O outro, a alteridade, a impossibilidade, o desgaste, a representação, o apagamento, a invisibilidade,o loop. Estas são algumas das palavras que serviram, ontem, na livraria Índex para ler "Alfabeto Adiado", de José Ricardo Nunes.
Perspicazmente, Pedro Eiras revelou-nos os interlocutores de Ricardo Nunes outros: Pessoa, Herberto Helder e Borges.
Faz-se em Alfabeto Adiado uma homenagem a Herberto Helder, pois, como notou Pedro Eiras, Os Passos em Volta têm também 23 textos. Vinte e três, o mesmo número das letras do nosso alfabeto antes dos recentes acrescentos e o mesmo número de textos deste Alfabeto Adiado. Mas a cumplicidade entre autores não se fica por aqui.
Há, neste Alfabeto Adiado, uma profunda solidão autoral. Uma desespero radical porque o eu já não se revê em si, mas também não se revê no outro.
"Um dia de cada vez, repito eu ao espelho quando me levanto. Não tenho a certeza de ser eu, mas consola-me pensar que, se realmente for eu, me encontro preparado para as inevitáveis armadilhas de mais um dia." (pg. 32)
"Às vezes olho-me ao espelho num relance, na esperança de que a surpresa produza melhores resultados. Todavia, o braço esquerdo do reflexo, quando me aproximo para assumir mais uma derrota, apenas consegue tocar no meu braço direito. Talvez seja a única relação que possa manter comigo." (pg. 54)
"Às vezes olho-me ao espelho num relance, na esperança de que a surpresa produza melhores resultados. Todavia, o braço esquerdo do reflexo, quando me aproximo para assumir mais uma derrota, apenas consegue tocar no meu braço direito. Talvez seja a única relação que possa manter comigo." (pg. 54)
Nesta convergência de universos, a metáfora do espelho de Jorge Luis Borges adequa-se perfeitamente a Alfabeto Adiado: «todo o homem é dois homens e que o verdadeiro é o outro.» (Borges)
Na sessão de apresentação, no Porto, falou-se ainda de Flaubert e do seu incompleto Bouvard e Pécuchet, mas, mesmo não tendo sido falado na sessão gostava de cruzar este Alfabeto com "este" Baudelaire:
Perdido neste mundo desprezível, acotovelado pelas multidões, assemelho-me a um homem cansado, cujo olhar não vê atrás de si, nos anos distantes, senão desprezo e amargura, e diante de si apenas vê uma tempestade onde nada de novo está contido,nem ensinamento nem dor. (Baudelaire)
Podíamos dizer mais. Desvendar mais. Acrescentar uma inconfidência do autor, que confessou que parte deste livro foi escrito na prisão, mas o melhor é ler o livro em vez deste seu pálido reflexo. (já agora, a capa, é um pormenor do quadro Reflection de Lucian Freud).