O jornalista da Visão Miguel Carvalho ganhou o Grande Prémio Gazeta 2009 pelo trabalho “Os segredos do Barro Branco” sobre Joaquim Ferreira Torres, figura ligada à oposição violenta ao 25 de Abril e assassinado em 1979. Miguel Carvalho publicou na Deriva "Aqui na Terra"
A REPORTAGEM DISTINGUIDA, na íntegra.
Joaquim Ferreira Torres - Os segredos do Barro Branco
Joaquim Ferreira Torres, industrial e financiador da rede bombista de extrema-direita, foi assassinado a 21 de Agosto de 1979. A morte serviu conveniências privadas e políticas. Mentores e autores não foram descobertos. O crime prescreveu. Trinta anos depois, a VISÃO traz a público novos dados e documentos.
Esta é a história de um homem controverso, de fortuna suspeita, que tentou cair nas graças do fascismo, deu dinheiro à oposição democrática, tirou comunistas da cadeia e ajudou «pides» e empresários a fugir. Um dia, ameaçou «abrir o saco» e calaram-no. A tiro
Naquela manhã, Joaquim Ferreira Torres levantou-se mais tarde do que o habitual. Normalmente, estaria a pé às seis horas. Mas o jantar terminara para lá da meia-noite e ele havia passado a madrugada com dores na coluna. Estava, contudo, bem-disposto ao pequeno--almoço. Era Verão e a família mudara da vivenda das Antas, no Porto, para a sua Quinta de Vila Nova, em Penafiel. A mulher, Elisa, ia para as termas de São Vicente, ali perto. O marido continuava a fazer o percurso diário entre a casa e a fábrica têxtil de que era proprietá rio, em Famalicão, ignorando o significado da palavra férias.
Apesar de discreto e reservado, regressara uma das últimas noites carregando uma mala com mil contos, fruto de um negócio com ciganos.
Atarefado, nem deu importância ao facto de, naquele período, alguém lhe rondar a quinta, questionando os caseiros sobre as suas rotinas. Estranhara apenas as avarias no telefone, quase sempre ao final da tarde. O aparelho parecia ter vontade própria e os técnicos tardavam em descobrir o defeito.
Tal não o impediu de marcar o referido jantar. Encomendara uns melões no restaurante Tanoeiro, em Famalicão, onde almoçava amiúde. O tenente-coronel Oliveira Marques e a esposa eram esperados à noite, vindos de Lisboa. Torres juntou à mesa a mulher, o Quinzinho sobrinho que criou como verdadeiro filho desde os onze meses após a morte de um irmão, a irmã Sãozinha e o cunhado Mota Freitas, major da PSP, entre outros familiares. Antes e depois da refeição, os homens reuniram no escritório. Oliveira Marques foi embora já passava da meia-noite.
Quando acordou, Torres vestiu uma camisa, casaco e calças claras, tipo caqui.
Apertou o cinto de cabedal vermelho e calçou uns sapatos castanho-claros picotados, de pala. No pulso, um Ómega de ouro. Num dedo, o anel, também em ouro, com brilhante de sete quilates.
Guardou a carteira com umas dezenas de contos e numa pequena pasta preta colocou documentos, cerca de 42 mil pesetas e 200 marcos. No casaco, levava a caneta em ouro e a agenda, cheia de contactos.
Nomes de homens de negócios, polícias e militares de várias patentes, velhos conhecidos do antigo regime, cónegos, políticos e cadastrados.
O industrial fez-se à estrada no seu Porsche vermelho 911 T, por volta das oito horas. Em Paredes, comprou os três matutinos do Porto e seguiu viagem. Três quilómetros à frente, na estrada nacional que liga Paredes a Paços de Ferreira, talvez vendo um rosto familiar, abrandou.
Numa emboscada de execução tipicamente militar, desconhecidos, munidos de armas pouco habituais no País, disparam contra ele vários tiros, atingindo-o sobretudo no crânio. Torres tombou, morto, para o lado direito do condutor.
