quinta-feira, dezembro 26, 2024

«Os Desarçonados», Pascal Quignard

 

Cutelo Edições, 2024. Tradução de Diogo Paiva

Que dizer de Pascal Quignard que não terá sido dito antes? Subjectivo, mas tenho-o de dizer de um modo claro: Quignard é, sem dúvida, um dos melhores escritores actuais. Para além do prazer da leitura que fruímos (e não é isto o que leva um leitor a ter um livro nas suas mãos?), estamos diante de um autor que nos leva ao pensamento crítico, por vezes incómodo, mas igualmente ao conhecimento de um passado que nos reaviva a memória de uma humanidade que hoje terá perdido o seu rumo, ou que, de um modo subterrâneo, acumula energias para a mudança, talvez a última hipótese milenarista de que nunca se apartou. Quignard apresenta-nos tanto as impossibilidades, como as conquistas que nos levarão à conquista dos céus. Daqueles que, desarçonados, foram retirados, por combate ou por acidente, do seu arção, da sela protectora e prostrados sobre a terra. Destes, sabemos que foram igualmente vitoriosos, mesmo que não o viessem a saber. De Gilgamesh à Bíblia, da conversão de Saulo de Tarso em Paulo (desarçonado do seu cavalo a caminho de Damasco) a Platão e Aristóteles, de Luciano de Samósata ao Duque de Bourbon e a La Palisse,  de Louise Michel a Blanqui, de Freud a Nietzsche e a Georges Sand, tudo em Quignard nos é novo, escrito contidamente, numa síntese notável de beleza formal e de sabedoria antiga, em pequenos trechos que nos convidam à sua guarda, ao registo para sempre, ao sublinhado como tentativa de eternizar aquilo que acabámos de absorver. Que escrita!

No capítulo XVIII, ''Rousseau em Ménilmontant'' a experiência de quase morte que o filósofo sentiu ao vir a si é descrita deste modo: «(...) A noite avançava. Observei o céu, algumas estrelas e um pouco de vegetação. Essa primeira sensação foi um momento delicioso. Era ainda apenas isso que sentia. Nascia nesse instante para a vida e parecia-me preencher com a minha existência todos os objectos de que me apercebia. Totalmente no momento presente, não me recordava de nada; não tinha qualquer noção distinta da minha individualidade, a menor ideia do que acabava de me acontecer; não sabia nem quem era nem donde estava; não sentia nem dores nem receio nem inquietação. Via escorrer o meu sangue como teria visto correr um riacho, sem pensar que esse sangue de alguma forma me pertencia. Sentia em todo o meu ser uma calma maravilhosa à qual, cada vez que me recordo dela, nada encontro de comparável em toda a actividade dos prazeres conhecidos.
    O fundo da alma arrebatada é desprovido de identidade.
    O fundo da autobiografia é desprovido de 'autós'.
    O fundo da leitura é esse mesmo sentimento de esquecimento de si. Esse júbilo de esquecimento de si. ''Não sentia aflição nem por mim nem por outrem'', escreve Montaigne. ''Não sabia nem quem eu era nem onde estava'', escreve Rousseau.
    O homem a morrer é aquele que já não experimenta o instante que o consuma, tal como o concebido não experimenta a origem da forma.
    Embora o homem não tenha nunca a possibilidade de 'experimentar' o seu fim, ele é o único dos animais no qual toda a vida é orientada pela 'imaginação' da sua morte. (...)» (pág.50,51)

E no capítulo XXXVIII, ''Política de Henri Michaux'': «A contribuição apaixonada para o esforço de guerra, o elogio do sacrifício de cada um para a sobrevivência do conjunto, o estímulo vigoroso das razões para combater, o narcótico do ódio, isto é, do sentido, isto é, da orientação, isto é, do futuro, é a tarefa que se incumbe aos magistrados, aos filósofos, aos padres, aos historiadores, aos políticos, a todos os homens ''de Estado''. Alistem-se! Sacrifiquem-se! Dêem-nos razões para ter esperança! Motivem a vossa morte, fundem o vosso sacrifício, argumentem a vossa eliminação!» (pág.101)

Em XLV, ''O cavalo do tempo'': «No amplexo que une os corpos no instante do acto sexual, a alma da mulher e a do homem experimentam uma crise de identidade de cada um deles. Ambos sentem uma impressão pungente, extraordinária e sem remédio. É uma partilha animal não verdadeiramente partilhável no interior da partilha linguística que, essa, é um verdadeiro diálogo onde todas as singularidades anatómicas desaparecem. A partilha linguística opõe um eu e um tu inteiramente intercambiável com o sexo do outro no desejo que anima a reprodução.
    Ambos se agarram. Ambos querem que a sua excitação dure. Ambos querem o fim da excitação. Ambos querem unir-se na explosão de volúpia, enlaçam-se, envolvem-se, abraçam-se, apressam-se para a atingir. É claro, fazendo de tudo para acabar, não querem o fim enquanto 'tristitia', enquanto destensão, enquanto destumefacção, enquanto desgosto. Contudo, querem o fim enquanto volúpia, provocam essa incrível distensão, esse desdobramento, esse vazamento, esse vazio assimbólico, esse langor que abrem diante de si. (...)» (pág.118)

''Estação de Lyon'', capítulo XCIV sobre o que é ser estrangeiro: «No átrio da estação de Lyon, no cais de Chiffres, com destino a Sens, os pobres, os mendigos os 'Apolis', os Estrangeiros, os Sem-Abrigo, os Vagabundos sentados eram espancados à bastonada, eram arrastados por terra pelas axilas, eram levados para dentro de furgões por homens armados com bastões pretos e fardados de azul-eléctrico. Onde estão os contos em que os malditos penetravam nos palácios dizendo simplesmente aos guardas: ''Sou um estrangeiro''? Estrangeiro era então a palavra mais bela e abria portas. A hospitalidade era um dever, nem sequer uma virtude. O estrangeiro sentava-se no melhor lugar junto ao rei, à sua direita, semelhante a um sol que aparece no mundo, comia e bebia até se fartar. Depois, virava-se para o rei e perguntava:
    - Sire, quereis saber porque tenho o queixo rapado e um olho a menos?
E o rei prosternava-se diante dele e dizia:
    - Dizei-me! Dizei-me, meu amigo! Quais foram as vossas aventuras?» (pág.260)

E não deixava de mostrar-vos exemplos de uma escrita belíssima e de pensamentos aparentemente soltos de Pascal Quignard, registados neste livro inesquecível. Este autor é já um clássico por direito próprio. Impossível de contornar pela apresentação limpa do novo, mas igualmente do passado, do belo e do horror, das peças com que se faz o quotidiano e do que é acalentado na história, na filosofia ou na linguagem. Nem sempre o desarçonado é o que cai do cavalo. Muitos há cuja queda estrepitosa aconteceu com outras causas. para nós, portugueses, pode ser o cavalo de Afonso Henriques em Badajoz que o inutilizou até ao fim da sua vida, ou a cadeira de S. Julião da Barra que desarçonou, tarde demais, em 1969, Salazar. Pouco importa. O mais importante é pensar sempre em todas as hipóteses de futuro, mesmo com o pessimismo inerente ao mundo tal como ele é e como Pascal Quignard no-lo apresenta. 

A tradução, creio que extremamente difícil, é excelente pela mão de Diogo Paiva. 
O livro não segue, felizmente, o AO90.

alc

segunda-feira, dezembro 23, 2024

«Como numa História de William Irish», Ana Teresa Pereira

 

Relógio D'Água, Julho de 2024
Uma revisitação aos filmes policiais pelo texto literário muito particular de Ana Teresa Pereira que teimamos em ler. Comecemos pelo título: William Irish é um escritor americano de policiais «pulp» e que, segundo sei, tem só um livro publicado em Portugal pela Vampiro - «A Dama Fantasma». Foi também antologiado num livro de contos. Escusam de procurar nas livrarias porque só o encontrarão em alfarrabistas. Ana Teresa Pereira continua, como sabemos de outros livros anteriores de que já falámos aqui, no registo muito próximo do policial, mas igualmente no onírico, num mundo só dela, extremamente cinematográfico. Alfred Hitchcock, e os seus filmes mais emblemáticos, digamos que é o marco sempre presente no decorrer das cenas que compõem o livro, embora as personagens que são apresentadas sejam elas próprias o centro que faz desenvolver a história.

