O jornalista Rui Pereira obrigou a agência espanhola EFE a retractar-se, a pedir-lhe desculpa e a pagar-lhe uma indemnização pelas referências caluniosas que fez a propósito de um trabalho do jornalista português sobre a ETA. Esta vitória do carácter sobre a arrogância, da verdade sobre a mentira, do jornalismo sobre a propaganda, foi silenciada pelos media portugueses, com excepção do “Público”. Leia as respostas de Rui Pereira às perguntas do CJ On Line www.clubedejornalistas.pt e talvez consiga perceber as razões desta cortina de veludo.
Depois de teres levado a questão a tribunal, que justificações apresentou a EFE para as acusações que te fez publicamente?
Antes do mais, desejo agradecer ao Clube dos Jornalistas a oportunidade que me é dada para responder (de forma necessariamente alongada) a um conjunto de perguntas difíceis sobre este processo, que tem um lastro de vários anos e ultrapassa largamente o seu conteúdo puramente judicial. Para além do Clube, em Portugal apenas o jornal Público abordou o assunto, na sua edição de 28 de Abril de 2006, com as contingências inerentes a uma notícia e, em particular, a uma notícia sobre uma questão tão “incómoda”.
Por outras palavras, no momento em que respondo a esta entrevista, 30 de Abril, nenhum outro órgão de comunicação social do nosso país encontrou matéria de noticiosa no facto da agência oficial de notícias de um Estado, que reivindica atingir um público de 100 milhões de pessoas no que designa o “universo EFE”, ter tido de, humilhantemente, desmentir-se e apresentar desculpas públicas a um jornalista free-lancer português, isolado, que em tempo de tantos terrorismos, acusara de “simpatias terroristas”.
Estar absolutamente seguro de que não vivemos o tempo da “guerra ao terrorismo”, como milhões de pessoas no mundo, entre as quais me incluo, sabemos não estar, não significa que estejamos a viver tão somente o sinónimo que, com muita graça, o ex-Monty Python”, Terry Jones, encontrou para essa dita “guerra ao terrorismo”: - o “bombardeamento de um substantivo abstracto”.
Parece-me que, na sua devida proporção, o que nos demonstra este caso, subdividindo-o entre o jornalismo espanhol e o português, é que decerto voltam a fazer sentido as grandes palavras de Sophia, escritas num tempo bem menos outro do que parece o actual: “vivemos o tempo dos chacais” no caso do jornalismo hispano sobre a questão basca. E, no caso português, vivemos, mais triste e simplesmente, “o tempo em que os homens renunciam”.
Dito isto, a concreta resposta à pergunta não é possível sem atingirmos a centralidade do conteúdo da “notícia” da agência EFE que, a 15 de Outubro de 2003, dedicou três dos seus oitos parágrafos à entrevista que realizei com a ETA e que acabava de aparecer publicada no 24 Horas e os outros cinco parágrafos à figura do entrevistador! Tratava-se de um linchamento profissional e pessoal que se processava em espiral que transcrevo no original para que não se possa imaginar ter-se aqui alguém “perdido na tradução”:
1- [Fulano de tal] “periodista portugués de conocidas simpatías hacia los sectores radicales vascos”.
2 – “La entrevista, realizada por Pereira en septiembre pasado, en un lugar desconocido de Francia, al que asegura el autor que fue conducido en un vehículo cerrado”.
3- “Pereira, autor de dos libros en Portugal con una visión poco objetiva sobre el País Vasco,
4- está considerado en círculos periodísticos portugueses como claro simpatizante de la banda terrorista ETA, en muchas de cuyas páginas de internet es citado en tono laudatorio”.
5 – “Rui Pereira, que en tiempos trabajó en el semanario "Expresso" y salió de éste en circunstancias poco claras,
6 - ofreció su material medio por medio, aunque sólo fue aceptado por el sensacionalista "24 horas".
Isto é: com a credibilidade que, em teoria, possa merecer, a agência informativa oficial espanhola dá-se conta de que um determinado jornalista tem “conhecidas simpatias” com um dos sectores sobre os quais escreve: “os radicais bascos”.
