Companhia das Letras, 2025
«Que façam harpas dos meus nervos quando eu morrer.» (pág.178)
Clarice Lispector escreveu «Perto do Coração Selvagem» com 23 anos. Só quem ler o livro e reler algumas passagens com o cuidado merecido é que pode relevar este facto aparentemente inócuo. Foi precoce na escrita e na morte, igualmente. É gelo, é cruel, é puro aço de um fio de lâmina que se atravessa em nós, sempre pronta a ferir-nos. Ou seja, cumpre-se mais uma vez literatura. Porque nos envolve emocionalmente, mesmo que Clarice Lispector se mostre extremamente distante e pouco interessada no que viermos a sentir pelo que lemos dela. Reparem nisto:
«Quem sou? Bem, isso já é demais. Lembro-me de um estudo cromático de Bach e perco a inteligência. Ele é frio e puro como gelo, no entanto pode-se dormir sobre ele. Perco a consciência, mas não importa, encontro a maior serenidade na alucinação. É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu digo. Sinto quem sou e a impressão está alojada na parte alta do cérebro, nos lábios - na língua principalmente -, na superfície dos braços e também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo, eu não sei dizer.» (pag.20)
As palavras como traição, como armadilhas montadas para nos apanhar em teias com as quais não nos desenvencilhamos facilmente. Por isso, os indígenas acham que o homem branco fala demais, que esconde o seu sentir através das palavras enganadoras. Creio ser esse o alfa e ómega de um «coração selvagem» que dá título ao livro. As palavras sendo perigosas, possuem, contudo, beleza suficiente para nos levar a um fim, a um sentido traído.
Como quando escreve em «aço franzindo e esfriando o meu corpo» verdadeiro verso de um poema em forma de aliteração, tal como este «Tudo desliza suave, em combinação muda. Já era no fim - fim de quê? da escadaria nobre e lânguida, inclinada, acenando o longo braço brilhante, o belo e orgulhoso, o fim da noite - (...)» (pág.159)
A toada é esta, a de Clarice Lispector. Uma impressão que se nos impõe no processo de leitura em que o desapego e abandono é a forma verdadeiramente eficaz na aproximação (também ela erótica) que sentimos pela liberdade total da autora. No entanto, afirma que uma «liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.» (pág.72) Mas que não se pense que as barreiras são transponíveis. É matéria suficiente para construir um mistério a que Lispector deu forma, provavelmente sem um propósito que não seja o que escreveu e como escreveu. Talvez a proposta de um eterno adiamento «porque os últimos cubos de gelo haviam-se derretido e agora ela era tristemente uma mulher feliz.» (pág.116)
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