quarta-feira, dezembro 29, 2021
«Suicidas», de Henrique Manuel Bento Fialho
terça-feira, dezembro 28, 2021
«Bach», de Pedro Eiras
«Bach» provoca-nos em direcção à música. Cada capítulo tem uma referência clara a um trecho do músico. Cantatas ou sonatas, acho dificílimo que a curiosidade nos deixe só com as palavras perante os convites, explícitos ou implícitos, que nos são dirigidos para escutar ou seguir de maneiras diversas as propostas de Pedro Eiras.
O livro inicia-se com uma carta de ''Anna Magdalena Bach'' a Frederik da Prússia que, sem perder a sua dignidade, pede que lhe seja dada, e às suas filhas do segundo casamento do músico, a vida que merecem. Não se poderá entender esta epístola sem ler atentamente o segundo capítulo ''Esther Meynell'' onde Pedro Eiras se confronta com a pesquisa (quase frustrante) que o levou a Bach; aí, lê-se: «Tentei, uma vez: alguns fragmentos, breves trechos para explicar como ouvia a música de Bach. Desisti; lembro-me de escrever uma carta a um amigo, a contar o impasse, a impossibilidade. Alguns anos passaram. Tentei novamente: um caderno crescia, entre leituras, experiências. Mas para onde, para que Bach - histórico, pessoal, real ou imaginário -, como dizer a música? Novo impasse. Descobria dolorosamente as fronteiras da linguagem; que nem sempre ela serve; que é preciso não pedir o impossível. E ninguém pode escrever um texto cujo tempo ainda não chegou. Mas nunca se sabe quando esse tempo chega. Escreve-se na ignorância, na escuridão.» (pág.31). É precisamente nesta confissão que o leitor terá de estar preparado para a beleza experimental de «Bach», de Pedro Eiras. Tudo, neste livro notável, tem um sentido; até no seguimento da procura de um silêncio de John Cage ou do ruído libertador da rua em ''Jean-Marie Straub e Danièle Huillet'' no Maio de 68 francês. Ou pretender, no capítulo referente a Leibniz, ouvir «o som infinitesimal de um floco de neve.»
A epistolografia é retomada em ''Gustav Leonhardt'' e nota-se a tentativa de causar uma ruptura com o romantismo com que alguns quiseram ligar Bach: «Não sei se concorda comigo Nikolaus, mas sinto que hoje se pensa um Bach devedor de Haydn e Mozart, de Mendelssohn e Brahms, um Bach que precisasse de ser corrigido à luz dos compositores seguintes. Por mim, não leio Bach à luz dos classicismos e romantismos posteriores, mas como o auge de uma tradição anterior: Frescobaldi, Pachelbel, Reincken, Buxtehude. (...) Os pianos são feitos para cantar, e a música de Bach exige um instrumento capaz de falar. Não importa uma longa melodia colorida, mas a articulação clara dos motivos. Como se o cravo pudesse apresentar o pensamento.» (pág.52) E essa separação do romântico continua em ''Glenn Gould». Uma construção de um tríptico verdadeiramente inquietante é realizada com Llansol, quando Pedro Eiras coloca em diálogo a poeta, Pessoa e Bach, repartindo com Llansol a dificuldade em escrever sobre um músico e a partir de Lisboaleipzig (Leipzig a cidade de Bach).
Há momentos de uma grande exigência para o leitor deste livro, como quando se depara com «Ich Habe Genug...» que traduzido significa «tenho o suficiente». Se é afirmado que a música de Bach é um quinto evangelho e se se apresentam os salmos atribuídos a David como salvíficos e de cantos de louvor (também de ira e de fúria) tentando escutar a música dos confins dos tempos através da panóplia de instrumentos e versos, ficamos com a proposta provocadora de seis páginas em branco, somente com a anotação musical da cantata BWV 82. Ficamos a perceber porquê se a ouvirmos com atenção. No final, elas serão preenchidas.
Os capítulos mais belos do livro, ''Martin Luther'' liga-se estranhamente com o último: ''2002''. Essa ligação é avassaladora se conseguirmos sentir, através, da leitura que nos dá Pedro Eiras a respiração suave que emana de um amor de uma filha para com um pai. Fazer isto em literatura não é para qualquer um. Pedro Eiras conseguiu-o plenamente.