Narrativa essa que se divide em duas partes essenciais: a primeira, aquela que julgamos ser o decorrer de uma acção, ainda não policial mas psicologicamente densa, entre um homem e uma mulher. Durante a leitura, a habilidade literária de Ana Teresa Pereira, remete-nos para uma sensação de «dejá-vu», de cenas que nós já vimos em alguma parte, nalgum lugar. Sem termos a certeza, ou seja, na dúvida clara, lembramo-nos dos filmes entre os anos 30 a 50 do século passado. Todo o ambiente criado leva-nos a isso, a uma espécie de procura das razões que movem a mulher e o homem, e estamos ainda na primeira parte. E sabemos como Ana Teresa Pereira sabe impor-nos um ambiente de um parque, de uma casa, de cheiros particulares, de flores ou de vestuário. Na segunda parte do livro, virá a descoberta de que estamos dentro de um filme, que as personagens são actores e actrizes que embora não confundindo o seu papel com os seus próprios desejos ou objectivos têm de seguir o guião traçado por Hitchcok. É uma trama que se torna complexa, porque, segundo julgo, as características dos actores chocam, por vezes, na impressão psicológica das personagens vincada pelo realizador. É esta a tensão que percorre todo o livro.

«Vertigo», principalmente este filme, veio-me à memória (se lerem o livro, logo no início, perceberão porquê) durante a leitura e pelo seguimento do seu guião, mas «Rebeca», «Sabotagem», «Psycho» ou «Os Pássaros» também lá estão marcados, seja pelo decorrer do romance, seja pela referência múltipla a realizadores, filmes e a actores e actrizes que todos nós conhecemos e que se transformaram numa memória que a autora soube emergir para cada um de nós. 

alc

sábado, dezembro 21, 2024

«O Melhor Duplo», Paulo Bugalho

Língua Morta, Setembro de 2024
Um dos maiores enxertos de porrada velha que vi dar à Psicanálise e a Freud. A primeira que li, já lá vão anos muitos e à qual aderi completamente, foi a leitura ainda muito incipiente, porque quase adolescente, do «Anti-Édipo» de Deleuze e Guattari. Mas deixem a pancadaria em paz e desculpem o vernáculo; esta esfrega é feita com uma elegância e mestria raros num livro que se debruça sobre a matéria de que são feitos o sono e o sonho. É como se a poesia de Herberto Helder se aliasse a um monge japonês de artes marciais personificado num filme de Tarantino. Paulo Bugalho lê-se com agrado e entusiasmo crescentes, acreditem.

Do sono REM (Rapid Eye Movements) e ao NREM durante o sono, até aos variados tipos de sonhos que temos, lembrando-nos ou não deles (ai a culpa! ai o charuto!, ai o triângulo papá e a mamã, 'mais eu'!, como analisaria o doutor austríaco) até à literatura, ao cinema, à filosofia e à história clássica, entramos como convidados para um livro que educadamente nos demonstra a possibilidade de o sonho ser parte integrante e tangível de nós próprios, mesmo com a presença incontornável do onírico. E isto por quem sabe muito bem do que fala e que o leitor pressente, pois claro. Não é para todos, porque Paulo Bugalho sabe escrever bem, afastando-se da parafernália académica. Isso só o faz quem sabe, quem pode, quem se está para as tintas para o escudo protector universitário, comum nos dias de hoje e que muitas vezes é usado para esconder fragilidades várias. 

E sim, entre muitos outros vossos conhecidos e que vos acompanham, há Rilke, Allen, Zweig, Mann, Helder, Cesariny, Tsvietaieva (dela eu só conhecia «O Poeta e o Tempo», publicado pela Hiena), Tolstoi, Montaigne, Shakespeare, Proust (com uma referência privada às madalenas), Ariosto, Guimarães Rosa. Facto que vos trago aqui é a estória que é descrita sobre a relação que adivinharíamos entusiasmante entre Freud e os Surrealistas cujas artes segui com interesse e que se apoiaram nas teses do monstro da psicanálise: deram-se mal, como é mais que óbvio. A coisa acabou em divórcio entre Breton e mais tarde com Dali. Não deu a junção do automatismo da escrita poética com a análise doutoral. E aparecem todos juntos? É evidente que não, pelas razões que já apresentei atrás que, repito-o, são chamados por Paulo Bugalho com critério e em capítulos que demonstram uma síntese notável do autor. Deixo-vos, só para levantar o véu, com um pequeno trecho do capítulo «O Melhor Duplo» que deu o título ao livro:

«A verdade última, leitor, é que, para aquele que somos na vigília, o futuro do sonho é esquecimento. Ficamos alarmados com as imagens que nos chegam ao acordar, confusos com a certeira bizarria dessas histórias, fascinados com esse descarnar da ligação entre o mundo mental e a existência terrena, entre a vida que é vivida e a vida que é pensada. Colocamos o sonho no altar, adoramo-lo como a um deus que nós próprios fôssemos, imaginamos a nossa figura multiplicada por dimensões incalculáveis, expandida e nessa expansão tornada por completo, amavelmente, indecifrável. (...)» Queremos uma resposta? Pois é: o problema (se é que o chega a ser) é que temos de contar com a amnésia, diz Paulo Bugalho. E essa amnésia, frustrante porque impossível e óbvia de ser estudada, é que «das oito horas de sono que compõem uma noite, quase cinco contêm sonhos. Contudo, o total de que um bom sonhador se lembrará num ano será apenas de dezoito horas.» 

Que este livro vos dê bons sonos, sonhos e, já agora, boas vigílias.

alc

quarta-feira, dezembro 18, 2024

Desenho a carvão sobre papel. Dezembro de 2024

 

Carvão sobre papel, a partir de uma fotografia de Andy Warhol
Dezembro de 2024
Na Galeria / Atelier Ícone

segunda-feira, dezembro 09, 2024

«Melancolia em Tempos de Perturbação», Joke J. Hermsen


Melancolia 1, Albrecht Dürer, 1514
Livro interessante que versa uma pequena história da melancolia a que hoje chamamos erradamente de depressão. Isto porque o estado melancólico passou por tantas fases e teve tantas interpretações que temos muita dificuldade em acertarmos o passo num conceito minimamente comum e geral. Talvez assim até seja melhor. Ainda hoje se pode entender a melancolia como um estado de felicidade interior que busca na arte, na música, na literatura, no teatro e na poesia uma referência e uma experiência intensa, sem que para isso seja imediatamente considerado um estado patológico grave. Lá chegaremos, mas agora ainda não. A holandesa Joke Hermsen consegue, com êxito, construir a história da melancolia desde Platão até aos nossos dias. E tem interesse saber, ou especular, como passámos de um dito estado melancólico desde os tempos medievais ao romantismo e ao spleen de Baudelaire até aos escuros tempos de hoje. Pois é, mais uma vez o capitalismo e a evecção do tempo que gera dinheiro, consumo exacerbado e despersonalização do indivíduo não sai daqui incólume. Como se sabe, o sistema capitalista apropriando-se do nosso corpo e  teleguiando os nossos desejos, não é de somenos a autora atirar-lhe com as culpas para cima devido ao aumento exponencial de estados depressivos no mundo actual. Da alegria e felicidade melancólicas até à depressão generalizada foi um pequeno passo de poucos séculos. A «melan chole» aristotélica que quer dizer, traduzido à letra, «bílis negra» e que fez nascer a palavra «melancolia» que era teorizada como «inspiradora de ideias geniais», embora fosse exigido que não estivesse «demasiado fria, nem demasiado quente». Deixo-vos com «Melancolia 1», de Albrecht Dürer e a análise interessantíssima que Joke Hermsen faz deste quadro de uma época, a Renascença, que talvez tenha sido a que maior importância deu, elevando-o aos píncaros, o feliz estado melancólico (talvez clicando na gravura vejam melhor):

«A ligação estabelecida, durante o Renascimento, entre a melancolia e a sabedoria está especialmente patente na gravura mais famosa daquela época, a alegoria de Albrecht Dürer intitulada Melancolia I, com data de 1514. Uma mulher alada, sentada numa atitude melancólica, aparece rodeada de atributos que remetem para o conhecimento e a sabedoria, como o compasso que tem na mão, as volumosas figuras geométricas que estão em seu redor e o tinteiro apoiado no chão, junto de um estojo para penas. No entanto, o que melhor define a gravura é que a figura protagonista não faz nada com nenhum desses atributos, limitando-se a contemplar o vazio, mergulhada nos seus pensamentos. Esta Melancolia afastou-se do mundo à espera de um momento de inspiração. Na parede, há um quadro mágico com números, cuja soma oferece o mesmo resultado na vertical, na horizontal e na diagonal, neste caso, trinta e quatro. (...) Por trás da angelical mulher alada, que leva na cabeça uma coroa de louros, há dois objectos que simbolizam duas vertentes distintas do tempo: a balança de Kairós, deus do momento oportuno, e a ampulheta Cronos, que marca a passagem do tempo, e, por meio disso, recorda-nos a transitoriedade da vida.
Por baixo da balança há um «putto», um anjinho, que simboliza o nascimento de uma ideia depois de se esperar pelo momento oportuno, examinar atentamente as circunstâncias e encontrar a justa medida.» (Pág. 31,32)

