D.Quixote, 2017. Tradução para o Inglês e Introdução de Deborah Smith.
Tradução para português de Maria do Carmo Figueira
Estamos demasiado absorvidos pelo que se passará no regime monárquico da Coreia do Norte e do seu apetite termonuclear que esquecemos, muitas das vezes, que a Coreia do Sul teve um dos regimes mais sanguinários de extrema-direita que o mundo conheceu e durante dezenas de anos. Que, neste caso, Han Kang, a autora de «Atos Humanos», conheceu de perto. Só muito poucos dentre nós lembrar-se-ão das verdadeiras batalhas campais que pontificaram, nos anos 80 e início dos 90, nos campus universitários de Seul. A violência que então víamos pelas televisões (que mostravam o que queriam e somente dos correspondentes estrangeiros temporariamente lá sediados) era indescritível e a resistência não ficava inerme: lutava como podia, armada ou não, lutava sempre, respondia ferozmente às investidas da polícia de choque e dos militares. Estudantes de ambos os sexos de viseira, capacetes, óculos de mergulho contra os gases lacrimogéneos e contra os tiros reais ou de borracha. As imagens tornaram-se épicas. Os telhados das faculdades transformaram-se em castelos medievais de cujas ameias eram lançados coktail's molotov, pedras, garrafas, e cartazes enormes contra a ditadura que eram desfraldados com o peso de estudantes que se lançavam, em longos cabos, do alto dos prédios universitários. O que aconteceu no massacre de Gwangju, no sul da Coreia, a 300 km de Seul, foi outra coisa: já não eram só estudantes, como era Han Kang na altura, mas formou-se um âmago de solidariedade combativa com sindicalistas e operárias e operários, trabalhadores e funcionários que se armaram em milícias e responderam a tiro ao exército. Ainda hoje não se sabe ao certo o número de mortes que o exército fez, nem a dimensão da orgia de torturas e violações que então tiveram lugar. Foram muitos milhares. As milícias, embora armadas, hesitaram em usar as armas e foram alvo da sanha da ditadura sul-coreana que arrasaram a cidade, violando direitos humanos mais elementares. Como é apanágio da extrema-direita sempre apta a «atirar a matar».
O nome do seu primeiro ditador era Park Chung-Hee que governou a Coreia do Sul com mão-de-ferro, figura de retórica aplicada a um regime sanguinário e baseado no terror sobre a população. Nunca foi popular, mas os EUA deram-lhe a mão e conseguiu um «milagre económico» à custa, nós sabemos como!, de salários de miséria e de proibições ao nível dos direitos do trabalho, o que não impediu a continuidade de um trabalho sindical com tradições de luta que vinha desde os anos 10 e 20 do século XX. Ainda hoje os sindicatos são fortes na Coreia. Park não durou muito: o seu melhor amigo e braço-direito matou-o num golpe de estado e subiu ao poder. O seu nome: Chun Doohwan. Foi ele o responsável quer da repressão sobre os campus de Seul e do massacre vergonhoso de Gwangju que é narrado de forma magistral por Han Kang.
Tenho para mim que quando, num futuro não muito longínquo, os historiadores estiverem à volta da avalanche informativa de factos para apurar a sua veracidade na internet e nos media, será a literatura a restituir-lhes a verdade possível. Aquela que seja mais verosímil encontrar-se-á nos livros, sejam os autores quem forem e de que lado combateram. É por isso que devemos ler este livro. Para que a memória perdure e a infâmia não caia no esquecimento. Han Kang também soube ouvir e construir os depoimentos possíveis, já que muitos dos participantes ainda se calam.
«Descobri mais tarde que, nesse dia, tinham dado oitocentas mil munições aos soldados. Isso numa altura em que a cidade tinha quatrocentos mil habitantes. Ou seja, tinham posto à disposição deles os meios que permitiriam meter duas balas no corpo de cada pessoa. Estou firmemente convencido de que, se tivesse acontecido alguma coisa [uma resistência mais dura], os comandantes teriam dado ordem para as tropas no terreno fazerem exatamente isso. (...) Sempre que me lembro do sangue que corria pelas ruas nessa madrugada - corria, literalmente, descendo pelos degraus naquela escuridão de breu -, penso que aquelas mortes não foram apenas das pessoas que morreram naquele momento. Foram também a representação de muitas outras mortes. Muitos milhares de mortes, sangue de milhares de corações.» (pág.211)
«Serão os seres humanos fundamentalmente cruéis? Será a experiência da crueldade a única coisa que partilhamos enquanto espécie? Não passará a dignidade a que nos agarramos de uma ilusão para disfarçarmos, perante nós mesmos, esta simples verdade: que cada um de nós pode ser eduzido a um inseto, um animal voraz, um pedaço de carne? Que ser aviltado, magoado, esquartejado... é o destino essencial da humanidade, um destino cuja inevitabilidade a História confirmou?» (pág.238)
Quem assistiu a isto tudo, numa Coreia esmagada, a ferro e fogo quando a repressão se tornava insuportável e que «Atos Humanos» nos arremete, duma forma literariamente tão linear e intimista, terá todo o direito, e talvez o dever, de nos questionar deste modo. Não sei se haverá resposta. Saramago, outro nobelizado, tinha e disse-a com clareza.
alc