Passavam 15 minutos das oito horas do dia 21 de Agosto de 1979. O Porsche contava mais de 77 mil quilómetros. Duas jovens iam comprar vinho quando deram o alerta. Joaquim Ferreira Torres tinha 54 anos, negócios menos claros, fortuna invejável e ligações íntimas a meios políticos, económicos e militares. Aguardava, em liberdade condicional, a repetição do julgamento da rede bombista de extrema-direita. Garantira que «abriria o saco» sobre os segredos e cumplicidades desse tempo. A morte ficou conhecida como «o crime do Barro Branco», lugar onde o calaram para sempre.
Até ali, ele tinha granjeado fama e fortuna vindo do nada e do esquecimento, ao estilo do mito americano. Nascera no simbólico 13 de Maio, em 1925, em Rebordelo, Amarante, um de 17 irmãos. Fez o ensino básico e vendeu carvão em Vila Pouca de Aguiar, onde o pai trabalhou nas minas. Também passou madeiras para Espanha, clandestino.
Foi marçano numa loja de mercearias finas e, no final dos anos 40, já andava por terras transmontanas, de bicicleta ou motorizada, como comissionista e vendedor de rifas, ganhando bom dinheiro com sorteios de chocolates e navalhas.
Em Murça, conhece Elisa, da aldeia de Noura, com quem haveria de casar. A rapariga trabalhara numa padaria e era governanta.
«Uma lasca de mulher, muito cobiçada», diz quem a conheceu. Namoram pelos quintais. E ela é sua cúmplice nas fugas à polícia, que metiam saltos pelos telhados e esconderijos em tonéis de vinho. Os mandados de captura contra ele sucediam-se. E do tribunal de Chaves desapareceria, mais tarde, o seu registo criminal, que incluiria um historial considerável de abusos de confiança.
Nos anos 60, já negociante de vinhos em Rio Tinto, Torres abre em Angola armazéns «com tudo do bom e do melhor para comer e beber», segundo um antigo inspector da PIDE. As relações e os negócios fluem. A partir de 1964, Sousa Machado, empresário, recorre a ele para fazer face a problemas económicos na Companhia Mineira do Lobito e nos hotéis Presidente e Panorama, em Luanda. Ao longo de anos, pedirá montantes da ordem dos 200 mil contos, empréstimos cuja totalidade não liquidará até à morte do amigo. O filão, porém, são as operações em diamantes e divisas.
Torres conhece Tschombé que, com ajuda da CIA e de diversos mercenários, tenta a secessão da província diamantífera do Katanga, no Congo. Quando o líder africano cai em desgraça, Salazar que lhe cedera armas dá refúgio aos familiares. Mas será o homem de negócios de Amarante a velar pelos interesses dos herdeiros de Tschombé. E pelos seus, claro.
UMA FORTUNA INCALCULÁVEL
Regressa, deposita lingotes de ouro na banca e dedica-se à especulação bolsista, mantendo laços com amigos de África.
Os bancos disputam-no e negoceia, fazendo-se caro. «Já ganhei mais mil contos! », ouviam-no, ao telefone, com gestores e administradores. Entre outros investimentos, compra terrenos, uma tipografia, uma casa de câmbios e chegará a ser dono de 27 quintas no Norte do País. Passeia-se num Jaguar 4.2, anda de Porsche e num Mercedes amarelo 350 SLC, desportivo. É amigo do banqueiro Pinto de Magalhães e do empresário Xavier de Lima, quase dono de Setúbal, a quem ajudaria a recuperar a fortuna.
É avalista de negócios no turismo e outras áreas. Devedor dele, Sousa Machado abre--lhe portas nos meios políticos e militares.
Hábil e desconfiado, anota tudo. Dos 110 contos que gasta nuns botões de punho a uma pulseira para a mulher no valor de 90 contos. O círculo íntimo sabe apenas o estritamente necessário. É de fúrias e impõe rotinas de forma quase militar, sem transigências.
Rigoroso, manda repetir textos à máquina por causa de vírgulas.
CULTIVA GOSTOS A PRECEITO
Os fatos e os sapatos são feitos às dúzias, por medida, nas melhores lojas de Santa Catarina, no Porto. De Londres, traz tecidos, sem falar mais do que o português.