Importante é o destaque que a autora atribui ao trabalho determinante de Lou Andrea-Salomé sobre Nietzsche (e não só sobre ele), de Julia Kristeva e também de Hanna Arendt, principalmente no que respeita ao tempo, neste caso o Kairos e não Cronos, para o aparecimento da obra de arte, seja em que formas for. «Aqui, quero relacionar o tempo kairótico principalmente com a experiência estética e o possível efeito catártico da arte, numa tentativa de reflectir em mais profundidade sobre a importância da música, da literatura, do cinema, do teatro e das artes plásticas, para mantermos uma relação saudável com a nossa melancolia.» (pág.73)

Joke Hermsen não é poupada nos termos que dirige à extrema-direita europeia e americana, aos totalitarismos vários que se perfilam igualmente em todo o mundo, visto que são claramente responsáveis, tal como ao capitalismo, pela xenofobia e pela repressão dos sentidos, e são, ao fim ao cabo, inimigos do homem e mulheres biológicos (aqui entra o conceito de biopoder de Agamben, também referido no livro). A imposição do não conhecimento dos outros, impele ao pensamento único, à sociedade totalitária, à unicidade social e étnica; ou seja, à impossibilidade do 'momento único', oportuno, porque tudo é trabalhado para o seguimento do tempo, a linha do tempo do nascimento à morte, que é o controlo total da humanidade e o princípio primeiro do totalitário. Para sermos verdadeiramente humanos precisamos de contemplação e paragem do tempo. Um livro bastante interessante de ler.

«Melancolia em Tempos de Perturbação», de Joke. K. Hermsen
Quetzal, 2022
Tradução de Maria Antónia Vasconcelos

alc

sexta-feira, dezembro 06, 2024

Gaza, Palestina. Dezembro de 2024

 

Público, 5 de Dezembro de 2024 (pormenor)

Ontem, a abrir o Público, fiquei a olhar longamente a primeira página, cuja foto edito aqui um pormenor. No chão, jaz um cadáver que presumo ser de um familiar desta mulher. Este desespero terrível tenta ser consolado por uma sua companheira que não sei o que lhe poderá dizer. Em Gaza. Todos os dias estas imagens invadem a nossa sensibilidade, a nossa revolta, a impotência que sentimos perante um governo de genocidas, cuja prática hedionda, inumana, é de uma crueldade sem nome.
A Europa vai pagar caro estas lágrimas. Desta mulher e dos milhares de crianças e velhos que todos os dias, todos os dias, repito, são mortos às dezenas, às centenas em Gaza, no Líbano e na Cisjordânia. E a Europa, hoje rica e confortável, vai pagar mais cedo do que tarde. O Ocidente não quer ver, não percebe, finge, dissimula, apoia os fortes, calca os fracos. Humilha um povo, assinalando a sua vontade hipócrita de uma paz impossível, porque sabe bem que quem está no governo de Israel não a quer. Prefere a morte programada, a vingança bíblica. Os árabes de todo o mundo sentem-se assediados e humilhados perante os europeus. Imagina-se a sede que nos têm, tal como os africanos, tal como os chineses, tal como os indianos e os americanos do sul. Tal como os ameríndios. Escrevo, misturando as coisas? Não creio. Faço-o propositadamente. Não se perde o sentido, porque estas lágrimas, as desta mulher, juntam-se a muitas outras que a História nos atira à cara. Aos europeus que, desde sempre, utilizaram a violência e a discricionaridade contra os povos. Os americanos do norte? Fizemo-los igualmente nós. Se aqueles ainda não demonstraram totalmente a raiva, hoje ainda algo contida, estes últimos estão ciosos de nos deixarem sozinhos, resguardados por um chapéu nuclear que julgam protegê-los. Na onda de pagar as humilhações e violências perpetradas não existirá qualquer protecção que nos valha. Estas lágrimas doem a alguns de nós, mas eles, os que sofrem o horror, saberão disso?

alc

domingo, dezembro 01, 2024

«Viagem no Proleterka», Fleur Jaeggy

 

Alfaguara, 2024. Tradução de Ana Cláudia Santos
Escrito em 2001 neste «Viagem no Proleterka», a suíça Fleur Jaeggy, que aqui já falámos longamente pela leitura do vigoroso «Felizes Anos de Castigo» (1989), mostra-se agora algo fatigada, não se saberá se fruto da sua quase reclusão em que vive ou, talvez, porque o tema do seu encontro com um pai ausente, estranho, doente, que a convida para uma viagem de catorze dias num cruzeiro «para se conhecerem melhor» terá sido um fiasco. Aliás, todos os temas que Fleur Jaeggy tenta abordar falham. Essa possível relação com o pai não é minimamente conseguida. Se ele se mostra inacessível, a autora, os sentimentos e as acções que leva a cabo durante a viagem não se mostram mais do que pequenos e demasiado fugidios pensamentos para o leitor. Assim como as suas relações fortuitas com membros da tripulação são tão despidas de emoção que chegamos a pensar se chegaram a existir. Tudo é elaborado à pressa, como se a viagem pudesse acabar logo ali, acelerada. As descrições apresentam-se sem grande entusiasmo, como escrever um livro fosse igual a que se bebesse um copo de água e continuasse a escrever no capítulo seguinte. Um leitor, e reivindico para mim esse papel, não é um crítico: para isso, finalmente, já existem cursos universitários em algumas, poucas, universidades portuguesas. Mas no processo de leitura sente-se imediatamente, o estado de espírito de quem escreve. Há uma identificação clara, uma honestidade nossa que reivindicamos igualmente ao escritor. O que move um crítico é outra coisa. O recurso estilístico da autora nada tem a ver com o último, e creio que único, livro editado em Portugal, «Felizes Anos de Castigo». Repito que ali há um cansaço observável e que não é necessário sequer uma lupa para o verificar. 

A tradução de Ana Cláudia Santos, e não é a primeira vez que o digo, evitou que se tornasse quase impossível a leitura de «Viagem no Proleterka». Reparem no que eu digo, neste extracto que vos apresento, que se repete em toda a leitura em períodos tão curtos que interrompem o fluído necessário a uma leitura ou, sequer, a uma identificação mínima com a autora e a uma possível densidade psicológica de todas as personagens:

«(...) Era bonita e robusta. Houve vezes em que quis sair com ela. Não conhecia ninguém da minha idade. Ela fazia-se rogada. Tinha percebido logo que eu estava sozinha. Teria de pagar para ter a companhia dela. É possível que tenha sido ela a sugerir ao pai, o diretor, que nos expulsasse. A nós, os da pensão mensal.» (pá.109)

e continua na mesma página, e em todo o livro, esta toada:

«Por vezes, Johannes levava-me ao restaurante da Corporação. A entrada é pelas arcadas. No primeiro piso, silêncio, as pessoas distintas falam baixinho. Os talheres movem-se com leveza, quase sem tocar no prato. Lá fora, o rio corre. Os cisnes deslizam. Passa o elétrico. Carros. Quando morre um membro da Corporação, costuma fazer-se um banquete fúnebre. Johannes sente-se sozinho. (...)»

De resto, não costumo escrever sobre os livros de que não gosto e foram alguns, não muitos, é certo. Este não está nesse rol, mas devo a Fleur Jaeggy um dos melhores livros que li e que citei aqui, o «Felizes Anos de Castigo» sobre o regime de internato para jovens. Verdadeiramente ímpar. Esperemos que o próximo editado em Portugal seja diferente deste «Viagem no Proleterka» em que, por vezes, cheguei a pensar tratar-se de um conjunto de apontamentos livres da autora para a construção, isso sim, de um verdadeiro romance.

alc

quarta-feira, novembro 27, 2024

«Cinco Suicídios», João Damasceno

 

Tipografia Damasceno, Coimbra. 2024.
Mais uma reedição de um livro de João Damasceno que nos deixou em 2010. Após a excelente publicação de «Corpo Cru», em Maio deste ano, surge agora «Cinco Suicídios» pela chancela da Tipografia Damasceno dirigida pelo Rui, seu irmão. O cuidado é de um grande primor: desde as duas qualidades do papel, da cartolina da capa, dos desenhos belíssimos do João, da capa cosida à mão e de um prefácio vivo de Carlos Braz Saraiva, só se poderá questionar às pessoas que se interessam por estas coisas da poesia, tendo conhecido ou não o João, quanto tempo falta para ter este livrinho nas mãos.

Os poemas são acompanhados por extractos do clássico «Guia de Perícias Médico-Legais» do médico Carlos Ribeiro da Silva Lopes. 