É a partir desta “falta”, que o autor assegura “que foi conduzido num veículo fechado”, mas, em verdade, quem pode garanti-lo?, uma vez que, para além de tudo o mais, ele é autor de “dois livros pouco objectivos” sobre a questão basca. E, acima de tudo, é considerado (não por quaisquer procedimentos judiciais, não por quaisquer relatórios policiais, não por documento algum de qualquer inespecífica espécie), mas sim por não identificados “círculos jornalísticos portugueses” já não como adepto dos “radicais bascos” a granel, mas sim da “organização terrorista ETA”.
Atestam-no as “referências laudatórias” nas (inexistentes) páginas web da ETA, que não é propriamente um portal da net, como podemos dar por provado. As quais, páginas e referências, também não são na notícia, nem serão jamais em documento algum juntado ao processo pela defesa, exibidas.
O mau carácter, porém, do pseudo-jornalista (subjectivo, simpatizante radical e terrorista) é atestado por fim, pelas “circunstâncias pouco claras” em que saiu do prestigiado semanário “Expresso”, para acabar mendigando que lhe publiquem um material que só o “sensacionalista” 24 Horas aceitará.
Só entendendo esta espiral discursiva de “esquadrão da morte” dirigida contra um indivíduo que o autor da notícia não conhece nem nunca conheceu, se percebe como é que tudo isto é escrito por uma agência noticiosa sem fontes, sem ouvir o visado e, cereja sobre o bolo, com uma nota de crítica literária (“livros pouco objectivos”) enfiada pelo meio de um despacho noticioso.
Qualquer jornalista (não confundir, necessariamente, com portador de carteira profissional de jornalista) sabe tão bem o que isto é, quanto indefensável o é. E foi-o. Apresentarei, em seguida, as principais teses da defesa, acrescentando as réplicas que as inviabilizam.
Percorrendo os documentos do processo, que são agora (felizmente) públicos, ver-se-ia que a agência EFE, na sua primeira contestação, nega a identidade do redactor. Para, em seguida, sustentar que a notícia é escrita “de acordo com as regras jornalísticas espanholas”.
[Réplica: - Desmerece]
Que “simpatizante dos radicais” é “economia de palavras e objectividade das mesmas”. Tal “proximidade do Assistente [queixoso] aos sectores radicais bascos é sentida [sic] por vários jornalistas portugueses e espanhóis, e revelada também pela assiduidade das suas colaborações com o jornal Gara”, diário de linha editorial independentista.
[Réplica: - “Sentida”? Em que termos, físicos?, psíquicos?, para-normais?... quais jornalistas? A “assiduidade” das colaborações com o diário Gara, por seu lado, resumir-se-á a um único artigo escrito num âmbito em que vários jornalistas e intelectuais do mundo foram convidados pelo jornal a escrever sobre a realidade da tortura, no quadro, inclusivamente, de iniciativas da Amnistia Internacional contra a tortura. Uma das pessoas convidadas fui eu.. Nunca escrevi nenhum outro artigo para o Gara, supondo que isso poderia significar algo mais do que escrever um artigo para o Expresso, por exemplo].
Aliás, acrescentava a defesa, para desqualificar o jornalista, “podemos também encontrar livremente na Internet algumas petições ou textos de solidariedade com os sectores radicais bascos que são assinados pelo Assistente”, perguntando-se se “não representará isto um sinal de proximidade”?
[Réplica: a defesa “ajuntou”, de facto. Arregimentou um abaixo-assinado contra a “ilegalização das ideias”, a propósito da ilegalização da Batasuna. No ajuntamento havia outros simpatizantes etarras, assumindo a linguagem da “notícia”. Conforme os documentos 15 a 17 e 24, apresentados pela defesa, aí encontraremos então: Gerry Adams; Santiago Alba Rico, filósofo. Baptista-Bastos; Manuel Carvalho da Silva; Pete Cenarrusa, secretário de Estado do Idaho (Estados Unidos). Francesco Cossiga, ex-presidente de Itália e membro permanente do Partido Popular Europeu; António Miró, pintor. Adolfo Pérez Esquível, Prémio Nobel da Paz. Alec Reid, sacerdote, mediador no processo de paz da Irlanda. James Petras, professor da Universidade de Birmingham, etc., etc., etc.]
