Em fins de Setembro inscrevi-me numa disciplina na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Voltei à casa, seja, embora em outro curso. Casa que, nostálgica e evidentemente, está igual como há 40 anos e cujo nome «casa» era assim designada por alguns professores quando a queriam referir com a solenidade exigida: «Esta casa não permite tal...», ou «Esta casa assim se fez...», ou, ainda, «O prestígio desta casa faz-se assim e não assado...» e para nos calar, a nós estudantes das variadas comissões de curso, mandavam um altivo «Os regulamentos desta casa não prevêem tal...». Os móveis feitos de madeira das colónias lá estão ainda firmes, hirtos e eternos, as estantes dos corredores frios estranhamente vazias o que faz com que, por exemplo, olhemos para as estantes onde pontificam cartazes anunciando «literatura belga», ou «literatura italiana» sem nenhum livro, e o bar cuja única diferença é não poder receber em dinheiro o que pedimos. Todos visualizam, comunicam, usam, pesquisam nos telemóveis.
Dizia que estava tudo igual na faculdade. Não é bem assim: a matrícula tinha um regime que me era desconhecido até Setembro que era a estranha fórmula de «unidade curricular isolada»; só o nome me propunha a exclusão decisiva, visto que me encontrava na situação de não acompanhado e isto por não me ter inscrito num curso que me daria, se o tivesse escolhido, uma ideia de consistência que não almejei. Toma e embrulha! Só a propina me dá esse sentimento simultâneo de perda e inclusão. Por outro lado, permite-me inscrever-me futuramente noutras hipóteses e disciplinas continuando, contudo, no regime ubuesco de «unidade isolada». Não é mau de todo. Siga...
Depois das intervenções trauteadas nas aulas, com as hipóteses levantadas, os exemplos que os professores querem ilustrar para os mais novos, são dirigidas perguntas, preferencialmente, aos três elementos «seminovos» com que somos brindados pelo jovem professor. No caso, a necessidade em pedir exemplos concretos debruçava-se sobre a cultura salazarista! Como se nós tivéssemos sido amigos de António Ferro ou privássemos com João Gaspar Simões ou do folclorista Pedro Homem de Mello. Antigos mas nem tanto, caramba! A coisa continuava: «no vosso tempo, ouvia-se a canção francesa, não?» Eu, que ouvia, repetidamente, e nos anos 80 quando contava com os meus 20 anos, Jim Morrison, os Clash, os Velvet Underground, os Joy Division e os New Order, vejo-me, de uma só penada, remetido para o Georges Brassens, Piaf, Louis Armstrong ou ainda pior. Seja: não rebati nada. A verdade é que ninguém acreditaria que um tipo de casaco e bem-aprumado, como eu me julgo, tivesse sido um bardina do pior a clamar «No Future!» e a exigir o «kaos» contra a Tatcher e o Reagan, em grego que soa melhor. Seja, outra vez: calei-me.
O estranho veio depois. Quando entrei na sala senti-me algo desconfortável e não sabia porquê. Não era qualquer construção ideológica em volta do idadismo ou coisa parecida. Olhava para os meus dois colegas «seminovos» e nada via de estranho, embora a sensação esquisita continuasse. Somos 61 alunos e 30% são alunos estrangeiros, mas não, não era disso que se tratava. A esses não se pergunta nada, embora houvesse alunos ingleses que dissessem não conhecer D.H.Lawrence, ou italianos que sabiam lá quem era D'Annunzio! Mas todos sabiam quem era Pessoa e era possível, até, que tivessem no frigorífico um íman com a sua cara. Continuei a olhar e a investigar o porquê da sensação estranha no anfiteatro. A coisa foi descoberta quando começou a circular a folha de presenças: todos tinham computador e teclavam! Eu e os «seminovos» éramos os únicos que, armados com a sua Bic, tiravam apontamentos frenéticos, possivelmente com a língua de fora, de certeza com o calo crescendo no dedo médio, o «pai de todos»! Ninguém tinha uma esferográfica, nem uma simples Bic, essa invenção ligada aos testes da bomba atómica que substituiu a caneta de tinta permanente que estoirava nos aviões a grande altitude sem pressão atmosférica (estão a ver como a guerra é importante para o avanço da humanidade? Sem a bomba atómica não haveria nenhumas Bic de ponta fina ou grossa!) e cuja venda no Reino Unido obrigou o seu autor a mudar o seu nome francês de Marcel Bich, para Bic, porque era chato para os ingleses pedirem uma «caneta bicha»! É evidente que a minha esferográfica seguiu o seu caminho natural até à primeira fila do anfiteatro, perante o meu protesto surdo (o jovem professor falava e isto em Coimbra ainda tem peso!). Ninguém andava armado com esse objecto agora semi-conhecido a que se chama caneta. A partir dessa aula, levo duas bic's. Uma para mim e outra para as voltas ao anfiteatro. E ainda não repararam que escrevo como antes do AO.90! Miséria das misérias...
alc