sexta-feira, novembro 28, 2025

«A Morte é um Acto Solitário», Ray Bradbury

 

Cavalo de Ferro, 2019. Tradução de Maria João Freire de Andrade

Se a morte é um acto solitário, neste livro ela é acompanhada por uma multidão de cadáveres. Um autor que escreveu os interessantíssimos «Fahreneit 451» e «Crónicas Marcianas», vê-se agora enredado numa escrita pouco escorreita, num ambiente sufocante de uma Venice em decadência, num policial pouco conseguido. Talvez, até, presunçoso pela quantidade de referências a escritores, realizadores e actores e actrizes que calcorrearam os plateaux cinematográficos. O mistério que envolve esta história é saber quando ou se encontramos o seu fim, mais se assemelhando a um guião de um filme de Hollywood, tudo a bem de construir algo de verossimilhante e com interesse para o leitor. Recomendo-o pouco, mesmo aos que gostam da modalidade.

alc

«Umbria: por fim, o Sul.», António Alves Martins

 

Artes Breves Edições, 2025. António Alves Martins

A beleza de «Umbria: por fim, o Sul» leva-nos numa viagem imaginária rumo ao Sul, proposto por António Alves Martins e que acompanhamos com gosto imenso. Sendo o sexto livro das Artes Breves Edições, de uma série cuja presença marcante do autor não deixa ninguém indiferente, quer pela qualidade da sua obra fotográfica, quer pelo seu grafismo, juntamente com outras formas de arte que se interligam e cruzam, como o desenho e a escrita.

Com a sua nota introdutória poderemos já adivinhar o que se seguirá ou o que contamos nesta viagem e, paradoxalmente, a surpresa que nos acompanha em cada página que voltamos. Surpreende-nos o rigor colocado nas suas fotografias e no grafismo que se observa na consistência formal de todo o livro, enquanto que nos deixamos maravilhar pela poética das imagens que nos são oferecidas. O conceito de Sul é aqui muito abrangente. O Sul, em «Umbria», é a Ideia, como nos diz Mallarmé: «A omnipresente Linha espaçada de qualquer ponto a qualquer ponto para instituir a Ideia (1)», mas é também uma viagem pelas formas, pelas texturas, por imagens que se nos apresentam com as suas nuances e sombras, pelos brancos que nos ofuscam, ou por névoas que nos envolvem. Ou, nos antípodas, pelos negros baços em que adivinhamos movimentos escusos. 

As linhas que assomam nestas múltiplas formas constituem essa liberdade que António Alves Martins nos propõe. Os dois espaços em branco que esmagam a linha  constituem, através do traço, uma afirmação  pessoal de um pensamento que aponta para um destino em que a partida se confunde com a meta. Aqui, em «Umbria» não há fixação, existe uma proposta de uma itinerância contínua, um nomadismo desassombrado, criativo.

O surpreendente em «Umbria» é a necessidade de uma comunicação sufocada com o espectador, o que vê as fotografias e as colagens apresentadas. Surgem pictogramas, signos, letras, linhas que se cruzam em redes, nos muros, em janelas e em fechaduras de portas. Na própria paisagem, as árvores que tentam falar através do rendilhado das folhas, nos arbustos e nas planícies que adivinhamos ondulantes do sul. Nestas imagens sentimos a comunicação da ruína, as «espirais de oiro e azul» que Alves Martins cria num sentido heraclitiano em que nada se repete, nada se toca, mas tudo rasa num movimento de uma mola helicoidal, onde os acontecimentos fluem em utopias marcadas pelo tempo já descritas em «Cidades Materiais». 

Há, em «Umbria», uma necessidade de sobreposição, de intersecção de linhas, de justaposição de formas que assume o objectivo de nos envolver em situação de questionamento constante por parte de quem se reconhece nas imagens oferecidas neste livro. Nesse jogo, que aceitamos em cada página que folheamos, transparece a dúvida, a suspeita, o cepticismo perante o que não compreendemos desde logo, mas compensado pelo maravilhoso, pela luz e contraluz que emanam de cada ideia ou metáfora da imagem. Nesse sentido, em «Umbria» há uma subversão clara baseada no traço, na linha, nas formas, como forma de atingir um imaginário plenamente livre.


ps: «Umbria» é um livro conseguido no que esta palavra tem de totalidade, de um todo coerente, consistente. A sua tiragem foi apenas de 47 livros, 5 são extra-série, o que equivale a afirmar que rapidamente será colocado fora da possibilidade de aquisição directa. No entanto, aconselho a quem queira ficar com ele, a contactarem o autor ou a editora Artes Breves.

alc
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(1) «La Musique et les Lettres». apud em Jean-Luc Nancy, «O Prazer no Desenho»

segunda-feira, novembro 24, 2025

25

 

Do 25 de Novembro é esta uma das imagens que resta. O fim de todas as utopias possíveis, o lastro de "normalidade" de uma democracia cinzenta, afastada das vontades populares de uma outra vida que valesse a pena ser vivida em conjunto. O 25 de Abril continua a ser aquele dia inteiro e limpo.

"Spartakus, Simbologia da Revolta", Furio Jesi

 

VS. Editor. 2022. Tradução de João Coles

Furio Jesi faleceu em 1980, precocemente aos 39 anos deixando-nos, contudo, uma obra ensaística significativa principalmente na questão do conceito de mito. «Spartakus, Simbologia da Revolta» debruça-se sobre os mitos da esquerda, os que sempre acompanharam a construção utópica de sociedades livres em que a esquerda se viu envolvida, mesmo com erros inerentes à aplicação prática numa dada realidade social em ebulição. Furio Jesi parte da revolução espartaquista, entre Dezembro de 1918 e Janeiro de 1919, para notar que o mito já existe no próprio nome da Liga Espartaquista que vai ser o gérmen do KPD e que lembra a revolta dos escravos liderada por Espártaco contra o Império Romano. Reside aqui o mito que guiou Rosa Luxemburgo e Karl Liebneckt a participar numa revolta que, paradoxalmente, não acreditavam poder ganhar mas que serviu de estímulo para a construção de uma sociedade livre. Para além do sacrifício, talvez desnecessário (por uma análise incorrecta da correlação de forças em campo)  dos revoltosos alemães, perpetrado pela social-democracia de Ebert, Furio Jesi expande as suas considerações sobre o que distingue uma revolta de uma revolução. Enquanto que, na primeira, existe uma suspensão do tempo histórico, na revolução há uma apropriação desse mesmo tempo. Uma destrói, a outra constrói e é nessa destruição que existe a suspensão, pela violência e pela identificação próxima com o  outro, de uma realidade que se quer outra. A revolução retoma o tempo normal, sob outras formas, é certo, mas a construção de um tempo é um dos objectivos não escondidos de qualquer revolução. Assim foi em 1789 e em 1917. 

A esquerda actual vive igualmente de mitos. O mito da comuna de 1871, dos conselhos de 1918/19, da Guerra Civil de Espanha de 36/39, do Maio de 68, da guerrilha de Che, mas não deixa de ser sintomático que essa identificação do mito persista nos derrotados e não nas revoluções vitoriosas, como a de 1917. Compreende-se que o sangue derramado dos heróis, construa uma identificação psicológica forte quando a derrota foi o culminar das suas utopias. 

A esquerda, não por acaso, deixou de ser subversiva, dispensando a propaganda como coisa de nazis e fascistas, não compreendendo que ela foi uma das razões que uniu (e ganhou) camadas de gerações revolucionárias em torno de uma ideia comum. Hoje acantonou-se no parlamentarismo deixando para outros a construção de uma sociedade mais livre. A subversão deixou de fazer sentido para largos estratos da esquerda, receosa de perder votos afirmando-se como uma espécie de corpo bem-comportado em debates que julga fracturantes, mas que não são mais do que o caminho óbvio da evolução das liberdades. O tempo aqui não será suspenso, porque não há revolta que lhe valha com estes pressupostos. 