António Luís Catarino
segunda-feira, dezembro 27, 2021
Bach, Joahnn Sebastian (1685-1750), de José Ricardo Nunes
domingo, dezembro 26, 2021
Auschwitz, Cidade Tranquila - Primo Levi
Hoje será preciso alguma dose de coragem para ler um livro cuja capa tenha o nome de Auschwitz, tal a imensa bibliografia (?) com este nome gerada pelo comércio livreiro a que não escapa sequer o baratinho e promocional «Pack Auschwitz». Ler Primo Levi devia ser um exercício obrigatório a quem se lance a adquirir a mercadoria abjecta do filão «holocausto». Não que seja um escritor de primeira linha, longe disso, mas é de uma grande objectividade e não rodeia questões, como se as houvesse!, perante o horror programado dos nazis. Este «Auschwitz, cidade tranquila» vale não só pelo seu título sardónico; conta-nos histórias e pequenos contos do tristemente célebre Lager alemão. Lembremo-nos que Levi foi encarcerado pela Gestapo em 1943 na Itália donde era natural e não por ser judeu. Era resistente ao fascismo e só mais tarde, depois de apurada a sua ascendência judaica, é que terá seguido para o campo da morte. Só que era igualmente um químico de renome e talvez tenha sido essa a razão de ter sobrevivido, embora não haja certeza absoluta desse facto. Muitos outros químicos que pertenciam ao «Komando» químico do campo soçobraram de frio, de fome ou na marcha forçada aquando da queda do campo devido ao avanço russo. Essa marcha forçada de prisioneiros escravos até Birkenau é dos momentos mais horríveis de que há memória na história da II Guerra Mundial. Só um quarto, como nos diz Levi, lá chegou. O autor encontrava-se entre os sobreviventes. Isto foi em Janeiro de 1945. A libertação total do campo pelos soviéticos e a morte de Hitler foi em Maio.
Fixei, contudo, um pequeno conto de Levi que sintetiza bem a mentalidade de um jovem casal nazi alemão, em 1943. Ele químico, ela não sei, o autor não diz. O jovem Mertens teme os bombardeamentos aliados e prefere uma zona mais tranquila já que quer construir família e ganhar algum dinheiro. Os amigos berlinenses tentam demovê-lo; que não, a vida no campo rural é um rame-rame, há os aldeãos, terão de habituar-se a ritmos diferentes, eles que são citadinos. No entanto, Mertens está decidido e pede a transferência para a fábrica química de Buna-Werke na Polónia, agora Alemanha: ganha-se bem, não há bombardeamentos, a guerra decorre lá longe e terá oportunidades para subir mais depressa. Mertens e a agora mulher instalam-se na cidadezinha com o nome polaco de Oswiecim, em que muitas casas bonitas se encontravam vazias e à espera de ocupação. Nem isso o fez perguntar porquê. Na fábrica onde subiu rapidamente a Oberingenieur, tinha como trabalhadores uns tipos esqueléticos, medrosos, de olhar baixo, tremendo de frio e fome, que vestiam uns pijamas azuis às riscas. O nosso Mertens nada perguntou. Um deles era Primo Levi e trocou com ele duas ou três frases. Numa ocasião, pediu que lhe dessem sapatos mais quentes e um casaco. Depois vieram os russos e Mertens nunca mais foi visto até aos anos 60, em que o acaso de uma troca de correspondência entre fábricas químicas devido a um erro de uma encomenda, Levi se cruza com Mertens. Era ele. A troca de cartas é demolidora para qualquer um de nós, em que ainda reste alguma sensibilidade: à pergunta lógica de Levi sobre o que ele pensava do seu papel no genocídio, respondia que não, nunca deu por isso no campo de morte, nunca viu morrer ninguém, que seria punido se tal viesse a ser comentado, então sabia ou não?, não!, falava-se mas nada de provas. Dedicou-se ao trabalho e nada mais, e que se lembrava dos sapatos e do casaco, sim, enfatizando claramente o facto, como um lampejo de arrependimento. Como bom alemão, obediente e escrupuloso, burocrata, nada sabia, nada viu, nada comentava. O nome da cidadezinha polaca que agora era alemã tomou o nome de Auschwitz, em vez de Oswiecim. Mas ele não sabia de nada, claro. Morreu pouco depois desta troca de correspondência.
sábado, dezembro 25, 2021
Os Anjos de Klee, de Ricardo Gil Soeiro
Os anjos de Klee
sexta-feira, dezembro 24, 2021
Uma Abelha na Chuva, de Carlos de Oliveira
quinta-feira, dezembro 23, 2021
Os Salmos. Uma visão de Timothy Radcliffe
Sempre tive uma verdadeira adesão emocional aos Salmos. Razão pela qual me obrigo não só a ouvi-los presencialmente ou, na falta, a ouvi-los em cd. Para ser mais sincero: a música dita religiosa provoca-me sensações estranhas, quer de enlevo, quer de inquietação. Seja como for, detenho-me a ler tudo o que me chega às mãos sobre salmos. O que acontece, por vezes, é que não valerá a pena comprar livros ou publicações sobre este tema; ou porque são muito académicos e ninguém compreende nada ou porque são demasiado teológicos e nada ganhamos. Não ouvimos salmos para saber teologia. Muitas ocasiões encontramos descrições e considerações importantíssimas onde menos esperamos. Aconteceu isso lendo Timothy Radcliffe em «Arte de Viver em Deus» já aqui referido.