Empresto-vos um soneto:

Revólver

No espelho o meu rosto que me observa surpreso
O olhar fixo, cru, gélido, duro, homicida
Os lábios áridos num esgar de menosprezo
Premeditara há muito meu rosto suicida

Ergo o braço rigoroso num gesto largo
O revólver dirijo ao ponto que me alarma
Projectei-me irónico, quero ser amargo
Ser solene, grave, sensualmente amar a arma

Comtemplo da janela o sol no horizonte
esta derradeira memória havia previsto
deste mundo queria decisivo registo

A mão indiferente é próxima da fronte
O corpo muito rígido, no olhar um brilho
Meu dedo frio, carrega, lento no gatilho

Desenho de João Damasceno

Os pedidos podem ser feitos para o Rui Damasceno e/ou tipdamasceno@gmail.com e o preço é de 15 euros.

alc

Islenha 74. Uma revisitação a António Barros

Revista Islenha 74
A revista Islenha lançou este número semestral (de Janeiro a Junho de 2024) quase inteiramente dedicado a António Barros. Extremamente bem elaborada,  belíssima graficamente, com dados importantíssimos sobre o trabalho do autor ao longo de mais de 50 anos e que (nos) chama a atenção para um percurso singular que remete António Barros para um dos mais construtivos e provocadores artistas que está connosco. Baseado no seu trabalho «Florigen, 2005» escreve o autor/artor logo no início da revista:

«A escultura - em modo de objecto-livro - «Florigen,2005», elege o florescimento das plantas como pólo de reflexão sobre a conjugação: electricidade_energia_luz, e o seu caminho recíproco: luz_energia_electicidade. (...)
«Florigen, 2005» teve a primeira apresentação pública em What is Watt?, edição de 2005, no Museu de Arte Contemporânea Fortaleza de São Tiago, no Funchal. Depois em Coimbra na Casa da Escrita; no Círculo de Artes Plásticas_CAPC; e finalmente em: «da flor, esse rosto de esGrita», na Casa Museu Bissaya Barreto em 2024, enunciando-se como elegia ao museófilo, coleccionador de orquídeas, Alfredo Gomes de Barros, na celebração do centenário do seu nascimento.»

Explica-se que Alfredo Gomes de Barros é o pai de António Barros, como, aliás, é explicado por Isabel Santa Clara e Augusta Villalobos nas páginas que se seguem a esta apresentação tão clara, quanto necessária e global sobre o trabalho do autor. Aí, lê-se em alguns extractos que vos dou a conhecer:

«O conceito científico de florigen [António Barros cita o trabalho, de 1937, do cientista russo Mikhail Chailakhian] remete para o florescimento, metamorfose e maturação das plantas, em resposta à luz. Longe de ser um processo solitário, propaga-se, em convivialidade, gerando, em múltiplo jogo de espelhos, todo um jardim florido, pleno de vida. Uma festa para os sentidos e para a alma. Expandindo este conhecimento e esta sensibilidade, numa abordagem humanista percebemos florigen como uma metáfora da Vida, e da Arte. De uma Arte-Vida-Arte para a Elevação da Pessoa-Natureza. logo, da Sociedade e do Planeta. Tal é o desígnio de António Barros.» (pág.10)

Sobre o processo de construção das exposições de António Barros, Augusta Villalobos e Isabel Santa Clara apresentam-nos a seguinte ideia que, para quem já presenciou as exposições de António Barros, não pode deixar de se rever nestas palavras:

«Nos diversos momentos de mostra do seu trabalho num registo de fisicalidade - coisas reais, pessoas reais - António Barros proporciona uma vivenciação do espaço expositivo convertendo-o num lugar habitado, e habitável, convidando a que seja habitado em convivialidade: um muSeu que seja seu.
O próprio processo de construção de uma exposição constitui uma temporalidade privilegiada de diálogo com o Outro, sejam referentes de contaminação mais distanciados, sejam presenças próximas que o acompanham e contribuem directamente para a criação, ou - e de modo particular - o público, conceito que procura desconstruir e reinventar. Muito na linha Fluxus, a Arte como Processo. Para a universalidade.
O autor, que prefere assumir-se como artor, sempre captou a importância do lugar habitado numa exposição, e do modo de dar a ver, procurando através da semiótica da instalação e do rigor na montagem valorizar a especificidade e a densidade de cada peça, as afinidades e os confrontos. Os actos performativos encarnam de modo mais premente a delicadeza e a mutabilidade dessa habitar.» (pág.18)

O preço desta revista é de 15e e podem pedi-la para 

alc

domingo, novembro 24, 2024

25 Novembro. Il Grande Conduttore

 

Il Grande Conduttore
É quase comovedor assistir ao afã popular para que as comemorações dos 49 anos do 25 de Novembro tenham o prestígio e a adesão que a data obriga! Ele é roulotes de farturas e coiratos, minis em baldes de gelo, preparação de grandiosos bailes e bandas de coretos, fadistas, toureiros, pegadores de cernelha, fachos encartados, ex-terroristas e bombistas, ex-tropas saudosistas, almirantes de branco brio fardados... Eanes ajudou a acabar com o Prec, o «Grande Cagaço», e a reconduzir, tal como um Conduttore político as antigas elites de uma classe possidente, inculta, nova rica, burgessa, mais que empenhada na continuação do fascismo e da guerra. Hoje, resta-lhes o 25 de Novembro, porque o 25 de Abril sempre foi considerado uma excrescência, uma «balda» de soldados desobedientes das hierarquias, uma «tropa macaca» que, juntamente com um povo mal adestrado, tiveram a coragem de exigir talvez uma outra vida, desta vez digna, que valesse a pena ser vivida. O que o Conduttore conseguiu, ao lado de um militar intelectual da estirpe de um Jaime Neves, foi a conquista de uma «normalização» política, castigando-nos à sobre-exploração, e ao olvido de quase todos os direitos de um povo que teve a noção de dever erigir o «Grande Cagaço» nas ruas, nas fábricas, nos campos, nos locais de trabalho e nas escolas e que nunca mais vão esquecer, que perdurará sempre no tempo comum deles e no nosso. 

Na «comemoração» dos 49 anos anos vai ouvir os discursos cheios de ódio e rancor à liberdade e à dignidade de um povo. Fica-lhe bem. esqueçam o 25 de Abril e, já agora, o 25 de Dezembro que isto de ter messias que apaguem o generalíssimo busto pode ser um arrepio para um ego de vaidade escondida, uma falsa humildade com que esta gente gosta de se vestir. 

alc

quarta-feira, novembro 20, 2024

«Visitar Amigos e Outros Contos», de Luísa Costa Gomes

 

D. Quixote, Setembro de 2024
Dos melhores contos de Luísa Costa Gomes. Diz a contracapa que não terão um fio condutor, mas logo a seguir coloca-se a hipótese de existir «uma certa homogeneidade nos temas e nas abordagens» que serão «o tempo, a História, e a acção que por acaso ou por necessidade vamos tendo nela.» Este acaso e necessidade sente-se em todo o livro e principalmente nos seu último conto em forma de um diálogo, «Rotas», em que a fé, a providência, o determinismo e o acaso são os caminhos que levam à despedida do livro e com ele alguma sensação de vazio ao fechar a última página. Dizer que anda «tudo ligado», é demasiado cliché para a autora que foge deles a sete pés, como sabemos. O livro prende-se a nós, sendo que o contrário é igualmente verdadeiro. Não é fácil isto acontecer no processo de leitura, porque tudo o que se passa naqueles contos já o experienciámos verdadeiramente num momento especial e que se torna elementar, num local que conhecemos ou noutro qualquer. Ou seja, em todos os contos que lemos o protagonista é o leitor. Seja pelo sarcasmo e ironia de Luísa Costa Gomes ou pela capacidade quase obsessiva de observação dos outros (nós, pois claro!) os contos, todos eles, vão direitinhos para o que já presenciámos, que vivemos ou estamos em vias de o viver. Poderia ter acontecido connosco, já teria acontecido, irá acontecer, conhecemos alguém que... a comédia do quotidiano, as pequenas e grandes tragédias sociais e familiares, as vaidades e discricionaridades que aguentamos diariamente, os poderes fátuos mas omnipresentes, a informação, a formação, a deformação. Um cansaço, pois.

Disse Luísa Costa Gomes, numa entrevista ao jornal Público, antes da apresentação de «Visitar Amigos», que se via como uma anarquista que clamava por mais Estado. E, reivindicando-nos ácratas ou cedendo uma ou outra costela dos ditos em nosso próprio corpo, quem não? Lembrei-me, ao ler a entrevista, do soixante-huitard que escreveu que perante a morte de deus, talvez fosse melhor pensar bem quem o substituiria! Contudo, não deixa de ser um sintoma destes tempos estranhos que correm, em que se desmantela uma instituição tão antiga, quanto a guerra de massas e das edificações religiosas. Tudo então é posto em causa e é isto que estes contos nos dão. A nossa própria contradição perante a ruína em que se transformou a nossa casa, a nossa rua, os nossos amigos, o nosso amor e até o nosso ódio de estimação. Presente: um nico de esperança, ainda assim.