De Furio Jesi:
«Podemos amar uma cidade, podemos reconhecer as suas casas e ruas nas nossas mais remotas ou mais caras memórias, mas só na hora da revolta sentimos verdadeiramente a cidade como nossa: nossa, por ser do eu e aos mesmo tempo dos ''outros''; nossa, por ser campo de uma batalha que se escolheu e que a colectividade escolheu; nossa, por ser espaço circunscrito no qual o tempo histórico está suspenso e no qual cada acto vale por si só, nas suas consequências absolutamente imediatas. Apropriamo-nos de uma cidade fugindo ou avançando na alternância das investidas, muito mais do que brincando, quando crianças, nas suas ruas, ou passeando por elas mais tarde com uma rapariga. Na hora da revolta já não estamos sozinhos na cidade.» (pág.77)

alc

"Jacob's Room", Virginia Woolf

Oxford University Press, 1992

A edição inglesa é de bolso, muito cuidada, capa bonita e já com páginas amareladas. Fiquei com ele numa feira de trocas de livros promovida pela biblioteca municipal junto com outros em inglês. De 58 livros que levei trouxe 7, com o fim de arranjar mais espaço nas estantes já de si a pedirem renovação urgente. Quando me despeço de livros fico sempre com aquela sensação de perda que me leva alguns dias a desaparecer. Esta aquisição completamente gratuita compensou o facto de ter ficado sem alguns e, por ser na língua inglesa, reforçou a possibilidade de a entender melhor em narrativa. Se tenho alguma facilidade de ler em inglês nos trabalhos de ensaio e técnicos, já no romance, e logo em Virgina Woolf, sinto grandes dificuldades. A descrição pormenorizada da natureza, do tempo e das coisas e as frases idiomáticas esbarram numa ignorância consolidada no tempo em que me escusei a ler, com alguma continuidade, romances na língua inglesa, na obra original de autor. Fiquei-me pelas quatro páginas diárias sabendo que o dicionário está ali ao meu lado, amigo. Uma trabalheira que compensar-me-á na procura do original, do genuíno.

alc

domingo, novembro 16, 2025

«In girum imus nocte et consumimur igni», Guy Debord

 

Antígona, 2022. Tradução de Júlio Henriques

Edição sobre o filme homónimo de Guy Debord, é composta por uma introdução de Alice Becker-Ho, que aqui assina como Alice Debord, e seguida de uma nota crítica do autor, em Dezembro de 1977, que se debruça sobre as condições da sua época que despreza absolutamente. Para além da ficha técnica do filme de 1978, «in girum imus nocte et consumimur igni» (1) conta, igualmente, com instruções para a sonoplastia e montagem, assim como «Notas sobre a utilização dos filmes roubados» e uma «Lista das citações ou dos desvios no texto do filme ''in girum...''». Finaliza com um provocador e belíssimo texto de Debord e Gil Wolman «Modo de usar o desvio» publicado em  «Les Lèvres nues», nº8, escrito em Maio de 1956.

Avesso a toda a interpretação do seu pensamento teórico, Guy Debord não deixou de exprimir a sua revolta pelo sistema capitalista e da burocracia estalinista. Para ele, é suficientemente claro o que deixou escrito, plasmado na circunstância do tempo vivido por uma população alienada num espectáculo em que a produção e consumo infinitas de mercadorias é parte integrante dessa mesma alienação. O início do filme é disso um exemplo.

Este livro, traduzido, com rigor, por Júlio Henriques, não é só um guião do filme com o mesmo nome que pode ser acompanhado gratuitamente no YouTube (In Girum Imus Nocte Et Consumimur Igni (1978)) e sem qualquer anunciante a atrapalhar o seu visionamento, o que não deixa de ser irónico. É mais que um guião: são considerações importantes sobre o estado das coisas nos finais dos anos 70, já com a Internacional Situacionista, que ele fundou em 1956, dissolvida em 72. Aí, Guy Debord afirma:

«Mereci o ódio universal da sociedade do meu tempo, e ter-me-ia irritado possuir outros méritos aos olhos de uma tal sociedade. Mas, segundo observei, foi ainda no cinema que provoquei a mais perfeita e a mais unânime indignação. Essa aversão foi mesmo levada ao ponto de me pilharem no cinema com muito menos frequência do que no resto, pelo menos até agora. A minha própria existência no cinema continua a ser uma hipótese que em geral é refutada. Vejo-me, pois, colocado acima de todas as leis do género. Por isso, como dizia Swift, ''não é para mim parco contento apresentar uma obra em tudo superior a qualquer crítica''.» Eis uma boa razão para não perder o filme ou os outros que estão à nossa disposição, embora vistos numa sala escurecida seja bem diferente que a luz difusa das casas. 

Não imagino um Debord nostálgico, muito longe disso, mas não deixa de ser motivo de atenção as observações que faz a uma Paris que foi destruída pelo urbanismo contemporâneo (palavra esta que chama todos os insultos a Debord) ou de uma Florença que ele amou, mas que o impediram de viver por supostas ligações às BV italianas, o que é, de todo, impossível no autor. Bastava para isso ler, mesmo em diagonal como é apanágio dos procuradores, as suas teses. Uma metáfora certeira para as cidades hoje destruídas pelo urbanismo oficial e pela gentrificação. Existe igualmente inscrita nesta obra a publicação referida atrás, de 1956, que vale a pena ler e que versa sobre um tema particularmente interessante nos situacionistas: a noção de «desvio», em francês «dètournement», em todos os campos da actividade humana e, principalmente, no que se chama de «cultura». Trata-se, simplificando, do que se pode chamar de «colagens» de obras ou frases que descontextualizando-as, serão utilizadas em novos contextos criados por quem faz, propositadamente, esse desvio. Para isso, já em 1956, Debord e Wolman, criam uma classificação e um «modo de usar o desvio» precocemente utilizado por Lautrèamont em «Cantos de Maldoror»: 

«(...) Tudo pode servir. É óbvio que podemos não só corrigir uma obra ou integrar diversos fragmentos de obras caducas numa obra nova, mas também mudar o sentido destes fragmentos e alterar, de todas as formas que se julguem adequadas, aquilo que os imbecis se obstinam a chamar citações.» (pág.73)

«Uma palavra de ordem como ''o plágio é necessário, o progresso implica-o'' é ainda tão mal compreendida, e pelas mesmas razões, como a frase famosa sobre a poesia que ''deve ser feita por todos''.» (pág.74)

«A barateza [do desvio] dos seus produtos é a artilharia pesada com a qual se abatem todas as muralhas da China da inteligência. Estamos perante um meio efectivo de ensino artístico proletário, o primeiro esboço de um comunismo literário.» (pág.77)
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(1). Se repararem trata-se de um palíndromo, ou seja, pode ler-se da normalmente da esquerda para a direita, como da direita para a esquerda. Traduz-se por «Movemo-nos na noite sem saída e somos devorados pelo fogo».

alc

sábado, novembro 15, 2025

«Peregrinação em Tinker Creek», Annie Dillard

 

Antígona, 2025. Tradução de Inês Dias

Escrito em 1972, quando Annie Dillard contava com 27 anos, «Peregrinação em Tinker Creek» é um livro singular que conta uma experiência pessoal de observação profunda da Natureza, na Pensilvânia e no Maine, EUA. Editado em 1974, é muito difícil classificá-lo. Pelo menos, sabemos que a autora recusa ser considerada ensaísta, o que nos ajuda a entendê-lo um pouco melhor. Sendo igualmente poeta, Annie Dillard convoca-nos para uma leitura encantadora em torno do Natural, uma experiência quase mística, recusando o antropocentrismo e abraçando os inúmeros actores que fazem do mundo aquilo que é, não o que desejaríamos que fosse. E essa experiência torna-se aterradora se virarmos as costas ao Humano e nos embrenharmos na selva de sobrevivência que é este livro e cujo título chama por uma montanha que reparte o nome com um rio: Tinker Creek. É nas suas margens, nas colinas, nas rochas e nas árvores que encontramos uma variedade infindável de fauna e flora e nos deparamos com a conclusão de que todos os seres vivem essencialmente para parasitar outros animais e vegetais e finalmente morrer. Essa profusão e descrição pormenorizada de plantas, de animais, de pequenos e grandes insectos, de fenómenos naturais extremos ou de simples evolução das estações do ano, obrigaram-me a uma demora na leitura que não me é habitual. Muitas vezes tinha de regressar ao parágrafo anterior e, pasme-se, investigar nomes que pela primeira vez li e que desconhecia totalmente o que eram, fossem eles árvores, insectos, plantas, animais ou células microscópicas.

O misticismo que antevemos em Annie Dillard, muito ilustrado por citações da Bíblia é enganador. Por muito paradoxal que seja, identifico a sua escrita e pensamento mais com Nietzsche e com um animismo moderno do que os editores que, na apresentação da autora, lembram Thoreau. A sobrevivência é uma maquinação deste planeta, sejamos presas ou predadores. E qual a sua mensagem essencial? Vivemos com as cicatrizes que temos, todos nós, e não será por acaso que Annie Dillard nos demonstra, com exemplos excruciantes da vida natural, lembrando-nos as marcas no corpo das baleias, tubarões, ursos, etc. ou a morte de uma rã pela sucção das suas entranhas por uma barata-de-água deixando a sua pele incólume; já as cicatrizes dos humanos são maioritariamente escondidas, ausência essa que é descrita como um planeta onde os seres passam a sua vida a praticarem isso mesmo: a esconderem-se uns dos outros. 

