Antígona, 2025. Tradução de Inês Dias
Escrito em 1972, quando Annie Dillard contava com 27 anos, «Peregrinação em Tinker Creek» é um livro singular que conta uma experiência pessoal de observação profunda da Natureza, na Pensilvânia e no Maine, EUA. Editado em 1974, é muito difícil classificá-lo. Pelo menos, sabemos que a autora recusa ser considerada ensaísta, o que nos ajuda a entendê-lo um pouco melhor. Sendo igualmente poeta, Annie Dillard convoca-nos para uma leitura encantadora em torno do Natural, uma experiência quase mística, recusando o antropocentrismo e abraçando os inúmeros actores que fazem do mundo aquilo que é, não o que desejaríamos que fosse. E essa experiência torna-se aterradora se virarmos as costas ao Humano e nos embrenharmos na selva de sobrevivência que é este livro e cujo título chama por uma montanha que reparte o nome com um rio: Tinker Creek. É nas suas margens, nas colinas, nas rochas e nas árvores que encontramos uma variedade infindável de fauna e flora e nos deparamos com a conclusão de que todos os seres vivem essencialmente para parasitar outros animais e vegetais e finalmente morrer. Essa profusão e descrição pormenorizada de plantas, de animais, de pequenos e grandes insectos, de fenómenos naturais extremos ou de simples evolução das estações do ano, obrigaram-me a uma demora na leitura que não me é habitual. Muitas vezes tinha de regressar ao parágrafo anterior e, pasme-se, investigar nomes que pela primeira vez li e que desconhecia totalmente o que eram, fossem eles árvores, insectos, plantas, animais ou células microscópicas.
O misticismo que antevemos em Annie Dillard, muito ilustrado por citações da Bíblia é enganador. Por muito paradoxal que seja, identifico a sua escrita e pensamento mais com Nietzsche e com um animismo moderno do que os editores que, na apresentação da autora, lembram Thoreau. A sobrevivência é uma maquinação deste planeta, sejamos presas ou predadores. E qual a sua mensagem essencial? Vivemos com as cicatrizes que temos, todos nós, e não será por acaso que Annie Dillard nos demonstra, com exemplos excruciantes da vida natural, lembrando-nos as marcas no corpo das baleias, tubarões, ursos, etc. ou a morte de uma rã pela sucção das suas entranhas por uma barata-de-água deixando a sua pele incólume; já as cicatrizes dos humanos são maioritariamente escondidas, ausência essa que é descrita como um planeta onde os seres passam a sua vida a praticarem isso mesmo: a esconderem-se uns dos outros.
Por outro lado, Annie Dillard, ao contrário de Thoreau, não vive isolada. Tem vizinhos, também come carne, anda de automóvel, fuma cigarros, convive nas cidades, não é uma anacoreta ou uma pregadora do deserto, embora os refira em passos do livro. Não é uma moralista da vida natural, mesmo que adivinhemos um amor infinito pela Natureza que descreve como ninguém, pelo menos que eu conheça. Limita-se a observar, a ver, coisa que o capitalismo ainda não proibiu ou que exija pagamento. E é talvez aí que se encontra o segredo da adesão a este livro por parte dos leitores: a franqueza, a verosimilhança e a genuinidade. Acreditamos nela e seguimo-la nas suas experiências.
«Em tudo na vida há sempre a tentação de perder tempo, fazendo amigos, refeições e viagens comezinhas durante anos comezinhos a fio. É tão consciente, parece tão moral, afastarmo-nos simplesmente das brechas onde os rios e os ventos se precipitam, dizendo ''nunca mereci esta graça'', o que até é verdade, e depois amuarmos até ao fim da vida, sempre no limiar da raiva. Recuso-me. O mundo é mais feroz do que isso em todas as direcções, mais perigoso e amargo, mais extravagante e luminoso. Estamos a fazer a faina, quando devíamos erguer Caim ou Lázaro.» (pág.303)
alc