Treze são os contos de «Visitar Amigos». Já cá cantam todos, mas não percam nem um: o primeiro, «A Ditadura do Proletariado», nome que não sei se será censurado pelas redes sociais por incentivo ao ódio, é o começo da aventura de quem se meteu em obras em casa e está sob o domínio de um grupo de operários que, de camartelo em punho, dão conta da destruição de paredes a eito sem que se saiba ao certo se se construirão outras tantas. Se me ri? Claro que sim, e depois? «(...) A primeira etapa cumpre-se, portanto, com a violência de um furacão: um magote de operários escavaca paredes, lança nuvens de poeira sobre os próprios bens. Armários são despejados sem piedade, mostrando o sóbrio tesouro de pratos desemparelhados, restos de colecção, vindos de gerações que há muito despacharam esta parte. Vivemos, operários e sua clientela, em consonância; quanto mais se deita abaixo, mais vejo que é possível deitar mais abaixo. É a vertigem. Começa-se numa ponta, vai tudo raso. Não é possível destruir por fracções. Não há reforma que possa acalmar a sede do novo. Ou tudo, ou nada. (...) (pág.18)» Isto é todo um programa sem metáforas ou alegorias, bem-entendido, sem necessidades de prolegómenos ou ademanes. Para votação imediata. De resto há reencontros memoráveis em outros contos; reparem neste extracto «(...) Passaram quarenta anos. Mas agora reencontrámo-nos e vamos encontrar-nos. As fotos de vida que ela envia são daquela uma e mesma pessoa, olho vivo, o pé ligeiro, rodeada de dinâmicas, apenas submetida à pressão da passagem do tempo. Vem de iate, vem de parapente, trepou montanhas, amarinhou às gáveas dos navios, todos esses nomes perigosos da navegação, os portalós, os traquetes, as retrancas, o mastaréu de joanete, a verga alta! A bujarrona! (...) (pág. 67)» A forma como a autora escreve «A bujarrona!» faz com que não saia tão depressa da nossa cabeça. Nem sequer o meu computador reconhece a palavra bujarrona! Imaginei-me a levantar-me num café, num debate, num colóquio ou até numa aula em anfiteatro e clamar bem alto «A bujarrona!». Talvez não morra sem o fazer. A toada continua com gatos imperiais, heranças tramadas, viagens fabulosas, visitas turísticas a campos de concentração alemães e pesquisas academicamente sustentadas a campos de reeducação chineses, ao conto voltairiano «O Bem de Todos». Mas há lugar, igualmente, para a emoção e em forma de  despedida: «(...) Apanho o voo nocturno. No aeroporto, na fila, à porta do voo, nos atrasos do voo, sorrio a tudo. O caminho para casa tem destes escolhos. Depois do jantar, no avião, enquanto eles dormem, subo discretamente a persiana. Espreito a noite e sou avassalada. Colo o nariz ao vidro da janela e esforço os olhos para verem o mais que podem. O bafo embacia o vidro, limpo-o com a mão, ele embacia-se de novo. Acabo por suster o fôlego. É sem respirar que admiro e desejo essas estrelas, ordem e ornamento da Terra. Siderada, estou noutra imensidão. Entre o embaciar e o desembaciar do vidro da janela, peço aos olhos que vejam o mais que podem e eles, amigos, recolhem a luz de todas as coisas apagadas. (pág.215)» Quem não se emocionar ao ler isto é porque...

alc

segunda-feira, novembro 18, 2024

Celeste Caeiro

 

17 de Novembro de 2024
Celeste Caeiro, a mulher que distribuiu cravos pelos soldados a 25 de Abril de 1974, faleceu a 16 de Novembro deste ano. O 25 de Abril, o povo que aderiu a esta ideia, a esta luta, vai construindo os seus anti-heróis, aqueles que sem quaisquer objectivos pessoais, deram simbólica, material e espiritualmente o que souberam oferecer de melhor. Os símbolos da Revolução aí ficam. Os cravos, que Mário-Henrique Leiria não gostou que entupissem os canos das G3, sobrepuseram-se numa outra poética, tal como a coragem de Salgueiro Maia frente a uma pistola encravada de um coronel fascista ou a corajosa recusa de José Alves Costa, soldado que, no alto do tanque, desobedeceu a uma ordem assassina.

Celeste Caeiro entra neste panteão popular e é isso que faz o 25 de Abril forte, que o torna inesquecível e eminentemente popular. Bem pode a direita ressabiada, vingativa e dissimulada - porque nunca aceitou a liberdade popular, nunca o declarando abertamente - tentar colocar o 25 de Novembro num pedestal de uma possível taça de barro cru, mas essa data nunca será grande o suficiente para abafar estes anti-heróis e heroínas que a historiografia popular vai construindo. Essa interessa tanto ou mais que as enormes manifestações populares que enchem as avenidas todos os anos. E são cada vez mais, para azar deles.

alc

sexta-feira, novembro 08, 2024

«Os Detalhes», Ia Genberg

 

D. Quixote, 2024. Tradução do sueco de João Reis. Segue o AO90.
Livro de 2022 de Ia Genberg, autora sueca em construção, divide-se em quatro capítulos, cada qual com uma personagem. Nem todas femininas. Não são propriamente «detalhes», nem os encarei como tal. Se por detalhes, encontramos o acaso e a necessidade, título de um livro importante de Jacques Monod que talvez venha a falar dele aqui, então estamos cientes que a vida é isso mesmo: um conjunto de pequenos detalhes que nem damos por isso, mas que imprimem uma linha irreparável no nosso percurso individual. Para o bem e para o mal e, sejamos justos, mais para o primeiro do que para o segundo, maniqueísmos à parte. Alegrias, esperanças, desilusões, relações inesquecíveis, equívocos, depressões, doenças, euforias, desejos avassaladores estão em toda a parte variando proporcionalmente na medida das escolhas e caminhos que percorremos. Poderia ser um livro-estucha, moralista, mas não é: Ia Genberg escreve muito bem, recusa a vulgaridade e isso é determinante para o entusiasmo com que se o lê. Tem momentos bons de leitura como estes:

«Eu e Johanna tínhamos na literatura a nossa brincadeira predileta. Apresentávamo-nos mutuamente autores, temas, épocas, regiões, obras individuais e livros antigos e contemporâneos de diferentes géneros. Tínhamos gostos semelhantes, mas opiniões divergentes o suficiente para tornar as nossas conversas interessantes. Não concordávamos em certas coisas (Oates, Bukowski), outras deixavam-nos a ambas indiferentes (Gordimer, fantasia), e partilhávamos alguns favoritos (Östergen, a trilogia Krilon, de Eyvind Johnson, Lessing). Conseguia perceber se a Johanna gostava ou não de um livro com base na velocidade com que o lia. Quando lia muito depressa (Kundera, todos os policiais), sabia que estava a aborrecer-se e a apressar a leitura, a fim de terminar o quanto antes, e quando lia muito devagar (O Tambor de Lata, de Grass, toda a ficção científica), sentia-se igualmente entediada, mas tinha de se esforçar para chegar à última página. Via como sua obrigação terminar todas as leituras, tal como terminava todos os seus cursos, trabalhos e projetos. Havia nela um sentido de obediência profundamente enraizado, uma espécie de respeito pela tarefa em mãos, por mais inútil que esta lhe parecesse.»

Um detalhe último com o qual, por acaso, me identifiquei totalmente. Também o faço. E quem não?