Por outro lado, Annie Dillard, ao contrário de Thoreau, não vive isolada. Tem vizinhos, também come carne, anda de automóvel, fuma cigarros, convive nas cidades, não é uma anacoreta ou uma pregadora do deserto, embora os refira em passos do livro. Não é uma moralista da vida natural, mesmo que adivinhemos um amor infinito pela Natureza que descreve como ninguém, pelo menos que eu conheça. Limita-se a observar, a ver, coisa que o capitalismo ainda não proibiu ou que exija pagamento. E é talvez aí que se encontra o segredo da adesão a este livro por parte dos leitores: a franqueza, a verosimilhança e a genuinidade. Acreditamos nela e seguimo-la nas suas experiências.

«Em tudo na vida há sempre a tentação de perder tempo, fazendo amigos, refeições e viagens comezinhas durante anos comezinhos a fio. É tão consciente, parece tão moral, afastarmo-nos simplesmente das brechas onde os rios e os ventos se precipitam, dizendo ''nunca mereci esta graça'', o que até é verdade, e depois amuarmos até ao fim da vida, sempre no limiar da raiva. Recuso-me. O mundo é mais feroz do que isso em todas as direcções, mais perigoso e amargo, mais extravagante e luminoso. Estamos a fazer a faina, quando devíamos erguer Caim ou Lázaro.» (pág.303)

alc

segunda-feira, novembro 03, 2025

«A Vegetariana», Han Kang

D. Quixote, 6ª ed. 2024 (1ªed. 2016). Tradução do inglês de Maria do Carmo Figueira

Tanto me falaram deste livro de Han Kang, esta coreana que foi nobelizada no ano passado, que tive de ler «A Vegetariana». Iniciei-o no Dia de Finados e acabei-o hoje não como dever cumprido, mas com agrado. Inquestionável que é uma boa escritora o que deixa em claro a pergunta irónica repetida de um amigo meu que vos transmito: «Um Nobel da literatura e, ainda por cima, bom escritor?».

Seja como for e não cedendo à tentação de vos contar a narrativa de «A Vegetariana» fiquei apreensivo ao terminá-la. Não por qualquer causa de índole literária ou da história em si, mas pelo tema quase constante das obras vindas da Ásia, mais abrangentemente, de quase todo o Oriente. A ligação íntima das palavras, dos temas literários e das personagens que as compõem com a  Natureza vegetal, com a flora. Desde sempre e com quase todos os autores japoneses, chineses, coreanos, vietnamitas... há florestas frondosas, folhas multicolores, charcos com vida, uma paleta autêntica da flora mitificada em cada palavra ou «florestas ondulantes que cobrem os continentes como um mar impiedoso» que lhe «envolvem o corpo e elevam-na», como escreve Han Kang. O Ocidente nada tem de parecido na literatura contemporânea: é feita de cimento e ladrilhos e quando existe a chamada Natureza ou está ser destruída, ou aboletada como utilitária para as actividades humanas. No Ocidente, o respeito pelo som do vento nas árvores, pelo silêncio, pela escuridão e mistério das florestas são humanizadas violentamente com o arborismo, pistas de bicicletas, casas para observação de pássaros, gravilhas, desbastes, cortes por instituições ditas «amigas do ambiente». 

Lembro-me de páginas inesquecíveis sobre a flora de Mishima, poemas de Bashô ou de Shiki, Kenzaburõ Õe, Murakami, Kawabata, Jung Chang, Can Chue, Yuo Hua, ou Rithy Panh. Isto para ficarmos somente pelos japoneses, chineses ou vietnamitas. No Ocidente, as flores não têm o carácter místico que adquirem no Oriente. As flores politizam-se facilmente como a papoila ligando-a aos mortos da I Guerra Mundial na Grã-Bretanha, a flor de lis para indicar o nacionalismo francês, o cravo para a Revolução portuguesa de 74, ou o cipreste para localizar cemitérios... seja como for a flor, no Ocidente, vulgarizou-se ao ponto de as não vermos e muito menos no parco ambiente selvagem que ainda existe pela Europa. Não pensem observar muitas «florestas ondulantes» por cá.

A história de «A Vegetariana» desenrola-se num ambiente sufocante de uma grande cidade, paradoxalmente. Mas o desejo dos grandes espaços, a esquizofrenia latente, cujas causas se encontram numa educação violenta ou numa vida submissa para além do suportável, na personagem principal, a tentativa de se «esconder» na terra, a quem ironicamente chamamos «mãe». 

«Teria ela confundido o chão, de cimento do hospital com a terra da floresta? Ter-se-ia o seu corpo metamorfoseado num tronco robusto, com raízes esbranquiçadas a nascerem-lhe das mãos e a agarrarem-se à terra escura? Seria possível que as suas pernas se esticassem no ar, ao mesmo tempo que os seus braços se enterravam em direcção ao centro da terra, com as costas rígidas e direitas de forma a permitirem que os seus membros crescessem? Enquanto os raios de sol inundavam o corpo de Yeong-hye, teria a água que saturava a terra sido absorvida pelas suas células, acabando por brotar flores da sua púbis? Seria possível que, quando Yeong-hye se equilibrara de pernas para o ar e alongara cada fibra do seu corpo, todas essas coisas tivessem despertado na sua alma?» (pág.177)

alc

quarta-feira, outubro 29, 2025

«Idade da Perda», Daniel Jonas

 

Assírio & Alvim, 2025
Sigo Daniel Jonas com a exacta regularidade com que publica. Na poesia portuguesa contemporânea são poucos que acompanho, mas quando o faço é sem qualquer entrave. Não folheio o livro para ver se o levo ou não. Aqui, com este poeta, com Jorge Sousa Braga, Rosa Oliveira, Golgona Anghel, Maria Lis, Ricardo Gil Soeiro, José Ricardo Nunes ou Miguel Manso não há cá ademanes. É novo livro? Levo-os e pronto. Há outros que os levo igualmente, mas depois de manejados com mão destra e olhos atentos. 

Com «Idade da Perda» o que me chamou a atenção foi a sonoridade, a cadência do poema. Não só as aliterações muitas vezes utilizadas, mas a métrica atenta que seduz o leitor na toada do soneto camoniano ou na ironia da cantiga de maldizer ou de amor. Se quisermos igualmente a cantiga de amigo leia-se «Vai-se o meu colega segundanista» uma metáfora bem sucedida ao ambiente universitário. Mas «Idade da Perda» não se inicia assim, irónico e prazenteiro. Antes pelo contrário: Daniel Jonas convida-nos «(...) A casa junto ao lago, / consolo de quem a solo / junto ao mar de Tiberíades / pressente a paz da multidão de peixes.» (pág.11) Após o bíblico entra-se no nascimento, nas ligações físicas, no crescimento, em todo o momento em perda de vida, saboreando-a ou apartando-se dela. A vida em perda constante só sobreleva o conselho: «Guarda o teu sorriso, filho meu / e nele a espontaneidade da surpresa - / não digas que já nada te surpreende - / mas conserva a graça de te admirar / a sabedoria do novo, nem que seja do escândalo. (...) /Não deixes escapar pela raiz / esse mundo querendo crescer. / Assim serás para sempre o mais feliz dos homens / depois de mim.» (pág.19).

Em «Avalon» nasce-se como fruto. Como árvore através de uma queda vegetal: «Colher a promessa importa antes. / A suave abdução / O corte com a corda que o prende / À artéria vegetal da mãe / Em que se adia. / Prestar-se socorro ao suco / Desatarraxá-lo como uma lampa: / A luz dorme no fruto.» (pág.24) E o esquecimento como parte dessa vida aqui aflorada em «Caducos»: «Desprendem-se os amigos / como folhas de ramos. / Desaprendem-se os amigos / / com os anos // a figueira que deu fruto / nem sombra dá / para seu luto.» (pág.27) E em «Cinzas» o refazer o mundo pelo eterno vigor da transformação natural «Lança ao rio o pai que te resta.» (pág.30) ou pousar o momento melancólico em «Demasiado Mar»: «Quando nos fingimos de morto, a vida acredita.» (pág.50). 

Destaco o longo poema «Na Filipe Folque» (pág.67 a 73) em forma de auto-retrato irónico não sem que alguma raiva transborde para os espaços em branco com que descansamos a leitura deste extraordinário exercício: «(...) Irei assim eu morrer tantas vezes quanto mas permita / a vida, aqui na Filipe Folque como no mundo todo. / Não hei-de ser eu em vez de mim / nem me queira viver  quantas sombras de mim me some. / A não ser que me construa na grande luz / que de repente me escurecer e assim me suma. / Um auto-retrato é mais exacto quanto mais trair o portador.(...)»

alc

«O PREC e o Relógio das Revoluções», Aldo Casas e António Louçã

 

Parsifal, 2025
Não se trata de uma simples comparação entre quatro revoluções, até porque não estamos perante um modelo de análise simplista da História. Antes pelo contrário: há complexidades várias no decorrer do tempo político e social nessas mesmas revoluções. As particularidades revolucionárias da Comuna de Paris de 1871, não são as mesmas da Revolução russa de 17, dos Conselhos alemães de 18/19 ou da Revolução portuguesa de 74/75. Mas há, como não poderia deixar de ser, pontos comuns que António Louçã e Aldo Casas põem em relevo neste livro.

