Em criança, à falta de possibilidades para viajar, conhecer outras terras outros mundos, viajava pelas Biografias de gente famosa e pelos Diários dos meus autores preferidos.
Entre os diários, não consigo fugir aos "Primeiros Cadernos" de Albert Camus, autor que me seduzia pela clareza e pela luminosidade dos seus raciocínios, e que frequentemente revisito (admiração que nunca quis ver inquinada pela polémica Camus-Sartre).
Parece um absurdo preferir a vida das pessoas à beleza das paisagens, mas assim cresci até ter tido a possibilidade de visitar alguns dos paraísos naturais deste Mundo. E neste aparente paradoxo existencial - viajar pelas vidas dos outros -, muitas vezes, vou tentando colorir os dias.
Vem isto a propósito de um trabalho que fiz e que me possibilitou reunir, de forma acrescentada, no livro "Gente que dói - o conflito basco por quem o vive".
Talvez porque cresci, na infância, na ausência das viagens concretas, das de quem parte fisicamente para um lugar e de quem dele regressa, sempre tentei compreender pressupostos que muitas vezes nos são dados como sendo únicos, autênticos e verdadeiros. Detesto que eles sejam apenas mera ilusão retórica da realidade e resultado da interesseira utilização de quem defende determinado estado de coisas.
Em 2004, ao fazer a viagem profissional para um mundo que eu, como quase toda a gente, conhecia, apenas, pelas notícias dos atentados da ETA - a maioria sangrentos e inumanos, e por isso sempre me pareceram inadmissíveis -, tentei também compreender o que leva a mão a realizar esses atentados. Tentei perceber as causas e as consequências de um conflito basco com séculos e que poderá - e deverá! - ser eliminado se a União Europeia assumir a sua verdadeira condição de espaço supra-estatal.
Nesse sentido, um dos meus objectivos nesse trabalho foi não ficar, apenas, pelo que me era dado somente-a-ler, no país em que cresci, e não resumir essas leituras a um conjunto de conversas com apenas uma das partes do conflito. Era curta essa dimensão profissional, que recusarei sempre realizar por não ver, nela, a verdadeira e abrangente condição do jornalista e do que é informar.
As vítimas da ETA merecem, claro, o sincero respeito deste ser humano que cresceu e vive tentando derrubar as injustiças que tolhem a vontade democrática. Mas não queria resumir o conflito basco à existência e à intervenção da ETA e às suas vítimas, apesar da força daquela organização lhe ter dado uma marca pessoal - tão pessoal como a do IRA na Irlanda do Norte.
O conflito basco está firmado naquilo que, hoje, me parece um curioso absurdo: o desejo basco de ter um território-nação-país num tempo em que a União Europeia se constrói eliminando fronteiras. Numa União Europeia que já aceita a nação basca - por definir nação como uma região e um povo que tenha a sua língua -, mas ainda não definiu como podem esse tipo de nações (e tantas há na União Europeia) ter, por exemplo, uma selecção nacional de futebol. Quer isto dizer que os nacionalismos já são assumidos pela UE; passo seguinte, será o de lhes dar sabor e conteúdo.
O mesmo é dizer: se aceitarmos a norma assumida pela União Europeia, deve dar-se a possibilidade de qualquer cidadão dessas regiões dizer o que quer para o seu presente-futuro.
Penso que isso é assumido por qualquer europeu que deseja viver em paz numa União Europeia que é um conjunto de nações, sem aquele conflito nefasto e paradoxal de ter que lutar - seja com ETA's ou sem elas - para se assumir como Nação.
Ao ir para o País Basco e dele regressar, e mesmo depois de muito ter lido sobre o assunto, mais fico a pensar que o Mundo, de facto, vai ter que dar muitos passos para superar aquele tipo de conflitos.
Nesse sentido, os homens-bons devem tentar aplicar algo que pode doer muito a quem vive demasiado preso ao passado: esquecer, tentar passar uma esponja sobre o que muito doeu. E, nesse sentido, claro, ao falarmos de vítimas do conflito basco temos de incluir não só as vítimas da ETA para incluir, também, as vítimas de quem quis calar à viva força quem lutou e pagou com a morte - por exemplo, como no tempo fascista de Franco -, o gesto de simplesmente falar euskera (língua basca) em liberdade.
Agora, que se fala em mais uma trégua da ETA, e se admite que desta vez algo de bom possa sair dela, deve tentar-se trabalhar para curar todas as feridas que ressaltam desse conflito.
Penso que é disso que fala, por exemplo, Francisco Letamendia, intelectual basco que uma vez entrevistei utilizando esse fascinante utensílio da Internet que se chama e-mail, quando diz ser necessário aplicar, no País Basco, o método que está a ser utilizado na Irlanda do Norte: colocar todos num "locos" (local, lugar) e falarem, em liberdade e em paz, do que os fez e faz sofrer.
Sem querer errar muito, faço a tradução literal do que pretende o professor universitário Letamendia, dizendo que os bascos devem - todos: nacionalistas espanhóis e nacionalistas bascos - falar com a disponibilidade de quem se senta no sofá do psicanalista. Falar para eliminar o ódio que corrói a fraterna disponibilidade para todos, em conjunto, construirem um futuro sem bombas. E, pelo que vi no País Basco, sei que eles são capazes de conseguir a paz e trabalhar para melhorar o seu futuro.
Eu tenho o sonho de viajar num País Basco sem o choro e a revolta das suas desencantadas vítimas.
P.S. de admiração e agradecimento. A reacção dos leitores ao "Gente que dói" surpreendeu-me positivamente. Encontrei muita gente a quem o tema "País Basco" muito interessa; muitos deles sabiam, inclusivamente, mais sobre ele do que eu. A todos, o meu sincero agradecimento pela leitura e, a alguns, o sincero agradecimento pela publicidade desinteressada que fizeram ao falar do livro nos seus blogues - esses modernos diários pelos quais viajo com prazer. Muitos desses leitores são jovens estudantes e, pelos seus comentários sou levado a admitir que mostram uma sabedoria tão imensa que me leva a considerar que há, em Portugal, uma geração que não é rasca mas com coragem para lutar por um país melhor e mais livre. A todos, muito obrigado por terem estado comigo nesta viagem, a de falar sobre um tema que para muitos só não é tabú quando se está do lado mais fácil.
Vítor Pinto Basto.
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