Em casa, cultiva uma decoração imponente e aparatosa, com móveis franceses, que convidados classificam como «neobarroco da burguesia». Os jantares são opíparos e a garrafeira não destoa. Comprara mais de cem garrafas de Barca Velha, ao preço de muitos ordenados da época. Preferia colheitas de 64 e 65. Ou um Faustino I, Rioja, de 66. Se acompanhassem uma perdiz cozinhada pela mulher, tanto melhor.
Conquistado o estatuto financeiro, ao ritmo de «pronto-a-vestir», Torres procura a legitimação social que lhe faltava. Os seus ciúmes tinham um nome: Gonçalves de Abreu, comendador, dono de um império industrial, figura prestigiada, presidente da Câmara de Amarante. A autarquia e uma comenda eram o seu sonho. Ele esmera-se. Em finais dos anos 60, compra a fábrica têxtil Silma, em Famalicão, à família do destacado antifascista e comunista Lino Lima. Por mais de uma vez fará uso dos seus contactos para tirar o advogado dos calabouços da PIDE. Na Silma, onde a sirene marcava os ritmos das gentes de Brufe e Calendário, Mário Sousa, Maria de Sousa e Maria da Glória somaram 66 anos de trabalho. «O senhor Torres foi um bom patrão. Tinha as suas manias, mas pagou sempre os ordenados, mesmo quando esteve preso e fugido», contam. A sindicalista Ondina Coutinho travou com ele braços--de-ferro, a doer. «Nada era dado sem luta.
Mas tivemos condições de fazer inveja na região.» Militante do PCP, Ondina garante que Torres «nunca promoveu perseguições políticas na empresa». Já no estertor da ditadura, ele faz, porém, avultados donativos ao partido único, associações, bombeiros, misericórdias e instituições de caridade. As Irmãzinhas dos Pobres agradecem-lhe 50 contos entregues pessoalmente a Marcelo Caetano, presidente do Conselho. Colecciona medalhas de benemérito e benfeitor. Mas antes de tudo isso, já tinha um convite irrecusável...
Torres é nomeado para presidir à Câmara de Murça em 1971. Influências de um amigo salsicheiro a quem emprestara dinheiro. As verbas que faltavam ao município e que o Estado, somítico, não libertava, tinha-as ele. A terra dá um salto, ganha urbanidade. Oferece a cada morador um balde de plástico para o lixo que uma viatura camarária recolhe diariamente. Na rua, homem cénico que era, gesticula e dá ordens. «Exercia o mando, tinha dinâmica e visão», assinala José Gomes, antigo presidente da autarquia.
A COMENDA QUE NÃO VEIO
«Manda electrificar aldeias, abrir caminhos, construir estradas. Aparece de surpresa nas freguesias e, quando a verba se encontra esgotada, abre a bolsa e resolve os problemas», contava o seu vice-presidente.
Deu vida a lugares isolados, escolas.
«Foi um santo homem. Quem não é agradecido, é melhor não andar neste mundo», rende-se o lojista Alfredo Meireles. Adianta dinheiro que o Estado lhe pagará depois, aos bochechos. Estende a sua fábrica têxtil, dá terrenos pessoais para a construção de casas e inaugura uma piscina de fazer inveja na região. «Com ele, Murça seria a Suíça de Trás-os-Montes», crê José Gomes.
O populismo aflora. Empresta dinheiro a munícipes e paga a jornalistas por conta da montra impressa dos seus feitos. Dá banquetes de lagosta e assados, lautos. «Torres, Torres, Torres, és a nossa glória», canta-se.
Embalado, o edil até inaugura fontanários sem água, enquanto funcionários despejam baldes às escondidas para simular a liquidez que faltava ao momento. O Primeiro de Janeiro garante que ele «é o padrão do homem que todos desejariam ter como presidente». Adílio, Pedro, José, António e Mário, velhotes que comentam os assuntos da terra numa garagem da vila, ainda hoje garantem não haver espécie igual. «Até as casas de banho públicas lhe devemos.» Torres sonhou. Alto. Um dia, a vila engalanou-se para receber Américo Tomás e o autarca até pagou um livro para impressionar o Presidente da República na esperança de atribuição da comenda.
O Governo, porém, investigara a vida deste self made man nascido entre montes. «Não sabia nada de política, queria que todos vivessem bem e só pensava no próximo negócio.