Desses pontos comuns realça-se sobretudo a apropriação dos meios de produção pelas massas populares, pelos pobres, que tentavam auto-organizar-se em conselhos autónomos livres. Muitas vezes de forma ingénua, hesitante, outras enraivecidos pela fome, pelo cerco ou pela miséria souberam usar a força para se apropriarem não só de fábricas, das instituições públicas, de casas devolutas, dos campos terratenentes, mas também expulsarem os possidentes das suas próprias vidas comuns criando a possibilidade de uma outra realidade que há muito desejavam para si baseada na liberdade e na autonomia. 

Paradoxalmente pormenorizada e sintética, os autores apresentam a História dessas revoluções de um modo crítico e visivelmente parcial, estando ao lado dos mais fracos na «conquista dos céus», mas que em nada prejudica a visão geral dos acontecimentos descritos. E assim deve ser a História. Desconfie-se de todos aqueles que chamam a neutralidade para «analisar» factos históricos: ao fazerem-no listam a história anedótica ou falseiam-na propositadamente. Não é o caso deste «O PREC e o Relógio das Revoluções».

Sobre o PREC português, acrónimo pejorativo tardio, que serviu durante décadas para o menorizar ou ridicularizar os dois anos do processo revolucionário, logo após o 25 de Abril e a queda do fascismo e o final da guerra colonial, os factos descritos não constituem novidade, mas as suas consequências são fruto de observações claras, honestas, para além de uma visão crítica já referida. Analisam-se a formação de Comissões de Moradores, por acaso ou talvez não, as primeiras movimentações populares de ocupação de casas devolutas logo três dias após o 25 de Abril, a reconstrução e legalização de infraestruturas dos bairros de lata através de arquitectos ligados ao SAAL, a ocupação de terras a sul (perto de 1,5 milhão de hectares em UCP ou cooperativas agrícolas), a democratização e/ou desmantelamento das estruturas militares repressivas, a ocupação de fábricas cujos donos eram agentes activos na sabotagem económica ou que não atendiam às reivindicações básicas dos trabalhadores, a formação de imensas Comissões de Trabalhadores em todo o país e nas empresas, a movimentação de estudantes liceais e universitários na gestão democrática e pedagógica das escolas, enfim, um turbilhão de desejos e de vontades expressas por uma democracia directa, pelo poder popular.

Se este poder popular no PREC não foi transformado em conselhos revolucionários efectivos como o tentaram em Paris, Petrogrado ou Munique foi pela mesma razão: a sabotagem política de quem se dizia com a revolução, mas que tão rápida quanto eficazmente lutou contra ela, e caso destas últimas revoluções referidas, não hesitando em derramar sangue, prisões ou torturas. Histórias que contam com centenas de milhares de mortos, massacres autênticos que não impedia que se utilizassem até, exércitos estrangeiros para sufocarem os levantamentos populares. 

E se não houve derramamento de sangue em Portugal que possa ser comparável às outras três experiências revolucionárias, não foi por causa dos chamados «brandos costumes» portugueses, como lembram os autores. Os brandos costumes não existiram nos 500 anos de colonialismo selvagem, na brutalidade da Inquisição, nos castigos bárbaros que o «povo» exercia sobre soldados franceses nas invasões, na Guerra Civil de 1832-34, nos mortos do Tarrafal e da PIDE, ou no terror de direita e da igreja no «verão quente» de 75. O que impediu a Guerra Civil em 1974 foi Novembro e a negociação que se lhe seguiu ou que lhe esteve na base. O papel dos «moderados» e dos militares ditos moderados é disso exemplo: não necessitavam de um massacre à «comuna de Lisboa» como lhe chamava a direita e a sua extrema, porque a esquerda perdeu o rumo, tendo força e armas, não saberia para que fim usá-las. Os que fizeram Novembro só eram moderados até perderem essa moderação se necessário fosse. Utilizariam as armas sem qualquer problema de consciência. O regime que hoje temos é de uma Constituição que já nada diz e que a esquerda teimosamente afirma conter «conquistas irreversíveis» que mais não é do que sobras de um Estado Providência depauperado e um item indispensável para a social-democracia. No entanto, após 50 anos, as classes possidentes em Portugal já não necessitam da democracia. Querem uma outra coisa que não tardará a conhecermos. Contudo, o que fica daqueles anos inesquecíveis de 74/75 foi a enorme energia de quem nada tinha a perder e tudo a ganhar. As coisas eram diferentes, tornaram-se outras, o entusiasmo e alegria invadiram as ruas, as assembleias, os cafés, os clubes, as empresas, os campos e as casas. A raiva que eles ainda demonstram possuir é directamente proporcional a esta alegria inscrita na genética revolucionária que ainda existe em nós e muito bem expressa neste livro.

alc

segunda-feira, outubro 20, 2025

«A Consciência de Zeno», Italo Svevo

 

Penguin, 2022. Introdução de Gonçalo M. Tavares. Tradução de Ana Cláudia Santos

Um dos motivos que me levam ao modernismo (e tão depressa não sairei dele, embora de uma forma intermitente, é certo) é o seu gosto pelo inconsequente, pela ruptura com a normalidade, embora hoje nos pareça um pouco ingénua, tal a forma abrupta como as sociedades e as mentalidades se transformaram. Nada hoje importa. Svevo escreveu este romance em 1923, entre as duas guerras e está subjacente a derrocada dos valores burgueses: o casamento como mentira, a mulher como objecto que se pode usar e abusar porque efectivamente é explorada pelo trabalho ou pelo género, o comércio como obtenção especulativa do lucro e da usura (aproximava-se 1929 e a crise capitalista que levou milhões à miséria e ao desemprego), a mentira como alfa e ómega de toda a relação, o individualismo exacerbado e explicativo de todas as atitudes sejam elas danosas ou não para os outros, e, principalmente, a anomia social, característico da época a que se deu o nome de modernismo que abarca, ele próprio, outras modalidades e expressões literárias e artísticas. O Outro não existe e essa indiferença só é ultrapassada quando a consciência se obriga a actos pusilânimes, teatrais, algo burlescos, até beneméritos mas desde logo, repentinamente esquecidos e até lamentados pela atracção de fazer o bem.

Italo Svevo tem uma particularidade que admiro num romancista: é íntegro. No meio da tempestade que foram o anos 20, os chamados «roaring twenties» dos Fitzgerald e companhias, ele consegue ver o essencial: a queda. Não que os jovens ricos não a pressentissem, mas esses, na sua maior parte escolheram a guerra e o autoritarismo. Svevo presume o que aí vem, não augura nada de bom e tem razão: a queda dos valores mais sólidos dão lugar à festa terrífica da ditadura, do totalitarismo onde tudo é possível dentro da orgia dos possidentes. A psicanálise, a sua eventual doença, o acaso como um fim que tudo justifica porque já não decide nada é a forma que procura para uma salvação que nunca virá. Digamos que ele será aquilo que Shaw chamou de um «socialista insociável».

Zeno não se enquadra na época, se bem que aqui e ali tergiverse e se encontre com ela. É essencialmente um tipo bom, que aceita e, simultaneamente, recusa a psicanálise e o positivismo, nessa altura em plena expansão. Escreve por ordem de um médico suíço que odeia, mas que cumpre, com este mesmo livro, o que ele lhe exige. Embora longe de um mero diário ou literatura epistolar, coloca-se como um observador na primeira pessoa. Que experimenta, que age e analisa os resultados da sua acção. A parte final do livro é comovedora pela incompreensão da guerra que se lhe atravessa em 1915, em Trieste. E ser triestino é mais que do um mero nacional, é estar num limbo entre ser austro-húngaro (o nome verdadeiro de Italo Svevo é Aron Hector Schmitz) e italiano. Não escolhe um ou outro. É como ser alsaciano, bascos ou catalães franceses. É nascer em Trier, na Alsácia, como Marx, e ser-lhe dito que afinal a cidade é Trèves. Já velho, custa-lhe não conseguir beber o seu café com leite porque uma brigada alemã marcou-lhe a fronteira da sua terra: «zurük!», palavra espúria que se recusa a aceitar. A guerra, em 1915, coincide igualmente com a sua decadência física. Quantas vezes me lembrei, nessa tristeza entranhada de um velho, a «Morte em Veneza»: 