A EFE não se pronunciará, nunca, sobre a “economia de palavras e objectividade” da expressão”simpatizante da organização terrorista ETA”. A defesa preferirá saltar para a parte referente à saída “pouco clara” do Expresso, para pretender como “na verdade, não poderá deixar de causar alguma estranheza para um jornalista, que após a colaboração de vários anos do Assistente com o supra-mencionado semanário, seja a mesma interrompida de forma mais ou menos inesperada” [?]. Uma saída, acrescenta a defesa, sem especificar, que foi “alvo de especulações no meio jornalístico, em particular, na redacção do Expresso”.
[Réplica: O que há de estranho em trabalhar num sítio, deixar de trabalhar nesse sítio e ir trabalhar noutro sítio, como foi o caso, por proposta do próprio à Sojornal? Sem qualquer processo judicial, por puro, mero e sumário mútuo acordo? Sem qualquer negociação nem discrepância indemnizatória? Mais, essa “colabroração”, ao ser interrompida de “forma mais ou menos inesperada” (para quem?), tornou-se alvo de “especulações”. O que, como sabe qualquer jornalista, incluídos os da agência EFE constitui a base mais idónea para se fazerem notícias].
Mas aqui, a defesa tinha trunfo. E acrescentava, como “as razões da saída podem ser clarificadas pelo [à data] subdirector do semanário Expresso [hoje seu director], Henrique Monteiro, melhor identificado no rol de testemunhas”...E com isto terei de entrar na “conexão” portuguesa do assunto, porque, ouvida em sede de instrução contraditória, a mencionada testemunha clarificará da seguinte forma aquilo que a defesa deixara, na sua nebulosa, em suspensão: “o Rui Pereira pediu a demissão depois de confrontado pela Directora do pessoal com o facto de estando de baixa desenvolver trabalho jornalístico para a elaboração de um livro que ele próprio viria a publicar. No entender do depoente a saída de Rui Pereira deveu-se igualmente a uma sucessão de comportamentos pessoais e editoriais considerados reprováveis” E mais não disse, ratifica e assina.
[Réplica: Percebe-se, assim, a ausência de qualquer processo disciplinar, de qualquer atitude do jornal relativamente ao seu jornalista, cujo livro seguinte que publicaria seria uma obra colectiva preparada com vários autores em 15 dias com a editora Campo das Letras, que o testemunha evidentemente, mais de meio ano depois de ter saído do Expresso. Quanto à clarificação da exposição da testemunha sobre as razões da saída, a própria defesa da EFE terá ficado tão esclarecida quanto o leitor: “uma sucessão de comportamentos pessoais e editoriais considerados reprováveis” [de que não fica para amostra um só exemplo]. E mais não disse, ratifica e assina”. Por minha parte, como não se chegou a audiência, ficar-me-ei, publicamente, por aqui, com um “sem comentários”, a que acrescentarei estar longe de mim tecer considerações sobre o que possa passar-se na consciência de terceiros.]
Depois de me ter alongado tanto nesta resposta, posso apenas dizer que ela é, apesar de tudo, um resumo ínfimo, do constante do processo, que terei todo o gosto em publicitar a quem revelar interesse e o sentir como algo de útil.
Na questão do País Basco, como interpretas o facto de a agência EFE tentar desvalorizar o teu trabalho com a acusação de parcialidade, quando a cobertura noticiosa dos grandes meios de Espanha é, mais do que parcial, preconceituosa e perfeitamente alinhada com uma das posições?
É um truque velho como a mentira o de acusar o outro das nossas próprias faltas. O problema da cobertura espanhola do conflito basco antecipa, em muito, o que viria a seguir-se um pouco por todo o chamado Ocidente, após o 11 de Setembro de 2001. Antecipa-o porque já em 1983, altura do primeiro governo socialista de González, se aprovou um plano político-militar chamado Plano Zona Especial Norte (ZEN), que além de advogar as acções dos esquadrões da morte como os GAL, por exemplo, apontava à imprensa, entre outras grandes linhas propagandísticas, três curiosos tópicos: «Dar informações que personalizem os terroristas. (...) [Promover] acções nos meios de comunicação social mediante a difusão de notícias falsas, emprego de uma semântica que não favoreça o grupo terrorista etc...». E o texto concluía: «Basta que a informação seja credível para que se possa explorá-la».
O Plano ZEN seria aprovado pelo parlamento de Madrid, reunindo um consenso de adesões a que poucos jornalistas conseguiraim, posteriormente, furtar-se sem correrem sérios riscos de “dessocialização profissional”. Outros perceberam como era bem mais doce docilizarem-se e aplicá-lo.
