Alfaguara, 2019. Tradução de Vasco Gato
Por vezes, pergunto-me o que leva um escritor a escrever um livro assim. Bem escrito quanto baste não faz necessariamente um livro interessante. Eu, eu, e só eu, mais a minha família em 400 páginas repetitivas, longas, embora com o recurso a 157 capítulos que permitem uma leitura aparentemente levezinha. Manuel Vilas não o conseguiu de todo, assim como falhou na fotografia de uma Espanha autoritária, de uma região esquecida ou de uma família supostamente disfuncional. A narrativa arrasta-se interminavelmente e conclui-se com uns «poemas» do autor mais que sofríveis.
Fica aí um registo para que conste de um pedaço da vida de Manuel Vilas em que foi professor do ensino médio:
«(...) Passear, olhar as nuvens, ler, estar sentado, estar consigo mesmo num grande silêncio, foi esse o proveito.
E no dia seguinte já não madruguei. Deixei de dar aulas no ensino médio. Penso agora que aquele não era um trabalho aceitável, como em tempos julguei, mas que era só outro trabalho alienante, de uma alienação talvez menos evidente. A alienação laboral camufla-se, mas continua a estar aí, como no século XIX. Escolas, liceus, hospitais, universidade, prisões, quartéis, gigantescos edifícios de escritórios, esquadras da polícia, o Congresso dos Deputados, centros de saúde, centros comerciais, igrejas, conventos, bancos, embaixadas, sedes de organismos internacionais, redacções de jornais, cinemas, praças de touros, estádios de futebol, todos esses lugares de celebração da vida nacional, o que são? São lugares onde se cria a realidade, o sentido da colectividade, o sentido da História, a celebração do mito de que somos uma civilização. [Afinal em que é que ficamos, Manuel Vilas? A alienação são lugares onde se cria o sentido da colectividade e o sentido da História? De celebração da vida nacional?] Todos os rapazes e raparigas a quem dei aulas, que será feito deles? Alguns talvez tenham partido para sempre. [Para sempre? Não fazes o caso por menos?] E aqueles colegas de trabalho com que coincidi também irão morrendo. [Vilas, quem nunca?] Os seus rostos desvanecem-se na minha memória. Vão todos para a treva. [Sorte a deles, Manuel!] (...) Alguns colegas morreram assim que alcançaram a reforma. É um castigo do acaso. O acaso castiga os calculistas, quem calculou a sua reforma. Os liceus não guardam recordação daqueles corpos. [Isso são os cemitérios, carago!] Os estabelecimentos espanhóis do ensino médio eram edifícios sem graça, construções deficientes, com corredores anódinos, com salas frias no Inverno e tórridas logo na Primavera. Os gizes, os quadros, a sala de professores, as fotocópias, a campainha a tocar ao fim da aula, o café com os colegas, as comidinhas defeituosas, mal cozinhadas, os bares sujos.
E tudo se decompõe. Não havia fotografias dos professores reformados nos corredores dos liceus. [Vá lá, Manuel Vilas, é isso que te incomoda verdadeiramente? A falta de um retrato num corredor?] Não havia memória, porque não havia nada para recordar. E esses colegas enlouqueciam de mediania e vulgaridade e humilhavam e desprezavam os seus alunos. Aqueles miúdos eram humilhados e ofendidos pelos professores, esses medíocres com rancor pela vida. (...)»
E a coisa continua sem dó nem piedade. Um conselho: isto já foi suficientemente descrito, analisado, debatido até ao tutano nos anos 60 por via de um Foucault, de um Marcuse, ou de um Deleuze, por exemplo. Que é triste, é. De facto, é. Não me compete a mim dizer mais a não ser uma profunda compreensão por esta má experiência de Manuel Vilas. Se era necessário registá-la num diário público em que se transformou a sua narrativa, já é outra coisa.
alc