O autor é defensor de um verdadeiro renascimento do que chama «imaginação cristã» como forma contracultural de lutar contra a banalidade do quotidiano. O ruído está em todo o lado: nos correios electrónicos, na rua, nos cafés, nos parques, nas praias, nas faculdades. A televisão e o computador obrigam-nos a horas de trabalho com que paradoxalmente nos libertamos com mais horas jogando e vendo filmes...no computador! Vejamos este trecho:
«O modo tradicional como os cristãos resistiram ao impulso gravitacional da banalidade foi reservar momentos de cada dia para recitar ou cantar poesia. Durante dois milénios, a Igreja manteve viva a sua imaginação contracultural, mediante cantos e poemas, em especial aqueles poemas indomáveis por vezes beligerantes e, amiúde, belos, os Salmos. Eles arrancam-nos do modo banal e utilitário de ver as nossas vidas. Os membros das ordens religiosas reúnem-se várias vezes por dia para cantar cânticos que nos sacodem do senso comum da nossa sociedade. Milhões de leigos rezam o breviário connosco ou sozinhos. O canto dos Salmos foi vital para os nossos antepassados, quando a nossa fé era ainda mais contracultural. (...) Embora os Salmos estejam repletos de cólera e desespero, terminam sempre, excepto um, com uma nota de esperança e louvor. Expressam raiva de uma forma muito real. Quando sofremos, talvez estejamos enfurecidos com Deus. (...) As palavras do Salmo exprimem essa raiva, abraça-a para que não fiquemos isolados, porque as palavras são partilhadas por cristãos e judeus, em todo o mundo e ao longo dos tempos. Não estamos sós na nossa fúria.»
Abjectos Surreais - edição de 120 exemplares esgotada
quarta-feira, dezembro 22, 2021
Uma legítima e pouco conhecida arte de viver
Não quero de modo nenhum fazer aqui uma síntese porque estava votado ao fracasso, embora ele assuma que o faz. Pena que as citações de Timothy Radcliffe que vou aqui colocar possam correr o risco de descontextualização. No entanto, arrisco:
«Jesus foi inteiramente obediente ao Pai, mas não era um zombie robótico. A verdadeira obediência é inteligente, quationadora, sem medo de duvidar e experimentar, na sua demanda de verdade. É uma conversação paciente...», pág.43
«A obediência da fé assemelha-se mais a ouvir, numa atitude expectante um quarteto de cordas de Beethoven do que a obedecer a um agente policial.» pág.44
«A compreensão cristã do que significa estar vivo é inteiramente contracultural.» pág.51
«O sangue vermelho nas nossas veias contém ferro nascido das estrelas. Escreveu o teólogo e cientista de Oxford, Arthur Peacocke: '' Cada átomo de ferro no nosso sangue não existiria se não tivesse sido produzido numa explosão galáctica, há milhares de milhões de anos, e se, por fim, não se tivesse condensado para formar o ferro na crosta da Terra, da qual emergimos.'' A real substância dos nossos corpos é inimaginavelmente antiga. Não poderia o Cristianismo, por seu turno, alargar a imaginação científica, afirmando que a emergência dinâmica da vida complexa e da consciência, que a teoria evolucionista urde, não acaba num universo esgotado, mas encontra uma realização para lá do alcance da ciência? » pág.70
«[Citando George Eliot] O crescimento do bem no mundo depende, em parte, de atos sem história; o facto de as coisas não estarem tão mal convosco e comigo como poderiam estar, deve-se em parte aos que viveram com fidelidade uma vida oculta e descansam em túmulos que não são visitados.» pág.99
«Estar vivo é encaminhar-se para a maturidade, ao passo que muitas manifestações da modernidade acorrentam as pessoas ao infantilismo.» pág.125
«Raramente encontrei a famosa ''culpa católica'' na minha infância. O catolicismo em que eu cresci e fui educado não estava oprimido pelo escrúpulo. Para mim, o medo era vergonha. O importante era não ser descoberto. Mas a culpa infectou algumas formas do catolicismo irlandês [eu diria, do ibérico, também] tingido de escrupulosidade jansenista. Muitas vezes, morava no sexo. Timothy Egan recorda a sua educação na infância: ''O sexo era sujo. O sexo era vergonhoso. O sexo era antinatural. Pensar nele era mau. A própria premeditação era um pecado e também namoriscar. O sexo tinha uma finalidade: a procriação, o ato sem alegria da reprodução.'' Brian Moore começa uma das sua primeiras histórias com a frase: ''No princípio era a palavra e a palavra era NÃO.''» pág.128
«A palavra paróquia vem do grego paroikeis, que significa um ''visitante'' ou ''estranho''. pág.207