Três exemplos desta aplicação a dirigentes da ETA, por respeitáveis órgãos de informação espanhóis, ao longo dos anos seguintes: Artapalo é alucinadamente descrito deste modo: «A sua maior afeição é matar gatos. Pega no felino entre os braços, acaricia-o, faz-lhe caretas e, logo, estrangula-o». (Tiempo, 15.4.91). Sobre Pakito, fica a saber-se através do mesmo número da revista que ele é «duro, implacável e temível». Txomin, por seu lado, além de ter «mais de 150 assassinatos na consciência», ostentava um perfil correspondente, de acordo com a Cambio16 de 12.5.86: «dorme todas as noites numa casa diferente e a cada manhã muda de carro. Desloca-se sempre na companhia de guarda-costas e cães pastores alemães». Por esta altura, acrescentava a revista, a sua vida afectiva também melhorara, depois de uma longa fase em que «não tinha os êxitos com as mulheres de que agora parece desfrutar, devido ao seu cargo como chefe máximo da ETA militar».
No ano seguinte, em 1987, o PSOE exigirá a colaboração da imprensa -como o fará Bush, após o 11 de Setembro de 2001- ditando que esta cooperação “baseia-se numa exigência concreta: a da homogeneidade no tratamento informativo” da “questão basca. Dez anos mais tarde, aquando da morte pela ETA do vereador do PP, Miguel Ángel Blanco, que tanto afectou senão a sensibilidade pelo menos a racionalidade de muito escriba luso, publicitará o Grupo Zeta e Antena 3 Televisión –um dos maiores do Estado espanhol- num texto intitulado “No somos neutrales”, o seguinte, à guisa de conclusão: “anunciamos que faremos o possível para os que colaboram com os violentos, activamente ou mediante um incompreensível silêncio, não encontrem um só resquício pelo qual transmitir as suas obscuras consignas nos nossos meios de comunicação”.
- Que resposta tens para a tese de alguns de que a simpatia por uma causa é incompatível com a «independência» do jornalismo?
Citemos do Livro de Estilos de um diário português de referência, o Público, o artigo 5º do seu articulado sobre Princípios e Normas de condua profissional, onde se lê: “A imparcialidade não é sinónimo de neutralidade quando estão em causa valores fundamentais da vida em sociedade. O PÚBLICO e os seus jornalistas não se sentem obrigados a ser "imparciais" nos conflitos entre liberdade e escravidão, compaixão e crueldade, tolerância e intolerância, os direitos humanos e a pena de morte, democracia e ditadura, livre informação e censura, a paz e a guerra”.
Consideremos, ainda, como “causas” os seguintes princípios do Código Deontológico dos jornalistas portugueses: “O jornalista deve salvaguardar a presunção da inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado. O jornalista não deve identificar, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes sexuais e os delinquentes menores de idade, assim como deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor. O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da cor, raça, credos, nacionalidade ou sexo. O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos... O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade e responsabilidade das pessoas envolvidas”.
Que sentido faz considerar das causas dos Princípios e Normas do “Público” ou destas eventuais causas constantes da ética profissional portuguesa –de que a espanhola não difere, excepto quando é infringida, esclareça-se, a propósito do assunto que directamente aqui nos traz-, que sentido faz, questionava, dizer que mais do que a observância destas regras, a adopção destas “causas” é incompatível com o jornalismo?
Noutro âmbito, existe uma consolidada tradição no desenvolvimento dos princípios da profissão, segundo as quais o jornalismo deve pugnar pela defesa dos direitos da pessoa humana, pela pluralidade e pela democracia política, económica, social, cultural, pela paz, etc. Muito claramente, deixei identificado desde o meu primeiro livro sobre o assunto que sou favorável, na linha da Carta das Nações Unidas e da própria Constituição da República Portuguesa (artigo 1º e artº 7º nº3, respectivamente) ao direito dos povos à autodeterminação, bem como, ao “direito à insurreição contra todas as formas de opressão”. Sublinho “todas” e sublinho “Constituição” portuguesa.
