa aquecida (não muito) e no seu escritório em pânico com uma possível chegada da irmã e dos seus convidados, todos ricos, negociantes e filantrópicos. Como neste estado não consegue escrever assim, vai pensando «As pessoas que dizem constantemente que estão prontas para todos os sacrifícios e que constantemente sacrificam tudo, em última análise até as suas próprias vidas, etc, esses santos que, para se sacrificarem e por espírito de sacrifício, se empurram uns aos outros como os porcos diante da selha, existem em todos os países e continentes, podem ter todos os nomes possíveis e imagináveis, podem-se chamar Albert Schweitzer ou Madre Teresa, essas pessoas repugnam-me profundamente. (pág.39)».


A depressão de Rudolfo (pode ser Thomas Bernhard, não brinquemos, toda a sua obra é autobiográfica, li-o!) faz-lhe dar vivas à indústria química da Suíça, de Montreux e Vevey que o mantém ainda vivo, senão estaria sob uma placa de betão num qualquer cemitério também cheio de betão! «Como hoje em dia quase toda a humanidade esta doente e depende de remédios, deveria instantemente pensar que, na maior parte dos casos, existe exclusivamente devido a essa química que tanto amaldiçoa. (...) Mas o ser humano é mesmo assim, amaldiçoa mais o que o mantém e mesmo o que o mantém em vida. Devora os comprimidos que o salvam e, a todo o momento, desfila pelas grandes metrópoles decadentes de hoje, levado pelo seu estúpido impulso de condenação, para se manifestar contra esses comprimidos que o salvam (...) (pág.74)».

Por vezes, penso que um homem como Bernhard que teve uma infância difícil, tratado como ilegítimo, traumatizado pela morte precoce da mãe, vivendo com os avós que, com dificuldade, lhe deram uma educação musical e cultural sólida, pela estadia traumatizante num colégio nacional-socialista que rejeitou e a tuberculose séria que o acompanhou desde 1944, moldaram-lhe a maneira de ser e de escrever. É óbvio. Tal como é evidente a sua relação com a Áustria a quem nunca perdoou a sua aventura nazi e que continuava com um antisemitismo larvar. Por causa disso proibiu que muitas das suas peças tivessem palco em território austríaco! Contudo, premiado e reconhecido ao contrário de uma Nobel, nem citada na wikypedia junto com outros, Elfriede Jielinek! Que estranho país que trata assim os seus escritores. Morreu em 1989.

Editora Minotauro. Tradução de Maria Olema Malheiro. Edição original de 1982, ed, portuguesa 2019. Foto da Campo das Letras.