«O cristianismo compraz-se na diferença. Está no seu ADN. A diferença é fecunda. A nossa Bíblia engloba as duas Alianças, Antiga e a Nova. O Novo Testamento não abole o Antigo, como pretenderam alguns dos primeiros cristãos, e o Judaísmo também não é simplesmente substituído pelo Cristianismo. Vivemos na interação da esperança do Antigo Testamento e da consumação do Novo. O Novo Testamento contém, debaixo da mesma capa quatro Evangelhos que descrevem a vida, a morte e a ressurreição de Jesus de modos aparentemente incompatíveis. Um bispo disse-me que, ao tentar explicar a um grupo de presos, porque é que os Evangelhos apresentam narrativas inconciliáveis daquilo que Jesus disse e fez, um deles não viu aí qualquer problema: ''Se todos eles dissessem a mesma coisa, seria um arranjinho!''» pág.230
«Lamentava-se Theodore Zeldin: ''Infelizmente, embora os seres humanos ruminem, cogitem, meditem, joguem com ideias, sonhem e façam inspirados palpites acerca dos pensamentos das outras pessoas, nunca existiu um kamasutra da mente para revelar os prazeres sensuais do pensamento, para mostrar como é que as ideias podem flirtar umas com as outras e aprender a abraçar-se.''» pág.232
«[Citando Romano Guardini: ''A face de um homem que busca apaixonadamente a verdade não é apenas mais «espiritual» do que a do homem com uma mente entorpecida; é também mais face, ou seja, é mais «corpo» de uma forma genuína e intensa...O corpo, como tal, torna-se mais animado...à medida que é mais fortemente informado pela vida do coração, da mente e do espírito.''» pág. 278
«[Citando Lewis Hyde] A lealdade das crianças das escolas, o conhecimento indígena, a água que se bebe, o genoma humano - tudo está à venda.» pág.303
sábado, dezembro 18, 2021
João Damasceno
quarta-feira, dezembro 08, 2021
A Sociedade contra o Estado, de Pierre Clastres
A 1ª edição da Afrontamento de «A Sociedade contra o Estado», de Pierre Clastres, andou na minha mão logo que saiu em 1979. A edição em França foi em 1974 sendo a tradução portuguesa de Bernardo Frey com revisão de Miguel Serras Pereira. Esta nova edição da Antígona tem a tradução de Manuel de Freitas e não estou apto a ajuizar se é melhor ou pior, até porque já não disponho da primeira. Mas parece-me fiel ao autor que morreu demasiado cedo, vivendo e conhecendo bem comunidades primitivas dos tupi-guarani, dos ianomani, dos nómadas do Chaco argentino ou dos ameríndios do norte. É portanto um observador privilegiado, crítico e rigoroso destes povos.
Livro notável este que releio com o gosto igual à primeira vez que abri as suas páginas há dezenas de anos. Nessa ocasião, acreditava num Estado do Bem, por assim dizer, a utopia de jovens onde cabia toda a felicidade da Terra. Hoje, sendo eu mais aberto a soluções sociais libertárias e radicalmente comuns, quer pela crise ambiental e capitalista, quer pela especulação do sistema económico e político actual, e não só do seu sub-sistema capitalista como querem alguns que, envergonhadamente, o querem salvar, leio este livro com outros olhos. Vejo-o literalmente como uma saída social baseada na economia de «subsistência» e na recusa de excedentes, recusando igualmente o poder político sendo ele despótico ou afirmando-se na sua falsa negativa. É uma lição que nos dão as comunidades índias e que devemos seguir com muita atenção com as edições verdadeiramente alternativas de uma antropologia livre de preconceitos etnocênticos.
Pierre Clastres não nos mostra sociedades primitivas baseadas no bom selvagem de Rousseau, ou num eventual paraíso perdido, cujo desaparecimento é a causa da infelicidade actual e dos séculos que a antecederam. Prefere analisar as sociedades selvagens (em Clastres o termo «selvagens» nada tem de pejorativo) como comunidades sem poder coercivo, não isentas de política existente em conselhos, com uma economia de subsistência rica e abundante, sejam as comunidades nómadas ou sedentárias, baseadas na recolecção e recusando o excedente que obrigasse a mais horas de trabalho; estas comunidades bem estruturadas e com uma unidade espiritual forte, recusa a chefia a todo o custo, isto é, havendo um chefe nominal, ele não representa mais do que a representação da comunidade, abafando conflitos latentes, organizando a guerra e a defesa, mas que a todo o momento pode ser substituído se os seus interesses ultrapassarem os da comunidade, geralmente não muito grande em termos demográficos.