Ainda assim, no meu caso, ninguém, absolutamente ninguém, pode apontar-me um só exemplo de apologia ou regozijo por qualquer atentado ou acção armada seja da ETA, seja de quem for. Ao contrário dos festejos para-bélicos de tantos portadores de carteira profissional de jornalista que pela Ibéria e pelo mundo não escondem o entusiasmo com que assistem aos mais impiedosos bombardeamentos de povos e países inteiros. Que silenciam abominavelmente as práticas de tortura em Estados formalmente democráticos, como é o caso do espanhol, que o anterior relator da ONU para a tortura, senhor Théo van Boven, comparou à “Indonésia ou ao Uzbequistão”, no seu relatório de 2002.
O meu último trabalho sobre a questão basca constou de entrevistas a duas dezenas de personalidades. Apenas o Partido Popular, então no poder, se recusou a falar. Aí entrevisto desde a ETA à juíza da Audiência Nacional (o chamado tribunal anti-terrorista) e ex-secretária de Estado do Interior, Margarita Robles. Do jovem basco documentadamente torturado pela Guarda Civil, Unai Romano Igartua, à filha do ex-dirigente socialista Ernest Lluch, vitimado por um atentado da ETA. Do presidente da administração governativa basca, Juan José Ibarretxe, ao ex-embaixador espanhol em Portugal, Raul Morodo. Do sacerdote irlandês Alec Reid, ao presidente do clube dos empresários bascos, José Maria Vaizcaíno. De Arnaldo Otegi, da Batasuna, ao juiz espanhol Joaquin Navarro, passando pelo líder histórico dos democratas-cristãos bascos, Xavier Arzalluz. Foi este material que me valeu a censura em Portugal e a tentativa de linchamento de algum jornalismo espanhol com a cumplicidade de alguns portadores nacionais de carteira profissional de jornalista.
Apesar do excelente trabalho que alguns companheiros portugueses de profissão têm desenvolvido sobre o País Basco -vários dos quais vão coleccionando já também algumas “histórias para contar aos netos”-, pela elementar razão de que há longos anos me dedico quotidianamente, mais do que à cobertura, ao estudo do tema, é natural que eu disponha de um leque tão amplo, profundo e plural de contactos e entrevistas com nomes desta magnitude e latitude na cena política hispano-basca. O que, pelo menos noutros tempos, era sinónimo de profissionalismo, pluralidade, seriedade e honestidade, que são os factores constitutivos daquilo que se adjectiva por jornalismo “independente”. Sem, contudo, moralizar excessivamente a questão, Paul Ricouer, se acentuava como a subjectividade não poderia ser abolida do ofício de historiador, não deixava, porém, de sublinhar como existiam técnicas que ajudavam a controlá-la e a limitá-la. No jornalismo também. O pior é quando falta a vontade de as aplicar. Aí o problema passa a ser, em jornalismo como em tudo o resto, uma questão não de técnica, mas de honestidade intelectual.
Poderemos dizer que a questão da «independência» jornalística não é levantada quando o jornalista se situa no campo dos simpatizantes politicamente correctos? Ou seja, quando os seus pontos de vista coincidem com a opinião dominante?
Era Arthur Schopenhauer quem escrevia na sua “Dialéctica Erística” que os seguidores cegos de maiorias, que ninguém sabe como se formaram, “são como ovelhas que seguem o carneiro aonde quer que ele vá: é-lhes mais fácil morrer do que pensar”. Schopenhauer achava curioso que “a universalidade de uma opinião” tivesse nelas “tanto peso”. No chamado jornalismo de hoje, estamos em condições de perceber melhor o que tanto intrigava o filósofo. É que, para muitos, é-lhes mais fácil não morrer, mas sim viver sem pensar. Por vezes, é-lhes insuportavelmente difícil conciliar, pela forma de vida que escolheram, o viver e o pensar. É daí que vem o ódio ao pensamento que vai grassando nas redacções. Devemos, aliás, recorrer novamente a um historiador, para percebermos como funciona a mecânica do chamado “politicamente correcto”, expressão à qual prefiro a mais directa: “censoriamente perfeito”.