Mas descobriram que ele não tinha a folha limpa», conta quem acompanhou o processo. Avisado, Tomás cancelaria a visita, desculpando-se com uma gripe. «Só quiseram dar-me Murça», lamentou-se o industrial, junto de amigos.
Tentara tudo para cair nas graças do fascismo.
Mas não encaixava na moldura do regime, que desdenhava de quem entrava fulminante na vida pública, com ares de novo-rico de extracção duvidosa. A revolução acentuaria o desfasamento, não sem luta. Júlio Montalvão Machado, primeiro governador civil de Vila Real em democracia, só consegue afastá-lo do cargo em Dezembro de 1974, após uma frustrada investida dos militares, recebidos pelo povo com varapaus, sacholas e forquilhas.
«Ele teria saído a bem, mas as pessoas queriam-no e lutaram com tudo. Foi o próprio Torres quem impediu que eu levasse um arraial de porrada.» Segundo Montalvão, era «um homem cordato, um excelente presidente para aquela gente», reconhece.
Apesar das ambições caídas por terra, ele não seria propriamente apanhado de surpresa pelo 25 de Abril. Dias antes das eleições de 1973, perspicaz e bem informado, convida César Príncipe a aparecer na casa das Antas. A relação entre ambos é boa, mas o jornalista do JN, relevante figura da oposição democrática, ligado ao PCP e calejado nas conspirações, receia as vigilâncias da PIDE. Arrisca. E Torres vai directo ao assunto: «Sei que está com a oposição.
Nada contra. Como sabe, tenho de defender o regime para proteger os meus interesses.
Vou dar mais dinheiro à ANP e alugar um helicóptero para a campanha. Mas também quero ajudar a oposição.» César escuta, estupefacto. «Ele queria começar a dialogar com o pré-poder e eu era quem estava mais à mão.» A oferta, «um envelope com algumas centenas de contos », tinha atrelado um pedido. «Sei que vai discursar num comício do Coliseu e queria que fizesse um ataque ao comendador Abreu.» César rejeita a condição. O donativo entra à mesma nas contas. «Anónimo, claro.» Torres joga em dois tabuleiros e, na despedida, confidencia: «Este regime está para acabar. É a PIDE quem mo diz.»
AS PRATAS, AS BOMBAS E A FUGA
Com as fervuras da revolução, Torres previne-se. Vende património incluindo 18 quilos de barras de ouro e prepara refúgio na Galiza. Ajuda «pides» a «dar o salto».
Nunca deixará, porém, de tentar pontes com os protagonistas do momento, como fez com Macedo Varela, militante comunista.
«Quis fazer um donativo ao MDP/ /CDE, mas com o objectivo de queimar alguém.
Recusei, claro», conta o advogado de Famalicão. Para ele, o industrial «não era esquisito em matéria de ideologias. Queria estar bem com Deus e com o Diabo». Mas ele teme o demo da foice e do martelo.
No início de 1975, é o fiel depositário de diversos valores de banqueiros, industriais e empresários nortenhos em fuga para Espanha.
Pratas, ouro, marfins, jóias e obras de arte de pessoas das suas relações são colocadas em casas e armazéns seguros, entre Tuy e Vigo, levadas por vezes em furgões atulhados. Ele controla a fronteira de Valença: guardas-fiscais escolhem na sua fábrica peças de vestuário. Abre contas para amigos em bancos galegos. Gere ele os dinheiros e os juros e aluga garagens para que possam esconder os Porsches, Mercedes e Jaguares.
O general Spínola foge para o estrangeiro e funda o MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal).
O braço-direito é Alpoim Calvão, militar responsável pelo sector operacional do movimento. No Norte de Portugal, Torres põe e dispõe e os apoios surgem de todo o lado. O presidente Mobutu, do antigo Zaire, oferece 5 mil espingardas semiautomáticas.