Ou seja, Pierre Clastres apresenta-nos um ponto de vista crítico relativamente à antropologia etnocêntrica, à sociedade capitalista baseada no trabalho alienante, à História que pretende absolver os crimes perpetrados pelos colonizadores (diminuindo por exemplo os números astronómicos do massacre dos ameríndios, falseando uma densidade populacional impossível de existir no século XV, e que se traduzem pelo desaparecimento de dezenas, se não centenas, de milhões de indivíduos e da destruição massiva de grande parte da sua cultura), mas igualmente às próprias sociedades primitivas dividindo-as naquelas que aceitaram o Estado transformado em poder coercivo, como os Incas e os Astecas, e os que o desprezavam como os Tupi, os Guarani, os Ianomani ou os Apaches. Também se afasta, por anacrónica, das teses benévolas e até certo ponto ingénuas, dos trabalhos de Morgan, Engels e até de Lévi-Strauss. Aproxima-se mais de um Shallins ou de uma nova antropologia. Mas Pierre Clastres é só ele e isso tem de ser sublinhado. Não sendo um seguidor acrítico criou um método de estudo entretanto seguido por muitos.
O livro não é evidentemente só isto. Mas deixo-vos um pequeno trecho da «Sociedade contra o Estado» de Pierre Clastres: «...as sociedades primitivas não são o embrião retardatário das sociedades ulteriores, dos corpos sociais com desenvolvimento «normal» interrompido por qualquer doença bizarra, elas não se encontram no ponto de partida de uma lógica histórica que conduz directamente ao termo previamente escrito, mas conhecido apenas a posteriori, o nosso próprio sistema social. (Se a história fosse esta lógica, como poderiam existir ainda sociedades primitivas?) Tudo isto se traduz, no plano da vida económica, pela recusa das sociedades primitivas em deixarem que o trabalho e a produção as devorem, pela decisão de limitar as provisões às necessidades sociopolíticas, pela impossibilidade intrínseca da concorrência - de que serviria, numa sociedade primitiva, ser rico entre pobres? -, numa palavra,pela proibição, não formulada mas dita, da desigualdade.
»O que faz a economia, numa sociedade primitiva, não ser política? Isso deve-se, de modo evidente, ao facto de a economia não funcionar aí de maneira autónoma. Pode-se dizer que, nesse sentido as sociedades primitivas são sociedades sem economia por recusa da economia. Devemos então determinar também como ausente o ser do político nessas sociedades? Teremos de admitir que, visto tratar-se de sociedades «sem lei nem rei» [como afirmavam os primeiros europeus], o campo do político está ausente delas? E não recairíamos nós assim no trilho clássico de um etnocentrismo para o qual a falta caracteriza, a todos os níveis, as sociedades diferentes?»
Tentando responder a uma questão extremamente complexa na análise das sociedades primitivas sem Estado, nada impede que a falta dele e da economia excedentária, possa igualmente impedir a existência de política, como forma de auto-organização ou de controlo dos chefes e dos xamãs.
Edição da Antígona, 2018.
António Luís Catarino
sábado, dezembro 04, 2021
Abjectos Surreais metidos em trabalhos...surreais 1
quinta-feira, novembro 18, 2021
Sobre o quotidiano de miséria (hoje)...
Este desenho é icónico e os situacionistas inscreveram-no na sua revista. Sobre estes mesmos traços diz Anselm Jappe em «Capitalismo em Quarentena» o seguinte: «O mundo contra o qual lutaram os situacionistas parece, em comparação, quase idílico. Lembremos este exemplo, que vem dos estudos de Paul-Henry Chombart de Lauwe (1952): o registo de deslocações de uma jovem durante um ano desenhava graficamente um triângulo, apontando os vértices para a sua casa, a escola e as aulas de piano. Reproduzindo esse gráfico na sua revista, os situacionistas, para quem a vida deveria ser uma viagem, mostravam indignação perante uma existência tão limitada. Comparada com o quotidiano actual, com o trabalho à distância, as compras entregues ao domicílio e os «encontros» na aplicação Zoom, a vida daquela jovem adquire ares de aventura.»
