quinta-feira, outubro 09, 2025

«Livres de Obedecer», Johann Chapoutot


Antígona, 2023.Tradução de Miguel Serras Pereira
«A gestão, do nazismo aos dias de hoje» é subtítulo de «Livres de Obedecer», de Johann Chapoutot. Sobre a «recuperação» dos nazis após 1945 na RFA, creio que já todos temos uma ideia aproximada. Perto de 200 mil de altos quadros do III Reich e das SS, que se mantiveram quietinhos no seu próprio país recusando a fuga que se lhes ofereceu, foram aproveitados para as novas tarefas administrativas que o «milagre alemão» fez surgir em contraponto ao «comunismo» de leste e em particular à RDA. Mesmo aqueles a quem eram imputados graves crimes de guerra e que tiveram penas pesadíssimas, seriam libertados 2 ou 3 anos depois. A «desnazificação» não saiu dos papéis dos Aliados. Mas, quanto a mim, não é esse o tema principal do livro, até porque, repete-se, já sabemos muito dessa triste história.

O que fez Johann Chapoutot de extraordinário, i.e., de verdadeiramente inovador, neste pequeno livro da Antígona? Principalmente, em dois factores: em primeiro lugar a análise da «filosofia» do nazismo, sustentada na trilogia «Ein Volk, ein Reich, ein Führer» onde observamos a estranha ausência de «ein Staat», numa Alemanha, pós-1933, que construiu aquilo que nos compêndios escolares ainda é definido como um «Estado totalitário». Não que não o fosse, mas o autor chama a atenção para a edificação de um estado completamente descentralizado, com várias «agências» e instituições em permanente emulação e até colidindo entre si, radicalizando-se ao ponto do absurdo e do paranóico para agradar e seguir o que eles entendiam ser a ideologia certa do chefe. Era a chamada «feudalidade administrativa» onde não se sabia bem quem mandava e de onde surgiam as ordens, quer no aspecto económico, funcional, da repressão política e racial, de gestão do seu «espaço vital a leste», ou mesmo da guerra. Não estamos perante um estado nazi centralizado, antes pelo contrário, sendo esta a inovação teórica de Chapoutot. O poder foi entregue à «comunidade racial» dos «bons alemães» que se comportavam com cidadãos obedientes em volta do seu führer e capazes de todos os sacrifícios... e atitudes repulsivas contra quem não fosse da «comunidade». Lembremos que a Alemanha de 1933-45 não teve uma Constituição escrita (nunca foi revogada a de Weimar) e a lei era a vontade de Hitler a quem os alemães juraram obediência.

E aqui entra o segundo factor interessante que deduz, exemplificando, o que acabámos de escrever: o acompanhamento da vida de um general das SS e doutorado em Direito: Reinhard Höhn, aluno de Carl Schmit, embora mais tarde este o repudiasse como jurista emérito. No entanto, isso não impediu Höhn de subir na difícil, quanto perigosa, escada hierárquica do nazismo através da protecção de Himmler e Heydrich dois tipos «exemplares» que não sobreviveram a 45, como sabemos. Mas sobreviveu Reinhard Höhn, sem que tivesse tentado a fuga e tendo permanecido sempre na Alemanha apenas mudando o nome durante dois anos. Retomou a sua actividade pondo em prática as suas ideias de administração nazi, agora para as empresas. Tendo claramente a ideia que os tempos mudaram, mas não ao ponto de encararem a descentralização administrativa como um mal, aplica os temas mais caros do nazismo agora para as empresas, cheias de vitalidade e dinheiro com o Plano Marshall. Fundou a Bad Harzburg, uma escola de gestão, onde impôs às centenas de milhares de novos e ávidos aprendizes da democracia, as suas ideias: «gestão por objectivos» , «flexibilidade», «liberalização e diálogo» (!!!), «delegação de responsabilidades», «autonomia», etc... ou seja, todo um programa liberal, mas completamente assente nos pressupostos do estado nazi e na sua teoria militar de «cumprir objectivos» e responsabilização e coacção de quem não o conseguir. Claro que premiar o mérito, era igualmente um importante pressuposto, tal como recusar qualquer «luta de classes» dentro das empresas e substituir o termo «trabalhador» por «colaborador». Um visionário, portanto.

Hhön morreu em 2000. Perto de 4 dezenas de obras sobre gestão foram editadas após 45, sendo muitas delas escritas durante o nazismo, revistas cuidadosamente, retirando os aspectos mais escabrosos da «comunidade racial» e de «espaço vital» que, paradoxalmente, o afastou de Carl Schmit que defendia uma «comunidade alemã» e um «grande espaço». Não é só semântica: ambos eram nazis empedernidos, mas talvez Schmit visse que o Direito, entre eles o Internacional, ainda era para seguir. Nunca esteve preso, mesmo que contra ele, o acusassem de preparar uma reunião em Berlim, em 1941, para «resolver o problema judaico» a leste. 

Valha uma última nota: este general nazi, teve ensejo de continuar, nos seus escritos em democracia a execrar o nome de Rousseau (em primeiro lugar), de Marx e de Proudhon. Ele saberia porquê.

alc

Reinhard Höhn, o general nazi que abraçou a gestão empresarial alemã pós-45