«Em novembro, costumamos comprar velas e ir ao cemitério, onde nos encontramos à entrada com Sally e os seus filhos (a campa do pai dela dista trezentos metros da da Brigitte [a mãe da autora], e, enquanto caminhamos entre lápides, os anos passam em nosso redor atrás de cortinas difusas. Para os mortos, a cronologia não tem qualquer importância, e só os detalhes interessam - o grau de densidade, estes como e o quê, e tudo o que tem que ver com o quem

alc

terça-feira, novembro 05, 2024

«Atos Humanos», Han Kang

 

D.Quixote, 2017. Tradução para o Inglês e Introdução de Deborah Smith. 
Tradução para português de Maria do Carmo Figueira
Estamos demasiado absorvidos pelo que se passará no regime monárquico da Coreia do Norte e do seu apetite termonuclear que esquecemos, muitas das vezes, que a Coreia do Sul teve um dos regimes mais sanguinários de extrema-direita que o mundo conheceu e durante dezenas de anos. Que, neste caso, Han Kang, a autora de «Atos Humanos», conheceu de perto. Só muito poucos dentre nós lembrar-se-ão das verdadeiras batalhas campais que pontificaram, nos anos 80 e início dos 90, nos campus universitários de Seul. A violência que então víamos pelas televisões (que mostravam o que queriam e somente dos correspondentes estrangeiros temporariamente lá sediados) era indescritível e a resistência não ficava inerme: lutava como podia, armada ou não, lutava sempre, respondia ferozmente às investidas da polícia de choque e dos militares. Estudantes de ambos os sexos de viseira, capacetes, óculos de mergulho contra os gases lacrimogéneos e contra os tiros reais ou de borracha. As imagens tornaram-se épicas. Os telhados das faculdades transformaram-se em castelos medievais de cujas ameias eram lançados coktail's molotov, pedras, garrafas, e cartazes enormes contra a ditadura que eram desfraldados com o peso de estudantes que se lançavam, em longos cabos, do alto dos prédios universitários. O que aconteceu no massacre de Gwangju, no sul da Coreia, a 300 km de Seul, foi outra coisa: já não eram só estudantes, como era Han Kang na altura, mas formou-se um âmago de solidariedade combativa com sindicalistas e operárias e operários, trabalhadores e funcionários que se armaram em milícias e responderam a tiro ao exército. Ainda hoje não se sabe ao certo o número de mortes que o exército fez, nem a dimensão da orgia de torturas e violações que então tiveram lugar. Foram muitos milhares. As milícias, embora armadas, hesitaram em usar as armas e foram alvo da sanha da ditadura sul-coreana que arrasaram a cidade, violando direitos humanos mais elementares. Como é apanágio da extrema-direita sempre apta a «atirar a matar».

O nome do seu primeiro ditador era Park Chung-Hee que governou a Coreia do Sul com mão-de-ferro, figura de retórica aplicada a um regime sanguinário e baseado no terror sobre a população. Nunca foi popular, mas os EUA deram-lhe a mão e conseguiu um «milagre económico» à custa, nós sabemos como!, de salários de miséria e de proibições ao nível dos direitos do trabalho, o que não impediu a continuidade de um trabalho sindical com tradições de luta que vinha desde os anos 10 e 20 do século XX. Ainda hoje os sindicatos são fortes na Coreia. Park não durou muito: o seu melhor amigo e braço-direito matou-o num golpe de estado e subiu ao poder. O seu nome: Chun Doohwan. Foi ele o responsável quer da repressão sobre os campus de Seul e do massacre vergonhoso de Gwangju que é narrado de forma magistral por Han Kang. 

Tenho para mim que quando, num futuro não muito longínquo, os historiadores estiverem à volta da avalanche informativa de factos para apurar a sua veracidade na internet e nos media, será a literatura a restituir-lhes a verdade possível. Aquela que seja mais verosímil encontrar-se-á nos livros, sejam os autores quem forem e de que lado combateram. É por isso que devemos ler este livro. Para que a memória perdure e a infâmia não caia no esquecimento. Han Kang também soube ouvir e construir os depoimentos possíveis, já que muitos dos participantes ainda se calam. 

«Descobri mais tarde que, nesse dia, tinham dado oitocentas mil munições aos soldados. Isso numa altura em que a cidade tinha quatrocentos mil habitantes. Ou seja, tinham posto à disposição deles os meios que permitiriam meter duas balas no corpo de cada pessoa. Estou firmemente convencido de que, se tivesse acontecido alguma coisa [uma resistência mais dura], os comandantes teriam dado ordem para as tropas no terreno fazerem exatamente isso. (...) Sempre que me lembro do sangue que corria pelas ruas nessa madrugada - corria, literalmente, descendo pelos degraus naquela escuridão de breu -, penso que aquelas mortes não foram apenas das pessoas que morreram naquele momento. Foram também a representação de muitas outras mortes. Muitos milhares de mortes, sangue de milhares de corações.» (pág.211)

«Serão os seres humanos fundamentalmente cruéis? Será a experiência da crueldade a única coisa que partilhamos enquanto espécie? Não passará a dignidade a que nos agarramos de uma ilusão para disfarçarmos, perante nós mesmos, esta simples verdade: que cada um de nós pode ser eduzido a um inseto, um animal voraz, um pedaço de carne? Que ser aviltado, magoado, esquartejado... é o destino essencial da humanidade, um destino cuja inevitabilidade a História confirmou?» (pág.238)

Quem assistiu a isto tudo, numa Coreia esmagada, a ferro e fogo quando a repressão se tornava insuportável e que «Atos Humanos» nos arremete, duma forma literariamente tão linear e intimista, terá todo o direito, e talvez o dever, de nos questionar deste modo. Não sei se haverá resposta. Saramago, outro nobelizado, tinha e disse-a com clareza.

alc

terça-feira, outubro 29, 2024

«Em tudo havia Beleza», Manuel Vilas

 

Alfaguara, 2019. Tradução de Vasco Gato
Por vezes, pergunto-me o que leva um escritor a escrever um livro assim. Bem escrito quanto baste não faz necessariamente um livro interessante. Eu, eu, e só eu, mais a minha família em 400 páginas repetitivas, longas, embora com o recurso a 157 capítulos que permitem uma leitura aparentemente levezinha. Manuel Vilas não o conseguiu de todo, assim como falhou na fotografia de uma Espanha autoritária, de uma região esquecida ou de uma família supostamente disfuncional. A narrativa arrasta-se interminavelmente e conclui-se com uns «poemas» do autor mais que sofríveis. 

Fica aí um registo para que conste de um pedaço da vida de Manuel Vilas em que foi professor do ensino médio: 
«(...) Passear, olhar as nuvens, ler, estar sentado, estar consigo mesmo num grande silêncio, foi esse o proveito.
    E no dia seguinte já não madruguei. Deixei de dar aulas no ensino médio. Penso agora que aquele não era um trabalho aceitável, como em tempos julguei, mas que era só outro trabalho alienante, de uma alienação talvez menos evidente. A alienação laboral camufla-se, mas continua a estar aí, como no século XIX. Escolas, liceus, hospitais, universidade, prisões, quartéis, gigantescos edifícios de escritórios, esquadras da polícia, o Congresso dos Deputados, centros de saúde, centros comerciais, igrejas, conventos, bancos, embaixadas, sedes de organismos internacionais, redacções de jornais, cinemas, praças de touros, estádios de futebol, todos esses lugares de celebração da vida nacional, o que são? São lugares onde se cria a realidade, o sentido da colectividade, o sentido da História, a celebração do mito de que somos uma civilização. [Afinal em que é que ficamos, Manuel Vilas? A alienação são lugares onde se cria o sentido da colectividade e o sentido da História? De celebração da vida nacional?] Todos os rapazes e raparigas a quem dei aulas, que será feito deles? Alguns talvez tenham partido para sempre. [Para sempre? Não fazes o caso por menos?] E aqueles colegas de trabalho com que coincidi também irão morrendo. [Vilas, quem nunca?] Os seus rostos desvanecem-se na minha memória. Vão todos para a treva. [Sorte a deles, Manuel!] (...) Alguns colegas morreram assim que alcançaram a reforma. É um castigo do acaso. O acaso castiga os calculistas, quem calculou a sua reforma. Os liceus não guardam recordação daqueles corpos. [Isso são os cemitérios, carago!] Os estabelecimentos espanhóis do ensino médio eram edifícios sem graça, construções deficientes, com corredores anódinos, com salas frias no Inverno e tórridas logo na Primavera. Os gizes, os quadros, a sala de professores, as fotocópias, a campainha a tocar ao fim da aula, o café com os colegas, as comidinhas defeituosas, mal cozinhadas, os bares sujos.
    E tudo se decompõe. Não havia fotografias dos professores reformados nos corredores dos liceus. [Vá lá, Manuel Vilas, é isso que te incomoda verdadeiramente? A falta de um retrato num corredor?] Não havia memória, porque não havia nada para recordar. E esses colegas enlouqueciam de mediania e vulgaridade e humilhavam e desprezavam os seus alunos. Aqueles miúdos eram humilhados e ofendidos pelos professores, esses medíocres com rancor pela vida. (...)» 

