«Convém, talvez, começar por referir o que está por trás da génese de "Nus" e que ajuda a compreender a sua estrutura: o ponto de partida, quer para a composição quer para as letras, foi o poema "Uivo" ("Howl") de Allen Ginsberg. É um longo poema, de um só fôlego, em escrita automática, que opera por sobreposições, com um ritmo ancrado no 'who' que inicía cada novo quadro, um 'who' surdo, repetitivo, como a pontuação de um contrabaixo, onde Ginsberg faz uma espécie de retrato à base de flashes da sua 'Beat Generation'. No disco, a geração em causa é a nossa, a geração 'lisérgica' bracarense; "Gumes", a faixa longa que abre o disco, é um encadeado de 9 momentos, uma sobreposição de 9 quadros, tanto musical como tematicamente, que tem uma função, digamos, de espinha central, a que os seis temas mais curtos se vêm ligar como desenvolvimento ou sublinhar de ambiências aí contidas. Ou seja, do "Uivo" pegamos nas ideias de retrato geracional e de construção por sobreposição e trabalhamo-las à nossa maneira, com a finalidade não de um poema literário mas de um poema musical.
Porquê o "Uivo"? Num momento em que muitos - demasiados - daqueles com quem crescemos e descobrimos o mundo e o afrontamos, com quem tecemos cumplicidades indestrutíveis e nos habituamos a ver a nosso lado, nas suas pequenas fraquezas e nas suas glórias, quase como parte de nós, no momento, dizia, em que, quase por contágio, abruptamente, sem avisarem, aqueles em quem nos revíamos são ceifados das nossas vidas e definitivamente apartados do nosso contacto, deixando um deserto a progredir à nossa volta, há um incomensurável vazio que nos invade e nos reenvia para a nossa própria fragilidade. Na estranheza em que se transforma então o quotidiano, a memória tende a negar a ausência como uma alucinação redentora, soçobrando o presente, paralisando o respirar. Mas foi também do fundo da memória, primeiro como um ruído imperceptível, depois como uma obsessão implacável, que ressoaram as palavras de Ginsberg - "Vi os melhores espíritos da minha geração destruídos pela loucura, esfomeados histéricos nus..." - trazendo um conforto, um bâlsamo que não julgávamos já possível. E também uma vontade de o cantar, esse passado que não volta mais, esses amigos que não mais cruzaremos, como quem diz adeus, como quem faz uma última despedida. Aquela que não foi feita. À memória... »
Adolfo Luxúria Canibal
GUMES - Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
1.Na noite que se avizinha, um mar de gatos com cio invade os sotãos, ensanguentando as memórias com a dor pungente dos dias em que o gume, o terrível gume das horas afiadas, rasgava os espíritos. Já o clarão das ruas toldava os cérebros com angústias venenosas e vertigens de suicídios sonhadores, na vontade de fugir ao inóspito vazio do tempo da ausência...
2.Acção!Isto é um assalto!...Todos de mãos no ar!Não quero nem um gesto...Passa p’ra cá esse vil carcanholPara irmos daqui sem funerais!...Anda homem ou és um caracol?!Não quero ficar aqui à espera dos maiorais...(Vai junto à porta ver se o caminho está livre para a nossa saída...)No chão! Quero toda a gente no chão...Assim!... Vamo-nos pirar!...Já!
3.Eu sou estas mãos que se fendem na areia como um velho pau
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