O comendador Abílio de Oliveira passa um cheque de um milhão de pesetas para a compra de armas. Dos quartéis, também saem algumas. O MDLP destrói, incendeia e faz explodir dezenas de sedes, casas, carros e estabelecimentos ligados, sobretudo, ao PCP e seus militantes. Há mortes. A rede bombista congrega autarcas, empresários e militares de diversas safras, sacerdotes, mercenários angolanos, ex-pides, seguranças do PSD, CDS e PS e gente para todo o serviço, com cadastro condizente. «Mais a direita de aldeia, caceteira e borrachona», refere um inspector da PJ desse tempo. Enquanto oferece roupa e dinheiro a retornados das ex-colónias, Torres ordena atentados e paga. Empresários compram-lhe dólares a um preço mais elevado e contribuem para a causa.
O movimento é despesa cara: as viagens de Spínola e os gastos de Alpoim custam mais de 3 mil contos por mês.
Com pouco de ingénuo, Torres sabe que o dinheiro é também usado para outras aventuras. Dirigentes no exílio compram casacos de peles de 900 contos e gastam «como lhes apetece». Um bombista queixa-se de passar fome, «enquanto outros se banqueteavam nos melhores hotéis». Por cá, a democracia pode esperar. Bombas explodem por conta de ódios de estimação e desavenças pessoais. O movimento comporta-se como «uma autêntica mafia», descreve quem o viveu por dentro.
As conspirações do MDLP com os moderados do Conselho da Revolução (Vítor Alves e Canto e Castro) sucedemse.
Torres, porém, diz-se «traído» quando os mentores do 25 de Novembro de 1975, liderados por Eanes, não cumprem o que alegadamente prometeram ao saudosismo de direita: Angola é entregue ao MPLA e o PCP iria continuar na legalidade. As bombas não param. Nem quando Vítor Alves e Canto e Castro reúnem novamente com o movimento, na casa de Valentim Loureiro, no Mindelo. Há armas e operacionais em roda livre. Sem perder de vista os alvos políticos, com o dedo de Torres. Em Abril de 1976, é assassinado o padre Max e dá-se o atentado à Embaixada de Cuba, em Lisboa.
Eanes é eleito em Junho para Belém, o País tenta normalizar. Torres é então detido com outros elementos ligados à rede bombista, entre os quais o seu cunhado Mota Freitas e o operacional Ramiro Moreira.
DO EXÍLIO À MORTE
O industrial é preso em Caxias, onde assina cheques e despacha assuntos relacionados com os seus negócios. Mas é libertado, alegadamente corrompendo um magistrado na fase de instrução do processo, a troco de vários milhares de dólares.
Na sequência das investigações da PJ, o Conselho Superior de Magistratura receberia uma recomendação oficial para abrir, no mínimo, um processo disciplinar ao magistrado. Nos arquivos do Conselho, confirmou a VISÃO, não consta que tal tenha sido feito.
Em Março de 1977, Torres é avisado um dia antes da emissão de novos mandados de captura e foge para Espanha. O irmão Avelino leva o Mercedes por Chaves, ele segue com o irmão Adelino por Valença, num BMW. Irado, desabafa contra «os pulhas» da magistratura e do Conselho da Revolução. «Dei milhares de contos àqueles filhos da puta para me ver livre deles e agora tentam mandar-me novamente para a cadeia.» Em Vigo, ocupa o quarto 710 do Hotel Nisa, que já lhe é familiar. Tem uma linha de PBX só para ele e controla, na recepção, todos os passaportes de portugueses ali hospedados. Se desconfia de alguém, diz ao dono do hotel: «Para este, da próxima, não há quartos.» Gere contas bancárias abertas na cidade e tem um cofre na Suíça.
A família visita-o aos fins-de-semana.
Almoça e janta no Las Bridas, onde uma sala mais recolhida é construída a seu pedido.
Aluga um apartamento junto ao El Corte Inglés. Atribuem-lhe relações amorosas com mulheres de amigos e de presos da rede bombista. Improvável, porém. Os seus devaneios eróticos ter-se-ão limitado a envolvimentos com meninas de cabaret, às quais não precisava pagar o silêncio.
Torres seria julgado à revelia, mas absolvido no processo da rede bombista, a 6 de Julho de 1978, talvez ainda escudado pelo magistrado «amigo». Mantém-se entre Vigo e o Porto, sente-se inseguro. Vendera a Valentim Loureiro a antiga casa de câmbios, em Lisboa, e o Porsche, carro que recuperará nesse ano. Uma parte dos seus terrenos e quintas está nas mãos de Castro Martins, o Mata-o-Pai, envolvido em negócios duvidosos. Fictícias ou não, o amigo demora a acertar contas das transacções.