António Luís Catarino
«Capitalismo em Quarentena», de Anselm Jappe, S. Aumercier, C. Homs e G. Zacarias
Uma das mais lúcidas análises sobre o capitalismo em estado de confinamento. Aliás, Anselm Jappe, que prefacia esta edição portuguesa da Antígona, já nos tinha habituado à crítica do valor (ou da tradicional ''mais-valia'' marxista) e do modo de produção como base de toda a crítica que quer realmente transformar o mundo. Daí, este livro não ser condescendente com as esquerdas altermundistas e altercapitalistas que não se acantonam na luta contra o fétiche das mercadorias, do trabalho e da vida quotidiana transformada em sobrevivência cada vez mais impossível de atingir nesta fase do capitalismo. Quando massas imensas da população mundial são tornadas supérfluas e aquelas que ainda não o são vêem a sua condição cada vez mais depauperada, só podemos esperar o pior nesta fase do capitalismo, ele próprio sobrevivente das bolhas especulativas que vai criando de crise em crise.
Os autores de «Capitalismo de Quarentena» partem de um pressuposto logo no Capítulo I »Crise e Crítica»: «A pandemia de covid-19 é o acelerador, mas não a causa, do agravamento da situação de crise global da sociedade capitalista mundial. Este novo acesso de crise económica global, ligado à pandemia, não aparece no céu sereno de um capitalismo em boa forma. É preciso, portanto, tentar compreender o vínculo entre a situação actual e o esgotamento estrutural do capitalismo, iniciado nos anos 1960, e que foi elucidado pela teoria crítica do valor. O conjunto do processo de crise fundamental, que abarca a crise da forma-sujeito moderna e as suas ideologias de exclusão (racismo, anti-semitismo, anticiganismo, populismo produtivo neo-nacionalista, darwinismo social, etc.), deve ser o ponto de partida da análise e da reflexão sobre a crise do coronavírus e das intervenções estatais correlatas.» (pág.17)
Após, em capítulos seguintes identificar, com dados concretos, a dicotomia Estado-Economia como sendo fortemente complementares e não inimigos ou de alguma forma incompatíveis, os autores desmontam a teoria da primazia do Estado sobre a Economia que a pandemia provocou. Nada mais falso, visto que o Estado visou fortemente o evitar da derrocada económica com o aumento vertiginoso e estratosférico das dívidas públicas soberanas. Onde se vê isso? Na verdadeira nacionalização, pelo Estado, dos lucros das empresas e dos salários dos seus trabalhadores, não permitindo as falências e o desemprego explosivo. Só que isto tem um fim, um limite que Marx e Debord previram com uma actualidade que nos faz admirar ainda hoje. O mundo invertido que nos falava Guy Debord, nos finais dos anos 60, vêmo-lo hoje quando neoliberais são neo-nacionalistas, ou quando a extrema-direita luta contra o estado de excepção, proclamando a liberdade! Pior é quando a esquerda quer atingir um outro mundo possível, sem pôr em causa o valor, a mercadoria e a produção, propondo um «decrescimento» em moldes de produção capitalista. Mais verde, menos produção, menos crescimento nada vale se o sistema de lucro não for realmente travado e destruído.
Mas o confinamento trouxe com ele um fenómeno já em desenvolvimento desde os anos 70. O da quarta revolução industrial electrónica com adesão clara do espectáculo. O ecrã como alfa e ómega de uma nova «distopia» já em curso. Agora, é o teletrabalho que surge como a separação última do ser humano enquanto ser social, com as consequências que podemos adivinhar na saúde, na educação, no trabalho, na habitação (a casa como local de trabalho), na estrutura do núcleo familiar, na condição da mulher, na hostilização do estrangeiro e do não-vacinado ou do doente e dos velhos.
Os autores e Anselm Jappe em particular não encontram razões para estarem optimistas: «Os fanáticos do crescimento económico deverão conseguir mobilizar parte da população a seu favor, e o espírito do curto prazo ainda pode ter longa duração.» (pág.120) Com propostas políticas cada vez mais delirantes e perigosas a serem aceites pela população.
António Luís Catarino
quarta-feira, novembro 17, 2021
Aquisição do livro «Abjectos Surreais»
Neste momento, estou em condições de ceder-vos o meu livro sobre surrealistas portugueses, «Abjectos Surreais». São 14 desenhos meus, complementados com textos escolhidos dos autores e acompanhados pela bibliografia consultada. São eles: Pedro Oom, Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Mário-Henrique Leiria, António José Forte, Henrique Risques Pereira, António Dacosta, Carlos Eurico da Costa, Virgílio Martinho, Cruzeiro Seixas, Manuel de Castro, Manuel de Lima, Herberto Helder e Álvaro Lapa. A publicação foi das Artes Breves e o trabalho de composição foi de António Alves Martins. Tiragem 120 exemplares. A aquisição do livro far-se-á através do messenger e mail. Abraço-vos desde já.