«Naquele momento, lembrei-me de que entre as muitas mentiras que eu impingira àquele observador penetrante que era o doutor S., estava também a de que eu não voltara a trair a minha mulher depois da partida de Ada. Também a respeito desta mentira fabricou as suas teorias. Mas ali, à beira daquele rio, de repente e com espanto, recordei que era verdade que há alguns dias, talvez desde que abandonara o tratamento, eu não tinha procurado a companhia de outras mulheres. Estaria curado, como defendia o doutor S.? Velho como sou, há algum tempo que as mulheres já não olham para mim. Se eu deixo de olhar para elas, ficam cortadas todas as relações entre nós.» (pág.420)

E sobrevoando um futuro da Humanidade:

«Talvez através de uma catástrofe inaudita, produzida pelos instrumentos, voltemos à saúde. Quando os gases venenosos já não bastarem, um homem como todos os outros, no segredo de um quarto deste mundo, inventará um explosivo incomparável, em relação ao qual os explosivos atualmente existentes serão considerados brinquedos inofensivos. E um outro homem, também como todos os outros, mas um pouco mais doente do que os outros, roubará esse explosivo e irá ao centro da Terra para o pôr no sítio onde o seu efeito possa ser maior. Haverá uma explosão enorme que ninguém ouvirá, e a Terra, restituída à forma nebulosa, errará nos céus livre de parasitas e de doenças.» (pág.438)

Italo Svevo morre em 1928 num desastre de automóvel, aos 66 anos. Sendo judeu, vivendo em Trieste, é possível que o mundo lhe tenha poupado ao horror que se seguiu em nova guerra.

A tradução de Ana Cláudia Santos é límpida, o mínimo que posso dizer. 

alc

quinta-feira, outubro 09, 2025

«Livres de Obedecer», Johann Chapoutot


Antígona, 2023.Tradução de Miguel Serras Pereira
«A gestão, do nazismo aos dias de hoje» é subtítulo de «Livres de Obedecer», de Johann Chapoutot. Sobre a «recuperação» dos nazis após 1945 na RFA, creio que já todos temos uma ideia aproximada. Perto de 200 mil de altos quadros do III Reich e das SS, que se mantiveram quietinhos no seu próprio país recusando a fuga que se lhes ofereceu, foram aproveitados para as novas tarefas administrativas que o «milagre alemão» fez surgir em contraponto ao «comunismo» de leste e em particular à RDA. Mesmo aqueles a quem eram imputados graves crimes de guerra e que tiveram penas pesadíssimas, seriam libertados 2 ou 3 anos depois. A «desnazificação» não saiu dos papéis dos Aliados. Mas, quanto a mim, não é esse o tema principal do livro, até porque, repete-se, já sabemos muito dessa triste história.

O que fez Johann Chapoutot de extraordinário, i.e., de verdadeiramente inovador, neste pequeno livro da Antígona? Principalmente, em dois factores: em primeiro lugar a análise da «filosofia» do nazismo, sustentada na trilogia «Ein Volk, ein Reich, ein Führer» onde observamos a estranha ausência de «ein Staat», numa Alemanha, pós-1933, que construiu aquilo que nos compêndios escolares ainda é definido como um «Estado totalitário». Não que não o fosse, mas o autor chama a atenção para a edificação de um estado completamente descentralizado, com várias «agências» e instituições em permanente emulação e até colidindo entre si, radicalizando-se ao ponto do absurdo e do paranóico para agradar e seguir o que eles entendiam ser a ideologia certa do chefe. Era a chamada «feudalidade administrativa» onde não se sabia bem quem mandava e de onde surgiam as ordens, quer no aspecto económico, funcional, da repressão política e racial, de gestão do seu «espaço vital a leste», ou mesmo da guerra. Não estamos perante um estado nazi centralizado, antes pelo contrário, sendo esta a inovação teórica de Chapoutot. O poder foi entregue à «comunidade racial» dos «bons alemães» que se comportavam com cidadãos obedientes em volta do seu führer e capazes de todos os sacrifícios... e atitudes repulsivas contra quem não fosse da «comunidade». Lembremos que a Alemanha de 1933-45 não teve uma Constituição escrita (nunca foi revogada a de Weimar) e a lei era a vontade de Hitler a quem os alemães juraram obediência.

E aqui entra o segundo factor interessante que deduz, exemplificando, o que acabámos de escrever: o acompanhamento da vida de um general das SS e doutorado em Direito: Reinhard Höhn, aluno de Carl Schmit, embora mais tarde este o repudiasse como jurista emérito. No entanto, isso não impediu Höhn de subir na difícil, quanto perigosa, escada hierárquica do nazismo através da protecção de Himmler e Heydrich dois tipos «exemplares» que não sobreviveram a 45, como sabemos. Mas sobreviveu Reinhard Höhn, sem que tivesse tentado a fuga e tendo permanecido sempre na Alemanha apenas mudando o nome durante dois anos. Retomou a sua actividade pondo em prática as suas ideias de administração nazi, agora para as empresas. Tendo claramente a ideia que os tempos mudaram, mas não ao ponto de encararem a descentralização administrativa como um mal, aplica os temas mais caros do nazismo agora para as empresas, cheias de vitalidade e dinheiro com o Plano Marshall. Fundou a Bad Harzburg, uma escola de gestão, onde impôs às centenas de milhares de novos e ávidos aprendizes da democracia, as suas ideias: «gestão por objectivos» , «flexibilidade», «liberalização e diálogo» (!!!), «delegação de responsabilidades», «autonomia», etc... ou seja, todo um programa liberal, mas completamente assente nos pressupostos do estado nazi e na sua teoria militar de «cumprir objectivos» e responsabilização e coacção de quem não o conseguir. Claro que premiar o mérito, era igualmente um importante pressuposto, tal como recusar qualquer «luta de classes» dentro das empresas e substituir o termo «trabalhador» por «colaborador». Um visionário, portanto.

Hhön morreu em 2000. Perto de 4 dezenas de obras sobre gestão foram editadas após 45, sendo muitas delas escritas durante o nazismo, revistas cuidadosamente, retirando os aspectos mais escabrosos da «comunidade racial» e de «espaço vital» que, paradoxalmente, o afastou de Carl Schmit que defendia uma «comunidade alemã» e um «grande espaço». Não é só semântica: ambos eram nazis empedernidos, mas talvez Schmit visse que o Direito, entre eles o Internacional, ainda era para seguir. Nunca esteve preso, mesmo que contra ele, o acusassem de preparar uma reunião em Berlim, em 1941, para «resolver o problema judaico» a leste. 

Valha uma última nota: este general nazi, teve ensejo de continuar, nos seus escritos em democracia a execrar o nome de Rousseau (em primeiro lugar), de Marx e de Proudhon. Ele saberia porquê.

alc

Reinhard Höhn, o general nazi que abraçou a gestão empresarial alemã pós-45

segunda-feira, outubro 06, 2025

Sobre Gaza

 

Não deixa de ser sintomático as análises de alguns, poucos, sectores da esquerda sobre as últimas manifestações contra a política sionista e criminosa de Israel face à ação levada a cabo pela flotilha que rumava à Palestina, como forma solidária de apelar ao mundo que acabe com o genocídio à vista de todos. Da direita e da sua extrema sabemos ao que vêm. Nada de novo e a petição para manter presa, em Israel, Mariana Mortágua só a alguns surpreende. Verdadeiramente, o único ponto do programa que de lá sai que seja real é a necessidade de prender todos os opositores em prisões políticas. Meter todos em prisões, após escrutínios de uma nova polícia política é o objetivo real do projeto securitário da direita e, nesse campo, o governo português não se afasta muito desse desejo.

Mas de alguma esquerda também já nada me causa surpresa quando dizem e escrevem que estas manifestações vêm tarde, que vigorou tempo demais o silêncio sobre Gaza e a Palestina, que, as últimas manifestações são uma gota de água na luta por uma Palestina livre. Sinceramente, não sei o que querem mais (não) fazer. Estar presente em manifestações, ocupar a rua, responder a provocações por vezes fisicamente, aguentar o olhar de desprezo da polícia que não esconde a sua hostilidade transformada em milícias da extrema-direita, abraçar solidariamente amigos que não se vêm há muito, retomar aqui e ali a agenda revolucionária, não vejo outra possibilidade de tornar as vozes claramente internacionalistas. Mas a «análise» de alguns (já não sei se bem intencionados ou não, sinceramente) é isto: por mais que façamos, que ocupemos as ruas, a coisa já vai tarde, o silêncio impera há muito, é impossível lutar contra os dólares e os complexos militares industriais. Ou seja, o conformismo a par com o derrotismo. Talvez, também, cinismo.