Elisa Torres chega a apontar-lhe uma pistola em Valpaços. Mas tudo já estaria saldado quando Castro Martins aparece morto, nos anos 80, a boiar no Douro, no enfiamento do restaurante Mal Cozinhado.
No Brasil, Torres leva «uma banhada» num negócio de ouro. Zanga-se com Alpoim Calvão e Sousa Machado (ver caixa).
«O Alpoim saiu-me um grande filho da puta», desabafa, perante família e amigos.
Mesmo em dificuldades, ajuda famílias de presos da rede bombista e antigos operacionais a refazer a vida no estrangeiro. Recebe ameaças. E não perdoa nem esquece.
Um dia, sentado no sofá de casa, vê Vítor Alves na televisão. Irrita-se: «Filho da puta, bem me enganaste! E andaste a beber do meu vinho e a comer do meu presunto!» No início de 1979, parte das fortunas e valores retirados de Portugal no pós-revolução continuava em contas e cofres estrangeiros.
Ou adormecida em garagens e quintas de Ourense, na Galiza. À porta dos mais estrelados hotéis de Vigo, ainda abundavam os carros de luxo, com as indisfarçáveis matrículas negras de Portugal. A revista espanhola Sábado Gráfico repara nos portugueses que gastam generosamente dólares e marcos, enquanto outros compatriotas, despejados, pelas excursões, no porto daquela cidade galega, comiam a tigela de caldo nos passeios. Por cá, Torres recebe a má notícia: o julgamento da rede bombista, da qual saíra absolvido, é anulado e será repetido. Paga uma caução de 250 contos e aguarda em liberdade.
A INVESTIGAÇÃO POSSÍVEL
Inconsolável, diz a amigos e família, que, se for a tribunal, abrirá o livro. Falaria das páginas negras do MDLP, incluindo o furto da coroa de Nossa Senhora da Oliveira, do museu de Guimarães. E na utilização de grandes quantias de dinheiro e armas pertencentes ao movimento. Tinha vivido por dentro as conspirações e reuniões anteriores ao 25 de Novembro.
Lidava com bombistas e contrabandistas.
Sabia quem lhe devia dinheiro e porquê.
A poucas semanas de se sentar no banco dos réus, tudo terminaria, porém, numa curva do lugar do Barro Branco. E num silêncio ensurdecedor.
O crime apanha a PJ do Porto ainda a digerir a democracia. No activo, permanecem agentes do tempo em que eram dispensados do serviço para colar os cartazes do partido único. Em carros da Judiciária, também tinham saído objectos de valor para Espanha no pós-25 de Abril. Geram--se conflitos. Fausto Saraiva, o inspector que primeiro chega ao local do crime e logo devolve à viúva objectos pessoais da vítima, junta pistas avulsas em abono de uma tese «ideológica», inclinando a autoria do crime para a extrema-esquerda. As suas diligências, na fase decisiva, «dificultaram, para não dizer aniquilaram, quaisquer futuras hipóteses de abordagem» de diversas fontes anónimas, dirá, mais tarde, um relatório da própria PJ. As audições formais de testemunhas ou possíveis implicados iniciaram-se onze meses depois dos factos. Por essa altura, já a família de Torres tinha mudado as contas no estrangeiro de sítio e um irmão da vítima se tinha suicidado, tendo a seu lado recortes de jornais e fotografia do crime. Rigoroso, só um relatório do inspector Mouro Pinto, que também esteve no local.
O andamento do processo teve situações anómalas e caricatas. Avelino, o irmão que mudaria nos anos 80 os sobrenomes Torres Ferreira para Ferreira Torres para cavalgar a memória e o mito do mano Joaquim, pôs um carro à disposição da PJ e pagou viagens, refeições e outras despesas aos investigadores, com cerca de 7 mil contos entretanto pedidos à viúva. Apesar de anunciado várias vezes, um prometido livro da sua autoria a denunciar os implicados no crime ainda aguarda publicação.
Manuel Macedo, também MDLP, assistiu a interrogatórios e gastava 50 a 60 contos em almoços de perdizes e cabritos com jornalistas e inspectores da Judiciária.