O problema da objectividade –que por si só nos levaria a longos e interessantes matizes teóricos que não vêm directamente ao caso- ilustra-o, nos termos em que o coloca o historiador crítico norte-americano Michael Parenti: “muitos historiadores que se presumem de imparcialidade, não se dão conta de que estão instalados na respeitabilidade ideológica, sem aceitar nenhum ponto de vista que contrarie a corrente hegemónica. Este sincronismo entre as suas crenças individuais e o credo dominante costuma designar-se ‘objectividade’”. Os “dissidentes –prossegue Parenti noutro trecho- estão privados daquilo a que Alvin Gouldner chamou “as presunções de fundo”, o implícito, o não-analisado, as ideias vulgarmente generalizadas que convidam a acreditar que o já aceite é o realmente verdadeiro. É a esta familiaridade estabelecida e a esta unanimidade de enviesamentos que frequentemente se chama “objectividade”. Por esta razão os “dissidentes” têm de estar constantemente argumentando com a apresentação da prova” do que afirmam. Em contraste, [...] a ortodoxia promove os seus pontos de vista através do monopólio dos meios de comunicação e dos sistemas educativos. [...] Esta é a forma mais insidiosa de ideologia, já que considera que o ponto de vista dominante é o único objectivo, o único plausível e credível”.
Substitua-se nestes fragmentos de History of Mistery, de Parenti “historiadores” por “jornalistas” e teremos a pergunta respondida. Mas, indo um pouco mais longe, imaginemos que, por uma qualquer aberração inexplicável pela ciência contemporânea, alguém aparecia no debate público a defender não apenas que a História é, em larguíssima medida, a História da violência, mas que a violência em muitos casos era não só o único, como o mais adequado dos recursos políticos. Imaginemos que, algum dia, alguém tivesse, já não digo, enaltecido qualquer atentado etarra. Mas que tivesse escrito sobre a ETA e a questão basca coisas como estas:
“A guerra insisto, não é um jogo de vídeo: tem sangue, sangue verdadeiro. Mas quando a guerra é a única solução para evitar males maiores, apenas temos de saudar os que arriscam as suas vidas por todos nós e pela nossa forma de vida. Os que lutam para que as sociedades livres e abertas que conhecemos se estendam”. Ou ainda, “Este é um caminho cheio de boas intenções e que visa adversários abomináveis, [...] Daí os sinais de esperança, pois comporta o combate às tiranias [...] Mas é também um caminho muito arriscado que exige uma determinação no limite do messianismo. [...] Este é o idealismo que alimenta a convicção que levou este conjunto de líderes democráticos a decidirem a guerra. Acreditam que o mundo ficará melhor depois. Neste momento só podemos desejar que tenham sucesso e um sucesso rápido”.
Que diriam, perante isto, a agência EFE, os sub, os vice, os ex-, ou os futuros directores dos jornais portugueses, a não ser que se estava perante a mais descaradamente alinhada apologia do terrorismo e da guerra? E, contudo, tudo isto pudemos lê-lo acerca da carnificina cometida contra o Iraque, pelo exército norte-americano, entre outros, no jornal cujo livro de estilos acima citado desobrigava os seus jornalistas da “imparcialidade” em questões como, entre outras, “a paz e a guerra”.
A propósito deste, à escala, modesto “incidente”, cujos desenvolvimentos me parece não terminarão por aqui, e se comecei com Sophia, não queria deixar de terminar com as palavras da dedicatória dos seus “Contos Exemplares” ao “Francisco [Sousa Tavares, seu marido] que me ensinou a coragem e a alegria do combate desigual”. É um grande ensinamento. E uma longa aprendizagem.
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TEXTO INTEGRAL DO PEDIDO DE DESCULPAS DA EFE:
“Rui Pereira, Juan Frisuelos e Agência EFE, SA respectivamente assistente, arguido e demandada cível nos autos acima identificados, vem informar estar acordados em pôr termo aos mesmos pela forma seguinte:
1 – O arguido Juan Santiago Frisuelos declara reconhecer que não existe qualquer fundamento para imputar ao assistente Rui Pereira ter «conhecidas simpatias pelos sectores radicais bascos», ou de «em meios jornalísticos portugueses», ou em quaisquer outros ser conhecido por quaisquer «claras simpatias pela organização terrorista ETA», sendo infundadas estas afirmações na notícia divulgada;
2 - Não teve a intenção de, com a divulgação daquela notícia, pôr em causa os valores pessoais ou profissionais do assistente Rui Pereira, nem com a referida notícia lançar qualquer suspeição sobre o tratamento que, na sua obra jornalística e ensaística, faz do conflito basco.
3 - Consequentemente é infundado tudo quanto em sentido contrário se possa depreender do teor daquela notícia.
4 - Perante as explicações e desculpas apresentadas pelo arguido o assistente desiste da queixa que apresentou.”