Sair do sofá e do facebook é tarefa árdua para alguns, é certo. Mas enquanto estivermos na rua, enquanto se tornar a rua um forum de liberdade, a direita é inexistente, afunda-se na indignidade da sua ação no parlamento e nas instituições que ela quer destruir. Como me dizia um amigo meu na manifestação de Coimbra pela Palestina, bem pujante por sinal, o problema é se perdemos a rua. Acredito que não. Para outros, para os derrotistas, sim, já se perdeu a rua. Perdeu-se tudo. Nada vale a pena.

domingo, outubro 05, 2025

«Perto do Coração Selvagem», Clarice Lispector

 

Companhia das Letras, 2025

«Que façam harpas dos meus nervos quando eu morrer.» (pág.178)

Clarice Lispector escreveu «Perto do Coração Selvagem» com 23 anos. Só quem ler o livro e reler algumas passagens com o cuidado merecido é que pode relevar este facto aparentemente inócuo. Foi precoce na escrita e na morte, igualmente. É gelo, é cruel, é puro aço de um fio de lâmina que se atravessa em nós, sempre pronta a ferir-nos. Ou seja, cumpre-se mais uma vez literatura. Porque nos envolve emocionalmente, mesmo que Clarice Lispector se mostre extremamente distante e pouco interessada no que viermos a sentir pelo que lemos dela. Reparem nisto:

«Quem sou? Bem, isso já é demais. Lembro-me de um estudo cromático de Bach e perco a inteligência. Ele é frio e puro como gelo, no entanto pode-se dormir sobre ele. Perco a consciência, mas não importa, encontro a maior serenidade na alucinação. É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu digo. Sinto quem sou e a impressão está alojada na parte alta do cérebro, nos lábios - na língua principalmente -, na superfície dos braços e também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo, eu não sei dizer.» (pag.20) 

As palavras como traição, como armadilhas montadas para nos apanhar em teias com as quais não nos desenvencilhamos facilmente. Por isso, os indígenas acham que o homem branco fala demais, que esconde o seu sentir através das palavras enganadoras. Creio ser esse o alfa e ómega de um «coração selvagem» que dá título ao livro. As palavras sendo perigosas, possuem, contudo, beleza suficiente para nos levar a um fim, a um sentido traído. 
Como quando escreve em «aço franzindo e esfriando o meu corpo» verdadeiro verso de um poema em forma de aliteração, tal como este «Tudo desliza suave, em combinação muda. Já era no fim - fim de quê? da escadaria nobre e lânguida, inclinada, acenando o longo braço brilhante, o belo e orgulhoso, o fim da noite - (...)» (pág.159) 

A toada é esta, a de Clarice Lispector. Uma impressão que se nos impõe no processo de leitura em que o desapego e abandono é a forma verdadeiramente eficaz na aproximação (também ela erótica) que sentimos pela liberdade total da autora. No entanto, afirma que uma «liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.» (pág.72) Mas que não se pense que as barreiras são transponíveis. É matéria suficiente para construir um mistério a que Lispector deu forma, provavelmente sem um propósito que não seja o que escreveu e como escreveu. Talvez a proposta de um eterno adiamento «porque os últimos cubos de gelo haviam-se derretido e agora ela era tristemente uma mulher feliz.» (pág.116)

alc

segunda-feira, setembro 29, 2025

«Como Ler um Poema», Terry Eagleton

 

Edições 70, 2024. Tradução de Ricardo Mangerona
Isto não é «Poesia para Tótós» até porque se trata de um autor que sigo com interesse o que, por si só, nada prova com a informação graciosamente prestada. Mas posso, contudo, jurar a pés juntos que é verdadeiramente entusiasmante lê-lo. Sendo um filósofo, crítico literário e professor da Universidade de Lancaster, versado em Marx (ao contrário de livros de Estudos Literários portugueses que avisam, logo na introdução e aos estudantes, que abandonam todas as teses de análise marxista e estruturalistas!) e traduzido em inúmeros países (mas não mais que 195, segundo a ONU, sendo que dois deles são só observadores, o que me faz pensar que, nos tempos que correm, fosse avisado a conquista de tal estatuto para Portugal!).

O livro é para estudantes e para tipos como eu. Quer dizer, tipos a quem a vacina da literatura foi eficaz e, não sendo negacionista, foi inoculada por bons professores de Português a quem lhes devo a referência aqui, como um Luís Nogueira ou um António Taborda. 

É evidente que a poesia não será para todos como pretendeu Novalis. Em vez disso, e talvez mais realisticamente, deveríamos ficar somente pela fórmula de Enzensberger sobre os números de leitores (duzentos e tal) e dar-nos por satisfeitos. Ler poesia é um acto de liberdade e uma escolha muito pessoal. Tanto, que só muito raramente escrevo aqui sobre poemas ou poetas. Quando o faço é com todos os cuidados e sem grandes conciliábulos, não vá dá para o torto. E dar para o torto, neste preciso caso, é não estar acompanhado pelo olhar do poeta que poderia dizer «não é nada disso!» ou ter de partilhar emoções coisa que não estou para aí virado. O que também corresponde a um dos capítulos deste livro de Eagleton: a partir do momento em que o livro é publicado, podemos entender qualquer metáfora, alegoria, hipérbole ou comparação como muito bem nos aprouver e nada teremos a explicar, a não ser o de sentir ou procurar na página em branco que envolve o poema, essa resposta, esse mistério a que deu forma e o entrelaçar das palavras escolhidas pelo/a poeta. É aquilo a que também se refere de «textura», «imagética», «sentido», «ritmo» ou o «timbre». É evidente, para Terry Eagleton, que há uma técnica poética baseada não já na rima, no verso ou na métrica (coisas passadas), mas por uma forma muito actual de encontrar a ironia, a fúria, o desdém, os sentidos, através de técnicas apuradas pelos poetas que não abandonaram de todo a forma em detrimento do conteúdo. Ou seja, o conteúdo pode ser, até certo ponto, descoberto pela forma e não o seu contrário. O verdadeiro entusiasmo de qualquer estudante de Literatura e de Poesia, deve ser ainda, suponho com todas as forças do meu ser, a de saber em que consiste um anapesto (di-di-dum), uma assonância (dapple-dawn-draw), um batos, um dáctilo (dum-di-di) uma falácia da encarnação ou, talvez o mais importante, uma falácia mimética, «uma crença de que, digamos, um poema sobre o tédio deve ser, ele próprio, entediante».

É evidente que os exemplos que abundam em «Como Ler um Poema», são essencialmente ingleses e com traduções que vão de Daniel Jonas (Milton, Wordsworth...), José Agostinho Baptista (Yeats), Fernando Guimarães (Shelley), Manuel Corrêa Barros (Elizabeth Barrett Browning), Jorge Vaz de Carvalho (Blake). De resto, o trabalho de Eagleton é ilustrado profusamente com exemplos de poemas de raízes anglo-saxónicas o que não deixa de ser interessante. Alvo de alguma curiosidade e mesmo de apreensão é compararmos as traduções com o original em inglês. Bem sei que uma tradução poética será sempre de uma grande liberdade para o tradutor, mas reparem neste verso de Edward Thomas:

«(...) That once were underwood of hazel and ash» é traduzido por «Que foram raminhos de aveleira e freixo». Bom, adiante Eagleton tem necessidade de ir a este verso e escreve «(...) e em breve serão consumidos até se tornarem outro tipo de ''ash'' - cinzas». Quais cinzas? A tradução engoliu-as.

e esta tradução de Wordsworth:

«Among Arabian sands:» é traduzido por «Por entre a Arábia plana:» em que ficamos perplexos quando o autor nos chama a atenção, mais à frente, com a frase «Ou que é mais bem-vinda do que o som do rouxinol cantando perante o rebuliço dos viajantes num abrigo esconso das areias da Arábia.» Areias?