O ex-MDLP Ângelo do Nascimento, sobre o qual pendiam vários mandados de captura, é encontrado com armas e caçadeiras, mas mandado embora.
Em 1982, Artur Pereira, da Secção Regional de Combate ao Banditismo da PJ, assume a investigação, dá ordem e alguma solidez ao processo. Alpoim Calvão, Vítor Alves e Canto e Castro são ouvidos, sem adiantarem contributos para o desvendar do crime. Há teses para todos os gostos, com a alegada vendetta do Barro Branco a oscilar entre 3 mil e 4500 contos para os executantes.
O processo atravessaria três gerações da PJ. E acabaria nas mãos de Vítor Alexandre, na Direcção Central de Combate ao Banditismo. Mesmo com arquivamentos pelo meio, a Judiciária faz escutas e novas inquirições que ajudam a sustentar uma acusação no crime do Padre Max, que acaba em julgamento. Mas o caso Torres, «enfim. é um enigma muito grande. Até depois de morto dá problemas», diria Manuel Macedo, apanhado nas escutas.
Ao longo de anos, vários dos visados em notícias e citados no processo ameaçaram recorrer aos tribunais, rejeitando «calúnias e difamações». A PJ rende-se em meados dos anos 90. Alpoim Calvão, com depoimentos contraditórios, gera a «forte suspeita» de intervenção nos factos ocorridos, mas faltam indícios sólidos.
O despacho de arquivamento assinala «alguma lógica» na lista de motivações relacionadas com os «negócios escuros » do MDLP e as conspirações da rede bombista com o Conselho da Revolução.
O crime prescreve em 1995.
A 21 de Agosto de 1979, quando ameaçara «abrir o saco», Joaquim Ferreira Torres não tinha percebido o timing da democracia.
Conspiradores de outros tempos tinham sido reciclados para o conforto dos cargos, das instituições e do poder político.
Outros andavam envolvidos nos negócios.
Queriam iniciativa privada, lucros e normalidade democrática. E sossego, por favor.
Passos de uma investigação
Para esta reportagem, a VISÃO realizou dezenas de entrevistas a pessoas que contactaram com Joaquim Ferreira Torres ou que, por alguma razão, estiveram por dentro de passos da sua vida e da evolução dos acontecimentos. Muitas solicitaram anonimato.
Outras, como Joaquim Costa Torres, a quem a vítima sempre tratou como filho, recusaram «terminantemente» prestar declarações. A VISÃO teve ainda acesso a diversas cartas, fotos e outra documentação que permanece à guarda de um advogado a quem a viúva falecida em 2008 confiou vários arquivos. Foram ainda consultadas, com precioso empenho da Secção Central do Tribunal Judicial de Paredes, as mais de 1800 folhas do processo de instrução.
Últimas cartas
Em 1978, por alegado intermédio de um amigo, Torres emprestara 20 mil dólares para os negócios de Alpoim e do empresário Francisco José Sousa Machado. Passados os prazos, Torres não havia recebido o dinheiro.
Em várias cartas a Alpoim confessa, desesperado, atravessar «grave crise financeira». É violento com o destinatário e manda recados ao Chico Zé, que, refere, não demonstrara vontade de resolver o problema. «O que mais me custa é não poder cumprir com as minhas obrigações», diz. E termina uma das missivas, ameaçando Alpoim. «Peço-lhe, caro Guilherme, não me obrigue a ter de pensar de si o que não desejaria nunca.» Já em 1979, Torres troca correspondência com Carlos Bernardo Vieira, empresário guineense, primo e «irmão de sangue» de Nino Vieira, Presidente da Guiné-Bissau. Nas missivas, falam de um negócio e sabia-se que Torres sonhava com um banco naquele país. Carlos Vieira garante que Valentim Loureiro é conhecedor das suas influências e diligências junto do poder político da Guiné. E diz estar a esforçar-se «para que o seu negócio se concretize de forma a ter margem para eu ganhar também algum para a educação das minhas filhas», escreve. A dada altura, percebe-se, o negócio parece emperrar. Torres morreria semanas depois da última carta.
POR MIGUEL CARVALHO