domingo, novembro 14, 2021
«O Mito da Razão», de Georges Lapierre
Num momento em que a Conferência de Glasgow se transformou numa palhaçada trágica, chegando-se a propor não fazer mais nenhuma tal a dimensão do seu fracasso, surge-nos, pelas edições «Flauta de Luz» (sim, a da revista homónima) este importantíssimo trabalho de Georges Lapierre sobre o mito da razão. Aliás, ele afirma que o título deveria ser «O Mito do aparecimento da Razão». Deve referir-se igualmente a excelência da tradução de Ana Marques cujo trabalho não foi nada fácil visto que, sendo a linguagem ocidental uma forma de poder, de troca mercantil e de domínio, não se compagina muito bem com povos indígenas cuja linguagem é total, una de sentido e tem o gérmen perigoso da reciprocidade e da dádiva.
Um exemplo dessa dificuldade de tradução vem logo com uma frase da comandanta (assim mesmo, comandanta) zapatista Ana María que no Encontro mundial zapatista de 1996 e em língua tojolabal brindou os presentes algo confusos com esta frase «Atrás estamos vocês»! É evidente que não tem tradução para nós ocidentais; aqui, nesta pequena frase de Ana María encontramos toda a subtilidade de um pensamento único, indígena. Aquele pensamento da unidade que não reconhece a natureza ou cultura porque o homem e a mulher são partes dessa realidade juntamente com o outro. É uma outra cosmogonia, uma mundividência que produz um modo de pensamento realmente recíproco.
O autor está empenhado na luta zapatista que conhece como poucos. Mas desenganem-se os militantes do logro da integração indígena, cujo pensamento nada tem a ver com a razão (aqui talvez com R maísculo tipo Kant ou Descartes) ocidental. Esta última terá nascido na Grécia Clássica e terá trazido consigo a escravatura, o dinheiro, a troca de mercadorias, a desigualdade de género e o afastamento político dos estrangeiros (os barbaroi), que predomina até hoje. Não é necessário partir a cabeça para saber que a Grécia e Roma foram sempre tidas como exemplos a seguir por todos os tiranos e «democratas», como se não houvesse outras alternativas. A escola e a empresa sabem reproduzir, juntamente com o viscoso «bom senso» a ideia base da razão filosófica ocidental que separou o indivíduo da natureza e da cultura. Para haver ligação entre este elementos, ténue que fosse, seria sempre preciso uma «religio», um mediador que tomou várias formas, principalmente o protestantismo do século XVI até hoje e que legitimou o lucro.
Uma das questões mais interessantes do livro de Lapierre é saber por que razão houve uma «paragem» ou «estagnação» do pensamento entre o período do Paleolítico Superior e do Neolítico até ao Crescente Fértil do Próximo Oriente quando a agricultura tomou a forma de acumulação excedentária mercantil. Desde Lévi-Strauss, passando por Vidal-Naquet, e com eles quase todos os académicos, fogem a esta questão. Dezenas de milhar de anos cujo pensamento estagnou na humanidade? Ora, a resposta de Lapierre é consentânea com a de John Zerzan em «Futuro Primitivo», editado pela Deriva. As comunidades humanas primitivas não viam vantagem nenhuma em transformar o seu modo de pensamento e igualmente de «produção» para se entregar à escravidão. Ou seja, da recolecção e da agricultura dita de subsistência para a troca de produtos transformados em valor. Porque o fariam? Não fosse a nova vaga de antropólogos onde se encontra Lapierre, e este na senda de um Pierre Clastres e de um Marshall Shalins («Idade da Pedra, idade da abundância») ainda hoje estaríamos a navegar pelas águas dos arautos da civilização e da razão.
Um livro a ler com a urgência. Urgência essa que não têm de modo algum aqueles que vêem com um sorriso nos lábios a Terra a deteriorar-se sem que levantem um dedo ou que recusem a revolta. Pior, que menosprezem e que denigrem os que lutam. As ditas elites que nos comandam já sabem onde podem colocar as bolhas de oxigénio em redor das suas casas e bairros, pagos por aqueles que sufocam com o ar que já respiram.
Em Glasgow, o tristíssimo documento que conseguiram publicar, mostra bem a indigência intelectual dos seus assinantes; mas é igualmente arrogante ao pretender «preservar a cultura indígena»!! Quando é exactamente o contrário de que se trata. Só nos salvaremos se os compreendermos em todo o seu pensamento racional tão subtil, como intrincado na totalidade da relação humana.