Terry Eagleton termina deste modo este excelente livro com um pensamento com o qual me identifico completamente e que vos deixo aqui: «(...) Vale a pena notar que, de todos os géneros literários, a poesia parece ser o que mais tenazmente resiste à crítica política, o mais isolado dos ventos da história. Tem a sua própria espessura e densidade, que não podem ser sumariamente reduzidos a sintomas de outra coisa.» (pág.329)

alc

«A Vingança», John Grisham

 

Eis mais um período de nojo em que mergulho nos policiais. Neste, a vingança, passa-se nos finais de 40, após a II Guerra Mundial, com pelo menos metade das 400 páginas a descrever os horrores da Marcha da Morte nas Filipinas, cujas vítimas eram soldados americanos nas mãos dos terríveis japoneses. Não pretendendo brincar com isto, esta longa descrição de Grisham nada tinha a ver com a trama policial em si, a não ser ter sido dado como morto o que eventualmente servirá para apimentar a estória: um herói de guerra de uma pequena vila do estado segregacionista do Mississipi, um rico proprietário de algodão, mata um pastor evangélico que pensa estar enrolado com a mulher enquanto ele passava tempos terríveis num campo de prisioneiros japonês e na guerrilha da selva, tudo por culpa do incompetente e narcisista MacArthur. Chegou aos EUA e deu um tiro no tipo errado. Não era ele o culpado, mas sim um empregado negro que entretanto fugiu para o norte, zona libertada, segundo ele. Segundo nós, nem tanto assim, mas... Conclusão: é condenado à cadeira eléctrica, sendo branco e rico, contudo, não o salvam porque teimosamente não disse o motivo e estava-se em período de eleições e o governador precisava de votos (é sempre assim); perde a casa e os hectares com a brutal indemnização à família do pastor e os filhos do falecido que remédio têm senão estudar em busca de mérito. Pasmaceira de livro...

domingo, setembro 21, 2025

Pode ser sempre bem pior

The Worst is not / So long as we can say ''This is the worst''

Shakespeare, Rei Lear

Quando um lagostim, uma morcela e um vinho branco baratinho de 75 euros, se juntam na forma de Isaltino para borregar um fascista que diz que o vai meter na prisão, como se algemar e confinar na prisão as pessoas fosse a única verdade que lhe sai da boca e a previsível forma de cumprir verdadeiramente o seu programa político, conseguimos antever o que aí vem e ao que chegámos. Quando vejo a esquerda a glorificar a morcela de Oeiras, então batemos no fundo, cujo alçapão escondido se abriu para bater ainda mais fundo e assim sucessivamente até que o poço em que caímos todos se transforme em masmorra. Claro que então será tarde demais. Shakespeare tinha toda a razão quando Edgar diz: «Não é o pior enquanto conseguirmos dizer ''Isto é o pior''.» Muitas lições retiramos com a leitura avisada deste inglês ainda assim com origem galesa. 

A questão não está tanto na multiplicação deste tipo de ''reels'' nas redes sociais que, evidentemente, têm o algoritmo completamente dominado pela agenda ideológica da extrema-direita. Sabemo-lo e calculamos que as opiniões que são publicadas defendendo posições, mesmo em bases mínimas, a solidariedade, a dignidade e a humanidade (que não o ambíguo ''humanismo'') são alvo de diminuição clara de visibilidade e mesmo de censura aberta e sem recurso a protestos, visto que as nossas opiniões estão privatizadas e reguladas em empresas multinacionais. O antifascismo já mal cabe aqui, não tem lugar e se repararem bem, como importante indicador, as páginas «antifa» já quase despareceram há muito.

O problema maior reside no jornalismo autointitulado de «referência». O fascínio mal contido ao fascista maior e ao partido que ele criou, através das páginas destes jornais e televisões, é enorme nas redes sociais. Completamente desproporcionada, chamam Ventura para os seus posts a todo o momento, mesmo quando é atacado, por vezes de uma maneira pífia, que só serve para lhe darem mais poder. É evidente que isto é feito para aumentar audiências que perdem todos os dias pelos meios tradicionais. Duvido muito que a informação, ou «debates», ainda sejam procurados como há uns anos, o que indica que as direcções e administrações estão a perder o controlo da própria informação. Os comentários das televisões privadas e jornais nas redes sociais tornaram-se um autêntico esgoto em que tudo é possível dizer e defender: a pena de morte, as prisões a esmo, o aumento das penas já de si enormes para pequenos crimes, o gozo pela miséria, a denúncia, o boato torpe, a mentira, a menorização da mulher, a boçalidade, a abertura à caça de transgéneros, o racismo, o ódio à pobreza e por aí fora. Isto é permitido por quase todos os meios de informação conhecidos e com ainda alguma expressão no país. Nada é regulado. As caixas de comentários são, neste momento, o pior de que falava no início. E em Rei Lear, o pior ainda não é o pior, porque se disse que isto era o pior!

alc

Listagem de conteúdos tóxica

Gostaria de partilhar convosco a listagem de conteúdos nos últimos 10 minutos na minha página de FB, onde a grande maioria dos amigos é antifascista. Não disse "de esquerda" propositadamente, mas também são muitos. Inegável. Tento não ter fachos por aqui por uma razão simples: não consigo argumentar com o fascismo. É como argumentar com alguém que acredita em milagres. Não dá. Quando os topo, clico numa barra preta que me pergunta se os quero bloquear. Quero.

Por esta ordem de razões, não entendo por que razão, nos últimos 10 minutos de passeio descontraído (pensava eu) por esta coisa, o que me aparece sempre destacado é André Ventura. Hambúrgueres, viagens, candidaturas, conselhos nacionais, etc. Atrás dele, o Chega e sus muchachos mais as histórias edificantes que arrastam, o tiro no Kirk e reels com toda a sua pobre ideologia, o almoço de Gouveia e Melo com Ventura, o Henrique Raposo, um Tavares, a Maria João Marques, o Nuno Rogeiro junto com um avôzinho reaça e meio estúpido, o Trump e Netanyahu. Todos eles com insultos à mistura, a outra face da propaganda negativa à propaganda positiva que eles fazem. Certo é que até há alguns insultos com piada. Mas eu pergunto: a quem isto serve? Salvaguardando o genocídio em curso na Palestina cuja luta é uma causa a que não podemos virar a face sem que perdamos a nossa, não vejo nada de razoável nesta inundação de posts. Faz-nos mal e o fascismo também se alimenta desse destempero, acreditem. Gostava muito que a esquerda discutisse a sério as múltiplas possibilidades de uma outra sociedade (não esta, evidentemente) que valesse a pena lutar e não se acantonasse somente no reel, no meme, na boca antifascista.

quinta-feira, setembro 18, 2025

"O Ruído do Tempo", Julian Barnes

 

Quetzal, 2016, reimpr.2024. Tradução de Helena Cardoso
Volto a Julian Barnes e os mais atentos por aqui saberão por que razão o digo. Este livro é um tratado sobre a cobardia. Sobre as tragédias e as farsas que lhe dão origem. Julian Barnes subverte a ordem dos factores que Marx criou para explicar a causa dos fenómenos sociais (ou da sua impossível repetição) e que, na URSS estalinista, não é arbitrária - assim é, ao contrário, grafada «a farsa e a tragédia» (pág.52). A farsa como espectáculo primeiro e a tragédia como seguimento lógico do que não foi possível ser observado como sucesso do poderoso estado da burocracia estalinista. Ou ainda e mesmo pelo seu sucesso, a tragédia chega inalterável aos seus autores. Chostakovich, um compositor russo impossível de ser contornável, é a personagem deste romance de Barnes. Não é um cobarde, mas é ambíguo na sua relação com o poder. Foi chamado uma única vez para ser interrogado na Lubianka e quem desapareceu foi o seu interrogador. Teve uma sua ópera censurada por Jdanov e desistiu de voltar a compor mais óperas, foi humilhado por Stravinski e Nabokov (provou-se mais tarde que este era pago pela CIA) em Nova Iorque, aceitou críticas de Prokofiev embora se dessem bem, aplaudiu um discurso de um funcionário jdanovista que o acusava de «formalismo» porque se encontrava imune aos longos rebates ideológicos que não ouvia, aceitava os editoriais do Pravda que diziam que a sua música era uma «chinfrineira ruidosa», burguesa e muito pouco melodiosa. Aceitava tudo isto e corrigia-se. Até quase ao insuportável. 

Durante a leitura deste livro perguntei-me qual a razão que leva uma personagem brutal como Estaline (Lenine dixit) a deixar incólumes a poeta Akmathova, o escritor Pasternak, a opositora Kollontai, ou outros artistas do futurismo russo, sem ser por puro capricho. Tal como aconteceu a Chostakovitch. Tendo aceitado tudo o que o poder lhe deu, deixou-se ir aos poucos, indiferente, anestesiado e focado possivelmente na única vontade que ainda o fazia mover: a música, os dois filhos e talvez a recordação terna das suas mulheres, mas a que preço? Parece-me ser esta a questão central de «O Ruído do Tempo». Que nos faz pensar que um único acto de coragem pode ser a factura incómoda da cobardia ou indiferença presente em nós.

É evidente que Estaline é dos poucos políticos que tinha uma capacidade de previsão inolvidável. Previu que três quartos do seu comité central morreria antes dele, mesmo os velhos membros do partido bolchevique, o que é obra de um chefe visionário, um homem virado para o futuro através, igualmente, da retorcida engenharia das almas. Viu-se no que deu. O realismo nunca foi tão falho de realidade quanto o tempo que levou Estaline a ser poder e a exercê-lo com a burocracia de Jdanov. Chostakovitch faleceu em 1975 e nem assim a sua ambiguidade foi levada com a morte dele. O seu tutor político, Khrennikov, ex-secretário-geral do Sindicato dos Compositores Soviéticos, vindo de Kruchev e Brejnev, foi condecorado aos 94 anos por Putin. A farsa continuou.

