sábado, outubro 19, 2024

Camões: Vidas e Obras

Camões no sofá da psicanálise ou no seu modesto catre. Nunca o saberemos, porque tudo o que não sabemos sobre Camões é o que o faz maior. Estes 500 anos do seu suposto nascimento a 1524 têm sido férteis em nada saber de mais. Toda a biografia do vate, bate no erro ou na suposição de que foi assim e não de outra maneira. Li uma biografia de Carlos Maria Bobone e outra de Isabel Rio Novo e não posso deixar de dizer que foi com algum gosto, mais por causa do poeta do que por eles. No entanto, nada de novo na costa. Reparo na muita genealogia, concedo que muita pesquisa, aceito a honestidade intelectual, desconfio da desconfiança nos pares, tolero pouco a pancada nos antigos biógrafos, admito ainda as suas interpretações sempre subjectivas aqui e ali temperadas com um pouco saudável conservadorismo. Pelicano da 1ª edição para a esquerda ou a contrafacção da publicação pirata com o pelicano para a direita, é-me indiferente. Camões irascível, gastador, libertino, tumultuoso, eterno insatisfeito estivesse onde estivesse, algo zangado com a sua condição social de nobre empobrecido, altivo para com os mecenas que o ajudaram, iroso para os poetas contemporâneos que, tais salieris lusos, o quiseram menorizar e prejudicar, preso e exilado, feito soldado à força e administrador das heranças dos mortos da Índia, apontando, já nos 50 do século XVI a decadência e inconsistência do Império. Voltarei, contudo e ainda no ano dos 500, bem-entendido, a Aquilino que escreveu admiráveis páginas sobre Camões e o sobre o seu rei, mas isso essa é uma outra coisa!

Felizmente, não fui dos que sofreu muito, no liceu, a subordinação das frases de «Os Lusíadas», saídas inclusive nos exames e nosso particular terror. E não sofri muito, repito, porque, à excepção de um tipo completamente doido, fascista romântico daqueles que exigiam que a capital do Império fosse para Luanda e que lhe retiraram o brevet de aviação por ter voado sob a ponte de Vila Franca!, tive professores, dizia eu, muito bons de Português que sabiam compreender que a teima na gramática e na métrica dos versos da epopeia poderia afastar-nos irremediavelmente de Camões. Creio mesmo que, inteligentemente, nos compensavam com a lírica e com a proibida «Ilha dos Amores» que nos punha com as cabeças adolescentes em colégio interno completamente engalanadas de ninfas poderosas. Mesmo o nosso professor-aviador fascista romântico, conseguia, no seu entusiasmo exagerado pela viagem de Gama e dos feitos do Império, arremeter-nos para o ambiente marítimo e do distante exótico: no meio do estrado, esbracejava, gritava os versos, revirava os olhos, soltava os cabelos cheios de brilhantina, puxava as calças para cima da barriga proeminente, enquanto o borrão de um cigarro na mão livre lhe queimava a gravata. Ah, Camões! Sempre nos parecia que o poeta nada tinha a ver com estas figuras: sobrepunha-se a eles, alevantava-se em forma de miasma e observava de soslaio com o seu olho de condescendente ciclope a turma que, sob o terror disciplinado, bebia as palavras do sub-mestre. Mas a verdade que se diga: os melhores professores que me fizeram gostar de Camões eram de esquerda, contestavam o regime e ousavam tergiversar o programa da educação nacional, o que fez toda a diferença numa época rica de mitos de um país pobre. Tenho essa certeza que ainda permanece até hoje. Então a lírica, as rimas e redondilhas não me largaram através deles: «Sôbolos rios que vão...».

alc