Quetzal, 2016, reimpr.2024. Tradução de Helena Cardoso
Volto a Julian Barnes e os mais atentos por aqui saberão por que razão o digo. Este livro é um tratado sobre a cobardia. Sobre as tragédias e as farsas que lhe dão origem. Julian Barnes subverte a ordem dos factores que Marx criou para explicar a causa dos fenómenos sociais (ou da sua impossível repetição) e que, na URSS estalinista, não é arbitrária - assim é, ao contrário, grafada «a farsa e a tragédia» (pág.52). A farsa como espectáculo primeiro e a tragédia como seguimento lógico do que não foi possível ser observado como sucesso do poderoso estado da burocracia estalinista. Ou ainda e mesmo pelo seu sucesso, a tragédia chega inalterável aos seus autores. Chostakovich, um compositor russo impossível de ser contornável, é a personagem deste romance de Barnes. Não é um cobarde, mas é ambíguo na sua relação com o poder. Foi chamado uma única vez para ser interrogado na Lubianka e quem desapareceu foi o seu interrogador. Teve uma sua ópera censurada por Jdanov e desistiu de voltar a compor mais óperas, foi humilhado por Stravinski e Nabokov (provou-se mais tarde que este era pago pela CIA) em Nova Iorque, aceitou críticas de Prokofiev embora se dessem bem, aplaudiu um discurso de um funcionário jdanovista que o acusava de «formalismo» porque se encontrava imune aos longos rebates ideológicos que não ouvia, aceitava os editoriais do Pravda que diziam que a sua música era uma «chinfrineira ruidosa», burguesa e muito pouco melodiosa. Aceitava tudo isto e corrigia-se. Até quase ao insuportável.
Durante a leitura deste livro perguntei-me qual a razão que leva uma personagem brutal como Estaline (Lenine dixit) a deixar incólumes a poeta Akmathova, o escritor Pasternak, a opositora Kollontai, ou outros artistas do futurismo russo, sem ser por puro capricho. Tal como aconteceu a Chostakovitch. Tendo aceitado tudo o que o poder lhe deu, deixou-se ir aos poucos, indiferente, anestesiado e focado possivelmente na única vontade que ainda o fazia mover: a música, os dois filhos e talvez a recordação terna das suas mulheres, mas a que preço? Parece-me ser esta a questão central de «O Ruído do Tempo». Que nos faz pensar que um único acto de coragem pode ser a factura incómoda da cobardia ou indiferença presente em nós.
É evidente que Estaline é dos poucos políticos que tinha uma capacidade de previsão inolvidável. Previu que três quartos do seu comité central morreria antes dele, mesmo os velhos membros do partido bolchevique, o que é obra de um chefe visionário, um homem virado para o futuro através, igualmente, da retorcida engenharia das almas. Viu-se no que deu. O realismo nunca foi tão falho de realidade quanto o tempo que levou Estaline a ser poder e a exercê-lo com a burocracia de Jdanov. Chostakovitch faleceu em 1975 e nem assim a sua ambiguidade foi levada com a morte dele. O seu tutor político, Khrennikov, ex-secretário-geral do Sindicato dos Compositores Soviéticos, vindo de Kruchev e Brejnev, foi condecorado aos 94 anos por Putin. A farsa continuou.
«Quando olhamos para trás, as tragédias parecem farsas. Era o que sempre dissera, no que sempre acreditara. E o seu caso pessoal não era diferente. Sentira às vezes que a vida dele, como a de muitos outros como a do país, era uma tragédia; tragédia em que o protagonista só podia solucionar o seu dilema intolerável matando-se. Mas ele não o fizera. Não, não era shakespeariano. E agora que vivera demasiado, já começava a ver a sua própria vida como uma farsa.» (pág.177)
Nota última: fui ouvir Chostakovitch, evidentemente. Estando muito longe de ser um especialista em música clássica, ouvi a sua 2ª sinfonia (criticada por Jdanov), a 5ª e a 8ª. Continuarei a ouvi-lo, mas que os meus duros ouvidos deram pela diferença entre a primeira e as outras duas, foi verdade. É possível que Jdanov se tenha enganado? Que a 2ª fosse mais melódica que as últimas de Chostakovitch? Foi o que me pareceu. Os especialistas, os melómanos e os musicólogos saberão dizê-lo.
alc