«Quando olhamos para trás, as tragédias parecem farsas. Era o que sempre dissera, no que sempre acreditara. E o seu caso pessoal não era diferente. Sentira às vezes que a vida dele, como a de muitos outros como a do país, era uma tragédia; tragédia em que o protagonista só podia solucionar o seu dilema intolerável matando-se. Mas ele não o fizera. Não, não era shakespeariano. E agora que vivera demasiado, já começava a ver a sua própria vida como uma farsa.» (pág.177)

Nota última: fui ouvir Chostakovitch, evidentemente. Estando muito longe de ser um especialista em música clássica, ouvi a sua 2ª sinfonia (criticada por Jdanov), a 5ª e a 8ª. Continuarei a ouvi-lo, mas que os meus duros ouvidos deram pela diferença entre a primeira e as outras duas, foi verdade. É possível que Jdanov se tenha enganado? Que a 2ª fosse mais melódica que as últimas de Chostakovitch? Foi o que me pareceu. Os especialistas, os melómanos e os musicólogos saberão dizê-lo.

alc

domingo, setembro 14, 2025

«Uchronie», Emmanuel Carrère

 

P.O.L, 2025 (1986, com o título de «Le Détroit de Behring»)
O conceito de ucronia é relativamente recente e nem os principais dicionários, mesmo o respeitável Larousse e ainda em 1980, conheciam a palavra, embora ela tenha sido utilizada pela primeira vez em 1876 por um filósofo francês de nome Charles Renouvier. Fui rapidamente consultar o meu Houaiss e helas! lá estava ela, a ucronia, junto com o fundador do conceito com a seguinte definição: «1. História apócrifa, recriada em pensamento como poderia ter ocorrido; 2. período, época, tempo imaginário; recordação fictícia dentro de um tempo.» Quanto ao étimo o dicionário coloca-o no francês, embora seja mais óbvio o grego com a partícula de negação «u» junto com «cronos» que, como sabemos, significa «tempo» (com o respectivo deus grego a acompanhar). Portanto, o sr. Renouvier, criou a palavra no seguimento da «utopia» de More no século XVI: o termo «distopia» cujo étimo também é aposto no inglês dystopia só é reconhecido como entrada em meados do século XX com Orwell e Huxley. 

Quanto a utopias e distopias qualquer um de nós já trata por tu estas definições, por via de vidas políticas miseráveis (logo derrotadas) que experimentámos logo aos vinte. Os mais novos terão outras realidades não menos exaltantes. Isto não é para todos e conhecemos bem quer o entusiasmo utópico, quer o horror distópico (o computador disse-me agora que não conhecia esta expressão, imagine-se) tenha as formas que tiver. Mas...e a ucronia? Conhecia-a pela primeira vez com a leitura de «O Homem do Castelo Alto», de Philip K. Dick e que aqui fichei num post. Emmanuel Carrère, na minha opinião um grande escritor, também o cita como livro importante para o desenvolvimento de uma narrativa ucrónica em que os americanos teriam perdido a II Guerra com os japoneses. Este imenso «SE» é a base de toda a ucronia. Mas Emmanuel Carrère avisa-nos, com toda a razão, que não basta somente um «se» para tudo ser uma ucronia. Tem ser observado um registo sério em que as causas e os efeitos históricos tenham sentido, ou seja, que a História adquira uma certa verosimilhança, que a cronologia tenha sentido e as consequências sejam consonantes às causas que as provocaram. O processo histórico nada terá então de novo, a não ser o baralhar dos dados. O que é claramente um processo ideológico, de escolha do escritor e anuência ou rejeição do leitor. Voltando à ucronia de P.K. Dick: os americanos não são completamente derrotados, virão a ganhar em 1949 através da resistência interna, pela fraqueza das potências do Eixo que dominavam a Europa e que entretanto se viram envoltas em lutas internas pelo poder e corrupção. Hitler terá morrido em 1946, doente. No final tudo fica na mesma. As potências aliadas reencontram-se numa democracia musculada e controlada no seu seio e quem provocou a guerra, como a Alemanha, o Japão, ou a Itália, vivem as suas vidas como se não fosse nada e em prosperidade. Ironia da ucronia, não é? Rima e é verdade... no fundo estaríamos como hoje e os 60 milhões de mortos seriam apenas danos colaterais.

Os grandes «ses» da História apresentam-se agora em «Uchronie». Emmanuel Carrère provoca-nos com as seguintes hipóteses, não todas originais nele, mas existentes desde, pelo menos, o século XVIII embora de escritores anónimos (um deles seria Descartes?, coloca Carrère em questão): e se fosse Barrabás a ser escolhido por Pilatos para a crucificação e não Cristo, haveria hoje cristianismo? Ou seja, morrendo de velho Jesus Cristo e pregando até provavelmente ninguém o ouvir e Judas estar quietinho no seu papel de apóstolo em luta com os demais, o cristianismo teria ultrapassado a seita? Este, aliás, é um tema querido a Emmanuel Carrère, desde a publicação de «O Reino» (Tinta-da-China) e que já escrevi aqui sobre ele. Não como ucronia, mas como a ideia inicial de Cristo se tornou igreja. Continua: e se Napoleão tivesse ganho Waterloo? A Europa hoje seria a mesma? E se a Reforma Protestante tivesse ganho à Inquisição latina? E se Gavrilo Princip tivesse matado o amante da mulher completamente transtornado e não tivesse atirado ao Arquiduque Francisco Fernando para reconhecimento posterior, teria existido a matança que foi a I Guerra? Agora nós, que não o Carrère: e se Emídio Santana e os anarquistas tivesses tido êxito no atentado a Salazar em 1937? Teria havido a mais longa ditadura da Europa? E nem num exercício de ucronia isto se deve colocar, mas se a pistola do tal coronel aliado do salazarismo não tivesse encravado e Salgueiro Maia tivesse soçobrado logo ali no Terreiro do Paço, entraríamos para o Guiness como a mais longa ditadura, agora, do mundo? E se Cavaco Silva se tivesse engasgado violentamente com a fatia de bolo-rei, engolindo o brinde, não permitindo discursar durante todo os seus dias de governo?

Deixo-vos com um trecho de «Uchronie» de Emmanuel Carrère que não resisto aqui a colocar, mesmo com tradução minha, o que desde já me leva a pedir as minhas maiores desculpas. É sobre a possibilidade de Hitler ter vingado na sua veia de pintor e existente em «Lord of the Swastika», de Norman Spinrad:

«Nascido na Áustria a 20 de Abril de 1889, Adolf Hitler emigrou jovem para a Alemanha. Serviu o exército alemão durante a Grande Guerra, depois foi integrado em movimentos de agitação política, em Munique. Este período durou até que imigrou de novo, em 1919. Fixou-se em Nova Iorque onde, aprendendo o inglês, levou uma vida precária, exercendo diversos biscates e ocupações nos meios boémios de Greenwich Village. Seguidamente, começou a trabalhar como desenhador de bandas desenhadas. Vendeu a sua primeira prancha em 1930, na revista de ficção científica ''Amazing''. A partir de 1932, colabora regularmente na maior parte das publicações de FC e, em 1935, o seu inglês pareceu-lhe suficientemente desenvolvido para se iniciar como autor de ficção científica. Romancista, ilustrador, editor de um fanzine, consagrou o resto da sua vida a este género literário. Obtém a título póstumo o Prémio Hugo na convenção mundial de 1955, para ''O Senhor da Suástica'', a sua obra-prima, que terminou em 1953, pouco antes da sua morte. Durante anos, foi uma figura familiar do meio da ficção científica, um contista volúvel e malicioso, bem conhecido pelos seus fãs. Hitler deixou-nos, mas as obras que nos deixou permanecem como um tesouro maravilhoso para todos os apaixonados de ficção científica.» (pág.177,178) 

Hitler como autor galardoado de ficção científica, não é enternecedor? Mas a ideologia, embora irónica, está por detrás desta ucronia aparentemente suave e até desejável para as consciências. Mas não embandeiremos em arco: a História não é feita de «ses». Se não houvesse um Hitler, haveria outro e outro e outro, conforme os diversos interesses no jogo político, económico e social. Isso assusta-nos um pouco, mas não é determinismo histórico. Os acontecimentos surgem como um conjunto de causas que confluem num sentido comum. Os professores sabem-no bem quando descrevem, nas aulas, um acontecimento que marcam negativamente o curso da História. O sobressalto perante o horror, interiorizado pelos alunos, como imagens de guerra, invariavelmente, termina com um «...e se?» Provavelmente, seria melhor dar atenção a estas tentativas de reescrever o passado. A ucronia embora inócua liberta-nos, nem que seja por minutos. Um livro a ler se algum editor português propusesse a sua tradução.

alc