E a coisa continua sem dó nem piedade. Um conselho: isto já foi suficientemente descrito, analisado, debatido até ao tutano nos anos 60 por via de um Foucault, de um Marcuse, ou de um Deleuze, por exemplo. Que é triste, é. De facto, é. Não me compete a mim dizer mais a não ser uma profunda compreensão por esta má experiência de Manuel Vilas. Se era necessário registá-la num diário público em que se transformou a sua narrativa, já é outra coisa.

alc

sexta-feira, outubro 25, 2024

Às voltas na FLUC

 

Em fins de Setembro inscrevi-me numa disciplina na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Voltei à casa, seja, embora em outro curso. Casa que, nostálgica e evidentemente, está igual como há 40 anos e cujo nome «casa» era assim designada por alguns professores quando a queriam referir com a solenidade exigida: «Esta casa não permite tal...», ou «Esta casa assim se fez...», ou, ainda, «O prestígio desta casa faz-se assim e não assado...» e para nos calar, a nós estudantes das variadas comissões de curso, mandavam um altivo «Os regulamentos desta casa não prevêem tal...». Os móveis feitos de madeira das colónias lá estão ainda firmes, hirtos e eternos, as estantes dos corredores frios estranhamente vazias o que faz com que, por exemplo, olhemos para as estantes onde pontificam cartazes anunciando «literatura belga», ou «literatura italiana» sem nenhum livro, e o bar cuja única diferença é não poder receber em dinheiro o que pedimos. Todos visualizam, comunicam, usam, pesquisam nos telemóveis.

Dizia que estava tudo igual na faculdade. Não é bem assim: a matrícula tinha um regime que me era desconhecido até Setembro que era a estranha fórmula de «unidade curricular isolada»; só o nome me propunha a exclusão decisiva, visto que me encontrava na situação de não acompanhado e isto por não me ter inscrito num curso que me daria, se o tivesse escolhido, uma ideia de consistência que não almejei. Toma e embrulha! Só a propina me dá esse sentimento simultâneo de perda e inclusão. Por outro lado, permite-me inscrever-me futuramente noutras hipóteses e disciplinas continuando, contudo, no regime ubuesco de «unidade isolada». Não é mau de todo. Siga...
 
Depois das intervenções trauteadas nas aulas, com as hipóteses levantadas, os exemplos que os professores querem ilustrar para os mais novos, são dirigidas perguntas, preferencialmente, aos três elementos «seminovos» com que somos brindados pelo jovem professor. No caso, a necessidade em pedir exemplos concretos debruçava-se sobre a cultura salazarista! Como se nós tivéssemos sido amigos de António Ferro ou privássemos com João Gaspar Simões ou do folclorista Pedro Homem de Mello. Antigos mas nem tanto, caramba! A coisa continuava: «no vosso tempo, ouvia-se a canção francesa, não?» Eu, que ouvia, repetidamente, e nos anos 80 quando contava com os meus 20 anos, Jim Morrison, os Clash, os Velvet Underground, os Joy Division e os New Order, vejo-me, de uma só penada, remetido para o Georges Brassens, Piaf, Louis Armstrong ou ainda pior. Seja: não rebati nada. A verdade é que ninguém acreditaria que um tipo de casaco e bem-aprumado, como eu me julgo, tivesse sido um bardina do pior a clamar «No Future!» e a exigir o «kaos» contra a Tatcher e o Reagan, em grego que soa melhor. Seja, outra vez: calei-me. 

O estranho veio depois. Quando entrei  na sala senti-me algo desconfortável e não sabia porquê. Não era qualquer construção ideológica em volta do idadismo ou coisa parecida. Olhava para os meus dois colegas «seminovos» e nada via de estranho, embora a sensação esquisita continuasse. Somos 61 alunos e 30% são alunos estrangeiros, mas não, não era disso que se tratava. A esses não se pergunta nada, embora houvesse alunos ingleses que dissessem não conhecer D.H.Lawrence, ou italianos que sabiam lá quem era D'Annunzio! Mas todos sabiam quem era Pessoa e era possível, até, que tivessem no frigorífico um íman com a sua cara. Continuei a olhar e a investigar o porquê da sensação estranha no anfiteatro. A coisa foi descoberta quando começou a circular a folha de presenças: todos tinham computador e teclavam! Eu e os «seminovos» éramos os únicos que, armados com a sua Bic, tiravam apontamentos frenéticos, possivelmente com a língua de fora, de certeza com o calo crescendo no dedo médio, o «pai de todos»! Ninguém tinha uma esferográfica, nem uma simples Bic, essa invenção ligada aos testes da bomba atómica que substituiu a caneta de tinta permanente que estoirava nos aviões a grande altitude sem pressão atmosférica (estão a ver como a guerra é importante para o avanço da humanidade? Sem a bomba atómica não haveria nenhumas Bic de ponta fina ou grossa!) e cuja venda no Reino Unido obrigou o seu autor a mudar o seu nome francês de Marcel Bich, para Bic, porque era chato para os ingleses pedirem uma «caneta bicha»! É evidente que a minha esferográfica seguiu o seu caminho natural até à primeira fila do anfiteatro, perante o meu protesto surdo (o jovem professor falava e isto em Coimbra ainda tem peso!). Ninguém andava armado com esse objecto agora semi-conhecido a que se chama caneta. A partir dessa aula, levo duas bic's. Uma para mim e outra para as voltas ao anfiteatro. E ainda não repararam que escrevo como antes do AO.90! Miséria das misérias...

alc

sábado, outubro 19, 2024

Camões: Vidas e Obras

Camões no sofá da psicanálise ou no seu modesto catre a ser observado por todos. Nunca saberemos o diagnóstico, porque tudo o que nos falta conhecer sobre Camões é o que o faz maior, desconfio eu. Estes 500 anos do seu suposto nascimento a 1524 têm sido férteis em nada saber de mais. Toda a biografia do vate, bate no erro ou na suposição de que foi assim e não de outra maneira. Li uma biografia de Carlos Maria Bobone e outra de Isabel Rio Novo e não posso deixar de dizer que foi com algum gosto, mais por causa do poeta do que por eles. No entanto, nada de novo na costa. Reparo na muita genealogia, concedo que muita pesquisa, aceito a honestidade intelectual, desconfio da desconfiança nos pares, tolero pouco a pancada nos antigos biógrafos, admito ainda as suas interpretações sempre subjectivas aqui e ali temperadas com um nada saudável conservadorismo. Pelicano no frontispício da 1ª edição para a esquerda ou a contrafacção da publicação pirata com o pelicano para a direita, é-me indiferente. Camões irascível, gastador, libertino, tumultuoso, eterno insatisfeito estivesse onde estivesse, algo zangado com a sua condição social de nobre empobrecido, altivo para com os mecenas que o ajudaram, iroso para os poetas contemporâneos que, tais salieris lusos, o quiseram menorizar e prejudicar, alguns deles com sucesso mesquinho; preso e exilado, feito soldado à força, ferido numa refrega habitual nos fortes de Marrocos e administrador das heranças dos mortos da Índia, apontando, já nos anos 50 do século XVI, a decadência e inconsistência do Império. Voltarei, contudo e ainda no ano dos 500, bem-entendido, a Aquilino que escreveu admiráveis páginas sobre Camões e outro sobre o seu rei, mas este é uma outra coisa, que não falaremos aqui!

Felizmente, não fui dos que sofreu muito, no liceu, a prática da subordinação das frases de «Os Lusíadas», saídas inclusive nos exames do liceu e nosso particular terror, aumentado pela ansiedade acerca do canto que iria dessa vez sair. E não sofri muito, repito, porque, à excepção de um tipo completamente doido, fascista romântico daqueles que exigiam que a capital do Império fosse para Luanda e que lhe retiraram o brevet de aviação por ter voado sob a ponte de Vila Franca!, tive professores, dizia eu, muito bons de Português que sabiam compreender que a teima na gramática e na métrica dos versos da epopeia poderia afastar-nos irremediavelmente de Camões. Creio mesmo que, inteligentemente, nos compensavam com a lírica e com a proibida «Ilha dos Amores» que nos punha com as cabeças adolescentes em colégio interno completamente engalanadas de ninfas poderosas. Mesmo o nosso professor-aviador fascista romântico, conseguia, no seu entusiasmo exagerado pela viagem de Gama e dos feitos do Império, arremeter-nos para o ambiente marítimo e do distante exótico: no meio do estrado, esbracejava, gritava os versos, revirava os olhos, soltava os cabelos cheios de brilhantina, puxava as calças para cima da barriga proeminente, enquanto o borrão de um cigarro na mão livre lhe queimava a gravata. Ah, Camões! Sempre nos parecia que o poeta nada tinha a ver com estas figuras: sobrepunha-se a eles, alevantava-se em forma de miasma e observava de soslaio com o seu olho de condescendente ciclope a turma que, sob o terror disciplinado, bebia as palavras do sub-mestre. Mas a verdade que se diga: os melhores professores que me fizeram gostar de Camões eram de esquerda, contestavam o regime e ousavam tergiversar o programa da educação nacional, o que fez toda a diferença numa época rica de mitos de um país pobre. Tenho essa certeza que ainda permanece até hoje. Então a lírica, as rimas e redondilhas não me largaram através desses professores a quem devo estas linhas: «Sôbolos rios que vão/Por Babilónia, me achei (...)»

