D. Quixote, Setembro de 2024
Dos melhores contos de Luísa Costa Gomes. Diz a contracapa que não terão um fio condutor, mas logo a seguir coloca-se a hipótese de existir «uma certa homogeneidade nos temas e nas abordagens» que serão «o tempo, a História, e a acção que por acaso ou por necessidade vamos tendo nela.» Este acaso e necessidade sente-se em todo o livro e principalmente nos seu último conto em forma de um diálogo, «Rotas», em que a fé, a providência, o determinismo e o acaso são os caminhos que levam à despedida do livro e com ele alguma sensação de vazio ao fechar a última página. Dizer que anda «tudo ligado», é demasiado cliché para a autora que foge deles a sete pés, como sabemos. O livro prende-se a nós, sendo que o contrário é igualmente verdadeiro. Não é fácil isto acontecer no processo de leitura, porque tudo o que se passa naqueles contos já o experienciámos verdadeiramente num momento especial e que se torna elementar, num local que conhecemos ou noutro qualquer. Ou seja, em todos os contos que lemos o protagonista é o leitor. Seja pelo sarcasmo e ironia de Luísa Costa Gomes ou pela capacidade quase obsessiva de observação dos outros (nós, pois claro!) os contos, todos eles, vão direitinhos para o que já presenciámos, que vivemos ou estamos em vias de o viver. Poderia ter acontecido connosco, já teria acontecido, irá acontecer, conhecemos alguém que... a comédia do quotidiano, as pequenas e grandes tragédias sociais e familiares, as vaidades e discricionaridades que aguentamos diariamente, os poderes fátuos mas omnipresentes, a informação, a formação, a deformação. Um cansaço, pois.
Disse Luísa Costa Gomes, numa entrevista ao jornal Público, antes da apresentação de «Visitar Amigos», que se via como uma anarquista que clamava por mais Estado. E, reivindicando-nos ácratas ou cedendo uma ou outra costela dos ditos em nosso próprio corpo, quem não? Lembrei-me, ao ler a entrevista, do soixante-huitard que escreveu que perante a morte de deus, talvez fosse melhor pensar bem quem o substituiria! Contudo, não deixa de ser um sintoma destes tempos estranhos que correm, em que se desmantela uma instituição tão antiga, quanto a guerra de massas e das edificações religiosas. Tudo então é posto em causa e é isto que estes contos nos dão. A nossa própria contradição perante a ruína em que se transformou a nossa casa, a nossa rua, os nossos amigos, o nosso amor e até o nosso ódio de estimação. Presente: um nico de esperança, ainda assim.
Treze são os contos de «Visitar Amigos». Já cá cantam todos, mas não percam nem um: o primeiro, «A Ditadura do Proletariado», nome que não sei se será censurado pelas redes sociais por incentivo ao ódio, é o começo da aventura de quem se meteu em obras em casa e está sob o domínio de um grupo de operários que, de camartelo em punho, dão conta da destruição de paredes a eito sem que se saiba ao certo se se construirão outras tantas. Se me ri? Claro que sim, e depois? «(...) A primeira etapa cumpre-se, portanto, com a violência de um furacão: um magote de operários escavaca paredes, lança nuvens de poeira sobre os próprios bens. Armários são despejados sem piedade, mostrando o sóbrio tesouro de pratos desemparelhados, restos de colecção, vindos de gerações que há muito despacharam esta parte. Vivemos, operários e sua clientela, em consonância; quanto mais se deita abaixo, mais vejo que é possível deitar mais abaixo. É a vertigem. Começa-se numa ponta, vai tudo raso. Não é possível destruir por fracções. Não há reforma que possa acalmar a sede do novo. Ou tudo, ou nada. (...) (pág.18)» Isto é todo um programa sem metáforas ou alegorias, bem-entendido, sem necessidades de prolegómenos ou ademanes. Para votação imediata. De resto há reencontros memoráveis em outros contos; reparem neste extracto «(...) Passaram quarenta anos. Mas agora reencontrámo-nos e vamos encontrar-nos. As fotos de vida que ela envia são daquela uma e mesma pessoa, olho vivo, o pé ligeiro, rodeada de dinâmicas, apenas submetida à pressão da passagem do tempo. Vem de iate, vem de parapente, trepou montanhas, amarinhou às gáveas dos navios, todos esses nomes perigosos da navegação, os portalós, os traquetes, as retrancas, o mastaréu de joanete, a verga alta! A bujarrona! (...) (pág. 67)» A forma como a autora escreve «A bujarrona!» faz com que não saia tão depressa da nossa cabeça. Nem sequer o meu computador reconhece a palavra bujarrona! Imaginei-me a levantar-me num café, num debate, num colóquio ou até numa aula em anfiteatro e clamar bem alto «A bujarrona!». Talvez não morra sem o fazer. A toada continua com gatos imperiais, heranças tramadas, viagens fabulosas, visitas turísticas a campos de concentração alemães e pesquisas academicamente sustentadas a campos de reeducação chineses, ao conto voltairiano «O Bem de Todos». Mas há lugar, igualmente, para a emoção e em forma de despedida: «(...) Apanho o voo nocturno. No aeroporto, na fila, à porta do voo, nos atrasos do voo, sorrio a tudo. O caminho para casa tem destes escolhos. Depois do jantar, no avião, enquanto eles dormem, subo discretamente a persiana. Espreito a noite e sou avassalada. Colo o nariz ao vidro da janela e esforço os olhos para verem o mais que podem. O bafo embacia o vidro, limpo-o com a mão, ele embacia-se de novo. Acabo por suster o fôlego. É sem respirar que admiro e desejo essas estrelas, ordem e ornamento da Terra. Siderada, estou noutra imensidão. Entre o embaciar e o desembaciar do vidro da janela, peço aos olhos que vejam o mais que podem e eles, amigos, recolhem a luz de todas as coisas apagadas. (pág.215)» Quem não se emocionar ao ler isto é porque...
alc