alc

quarta-feira, outubro 16, 2024

«A Resistência», Julián Fuks

 

Companhia das Letras, Penguin Random House, 2023
Pode não constituir ainda um padrão literário, mas esta narrativa de uma nova realidade sul-americana nasce de uma pesquisa difícil e dolorosa de uma memória reconquistada pela escrita. Trata-se de uma memória que tentou ser anestesiada pelas ditaduras da América do Sul e que teimosamente emerge, lutando contra o medo, contra a morte. Esta literatura nasce de gente nascida nos anos 80 e são escritores e escritoras que teimam em fazer reviver os que morreram sob torturas, desaparecimentos, sequestros, raptos de crianças, numa espiral de violência indescritível da extrema-direita no poder. Falamos da Argentina de 1976, do Chile de 1973, do Brasil, do Uruguai, da Nicarágua de Somoza, etc, etc,. A Operação Condor nas Américas não foi uma ficção. Lembramo-nos, para além de Fuks, da chilena Alia Trabuco Zerán, em «A Subtracção» e mesmo Layla Martínez em «Caruncho» e embora este último se passe em Espanha os mortos sem morada são os mesmos. Este rastro existe, o dos desaparecidos, dos mortos ainda sem sepultura. Como nos lembra o autor, as Avós e Mães da Praça de Maio, em 30 anos, «recuperaram» 114 netos adoptados à força. Faltam cerca de 400. Este facto pesará sempre na consciência de cada um de nós, ao menos em nós, dado que a dos verdugos é um enorme vazio assassino. A literatura é viver isto, também.

Mas se, por um lado, fazem reviver os mortos ou os desaparecidos, também se questionam a si próprios e aos sobreviventes. E é aqui que nasce este padrão literário, talvez estranho para os europeus habituados à democracia parlamentar e aos bons costumes do «confronto» mais ou menos polido. Julián Fuks é mais brasileiro que argentino, se bem que os seus pais vivessem em Buenos Aires quando do golpe de Videla em 76. Ambos médicos e militantes de esquerda, tiveram de fugir para o Brasil (embora igualmente em ditadura) para sobreviver, levando consigo uma criança que vieram a adoptar e irmão mais velho de Sebastián, nome da personagem que o escritor emprestou para si próprio neste livro. Esta ferida aberta, que Fuks não se inibe de revelar, toma vários formatos: a sua relação com esse irmão, com a sua irmã biológica, com os pais, com as Mães e Avós da Praça de Maio, com a própria esquerda e com a violência, com a ditadura; e a memória que ele se força por trazer ao de cima, sem que isso não impeça um conflito que adivinhamos com os próprios pais que não concordam com o modo como o filho expõe essas mesmas feridas ainda abertas e transcritas para a ficção. A revelação fria pode ser pior que a desmemória. 

O brasileiro Julián Fuks ganhou o Prémio José Saramago em 2017, mas este não é um livro extraordinário. Por vezes, durante a sua leitura, temos a ideia que é volúvel, etéreo, solto. Pouco firme, não muito consistente com os pensamentos ou com as ideias que quer transmitir. Mas talvez tenha sido essa a opção do autor. A memória não será assim, também ela?

«Toda a vida foi infenso a esses objetos. incômoda confluência entre a ameaça efetiva e o símbolo funesto, toda a vida me quis um pacifista. Agora penso nessas armas e não entendo a euforia que sinto, a vaidade que me acomete, como se a biografia do meu pai em mim se investisse: sou o filho orgulhoso de um guerrilheiro de esquerda e isso em parte me justifica, isso redime minha própria inércia, isso me insere precariamente numa linhagem de inconformistas.»

Que esse inconformismo perpasse gerações. Com armas ou com argumentos os tempos necessitam disso.

alc

domingo, outubro 13, 2024

«Uma Nova Violência», Luhuna Carvalho

Língua Morta, 2024.
Há quem, encostado no sofá da sala, vendo a TV, consultando os jornais em telemóvel, perore continuamente contra o estado das coisas, principalmente o já muito batido «empobrecimento da classe média», repetido mil vezes por eleitos e por eleitores. Geralmente estes últimos são pessoas que, comparativamente aos que trabalham por menos que o ordenado mínimo, estão relativamente bem na vida, realmente empobrecidos, é certo, mas mantendo o status e gostos culturais que os formaram durante longos anos. Para eles a vida continua sem grandes sobressaltos na cidade grande, atafulhada de turistas, de impostos e taxas, de pedintes e de sem-abrigos.

Geralmente, os media escondem êxodos silenciosos. Não são notícia, nem garantem grandes audiências. Mas existem e são subterrâneos. Imaginem os filhos dessa classe média depauperada, farta de ser enganada por todos, ou tipos já entradotes que não aceitam mais as chantagens do Estado e das máfias organizadas a fazerem as malas para um interior cada vez mais abandonado, reconstruindo, ocupando e lançando mãos a pequenas utopias que, como nos mostra Luhuna Carvalho, apresentam uma diversidade e uma pluralidade de cores, de pensamentos ou de objectivos completamente novos, procurando a autonomia e a liberdade que nunca conseguirão a manter-se o tal estado de coisas de que falava ao princípio e que a única premissa que nos oferece é a depressão colectiva. A conquista dessa liberdade e autonomia nem sempre se compagina com a paz ou com um pacifismo serôdio. Existe muita confusão em neurónios já muito queimados pela ondas hertzianas que consomem a tal classe média: nem sempre esta gente que foge da cidade é composta por hippies coloridos que cantam continuamente o «tumbaiá» e fumam umas ganzas. O autor que escreveu este «Uma Nova Violência» mostra que não são só estes a povoarem um sistema incapaz de manter o território com a vida rural que ainda subsistia ainda há poucos anos. Essa «nova violência» é descrita assim por uma personagem do livro de Luhuna Carvalho: «A «nova violência que ele propunha [Duarte] não era uma forma de emancipação nem de resistência. essa seria a antiga violência, a violência da nova lei condenada a degenerar na velha lei. A sua violência era uma forma insurreccional de disciplina. Era a construção interna e laboriosa, mas também excessiva e ritual, de uma outra forma de ser, de uma outra forma de ser o ser. Se o capitalismo era o ser negado, a sua nova violência era o ser multiplicado.(...)» (pp.27,28)

Quem já experimentou o isolamento e a solidão de uma grande cidade, sabe que poderá existir uma aventura na construção de uma comuna, geralmente longe dos grandes ou pequenos meios, mesmo que essa aventura se torne igualmente fastidiosa e estar sujeito a contradições contínuas dos seus membros ou a sentir uma invasão não consentida na sua personalidade por via de uma vida necessariamente partilhada. O autor explica toda esse problema de um modo extremamente claro, não fugindo aos problemas internos que uma tal opção obriga. Não entra num maniqueísmo sem sentido.

«Uma Nova Violência» aponta-nos um apocalipse anunciado, principalmente nas suas páginas finais, em lugares que conhecemos demasiado bem. Geralmente ao passarmos lá algumas férias de verão aburguesadas e arrendadas, nunca pensaremos que, nas nossas costas, toda uma rede de células vivas comunais e colectivas se movem, interagem ou lutam entre si. Situações que são por vezes imaginadas, mas outras são bem reais e aconteceram na luta contra os promotores da destruição do planeta ou dos fascistas, também eles a organizarem-se em territórios delimitados. Em relação à luta destes miúdos e da violência que protagonizam nas cidades, já me referi nestas páginas, à repressão ultra violenta a que são sujeitos pela polícia e pela população, para além dos já estafados «bonzos» da esquerda que escreveram prosas completamente absurdas (por não perceberem nada do que lhes está a acontecer, nem conhecerem sequer quem age ou como se organizam nessas manifestações); são eles Daniel Oliveira, Raquel Varela, Pacheco Pereira ou Rui Tavares. À sua direita pontificaram Clara Ferreira Alves, João Miguel Tavares ou José Manuel Fernandes. Sinceramente, lendo o que escreveram contra os manifestantes, não mostraram grande diferença entre a esquerda e a direita.

Imaginem, pois, que um dia entenderemos melhor este êxodo que há anos se vem materializando paulatinamente das cidades para o interior do país feito territórios escolhidos por um movimento comunal e talvez tenhamos melhor a noção exacta que estaremos já todos à beira do apocalipse. Ou, intuirmos que já é demasiado tarde para o evitar, se queremos de facto evitá-lo.

Um livro a ler. E demasiado verosímil, o que nos incomoda sobremaneira.

alc