António Luís Catarino
quarta-feira, novembro 10, 2021
«Escada Líquida», de Maria Aurélia Marcelino e Eduarda Feio
O livro da Antígona, editado há pouco mais de um mês, apresenta-se como «conversas inéditas com surrealistas portugueses», realizadas por Eduarda Feio e Maria Aurélia Marcelino. Estas «entrevistas» tiveram lugar no ano de 1978 e as autoras eram alunas da ESBAL não conformadas com o ensino conservador que aí então se vivia e que era fruto do salazarismo e, simultaneamente, em profunda convulsão e transformação. Intui-se ao longo do livro que essas mudanças na ESBAL não foram tão profundas quanto necessitavam, mas isso levar-nos-ia a outra conversa.
Os surrealistas nomeados são cinco: Henrique Risques Pereira, Mário-Henrique Leiria, Mário Cesariny (que recusou o encontro), Cruzeiro Seixas, Fernando Alves dos Santos (que não foi encontrado) e Pedro Oom cuja entrevista decorreu numa «conversa com um surrealista morto», ou seja, tendo um carácter esotérico e mediúnico.
Henrique Risques Pereira foi o mais contido, tendo já dado exemplos dessa contenção em outras publicações. Pouco diz e o que diz não esclarece, nem clarifica. A conversa com Cruzeiro Seixas é um resumo, visto que as autoras não a gravaram, tendo somente tomado notas que as editaram sem tratamento posterior. Já com Fernando Alves dos Santos limitam-se a dar-nos provas que estiveram no seu encalço a partir de informações dadas por Henrique Risques Pereira ou Cruzeiro Seixas, sem que o tivessem encontrado no Algarve segundo era a sua convicção. A «conversa» com Pedro Oom limita-se a um sessão quase de mesa pé de galo, em que tentam reconstruir impressões surrealistas ao poeta que morreu de comoção após o 25 de Abril de 1974. Pessoalmente, acho a experiência demasiado pueril.
A coisa muda de figura com Mário-Henrique Leiria que é de uma loquacidade invulgar para quem sempre se escusou a dar entrevistas públicas. Solta-se completamente com as autoras. Só por isso vale a pena ter o livro em mãos. Reparem no que ele afirma:
«Isto de dizer pintura surrealista, ou literatura surrealista, não há, pá. Há gajos surrealistas que fazem pintura, que escrevem, e de vez em quando extravasam tudo o que têm de extravasar, e catrapuz, deitam cá para fora, sai na pintura, sai na literatura, sai no que eles fazem, sai nos actos de vida até, o chamado processo do acto falhado. Nós tínhamos muito esse processo. O acto falhado. Sai cá para fora. É uma revolta. Quanto a mim, é uma posição de revolta perante a sociedade que nos rodeia. Agora surrealismo, surrealismo, é muito difícil dizer o que é o surrealismo. Para mim, não sou capaz.» (pág.33)
E mais à frente:
«Vivência poética? Sempre a tenho feito...ainda hoje. Poeta, quer dizer, dentro de uma forma de viver poeticamente.(...)» (pág. 51)
Um caso sério este Mário-Henrique Leiria. Um livro a ter.
António Luís Catarino
segunda-feira, novembro 08, 2021
António Barros - O poema acompanha a deriva
POR PO-EX.NET
António Barros – O poema acompanha a deriva
Texto de António Luís Catarino sobre António Barros, parte integrante do projecto-livro “Uma Luva na Língua” (em preparação). [Texto]
Se não morrermos aqui, seremos capazes de ir mais longe?
Internacional Letrista, nº23 de Potlatch
Quando, pelos anos 60, começa a despontar a poesia experimental provocando a náusea aristocrática de muitos iluminados já então escurecidos pela falência filosófica, na decadência da palavra escrita e sentida como mercadoria, não se pensou que aquele tipo de expressão comum e vendável, bem suportado pelo «romance/poesia/imagem», teria muito tempo de vida, tal a vitalidade das novas formas poéticas. A poesia das «emoções», balofas, da virtualidade do pastel de nata e do café pessoano, do enaltecimento do quotidiano como possibilidade de uma falsa poesia da alegria alarve, mesmo que esse quotidiano fosse o da miséria repetitiva no gesto, os poetas experimentais e António Barros em particular, talvez dos poetas mais novos dessa onda purificadora, denunciaram isso mesmo: o objeto como fétiche acumulativo de capital. Nasce então o poema-objeto tão caro a Barros, ironizando toda uma sociedade de produção nas suas peças, mostrando o inconcebível que os arautos da arte sofrível nunca entenderam. O objeto contemporâneo, esse, é todo o fruto de um processo de produção, cujo valor se divide na troca e no uso. Ora, a tese de Marx é recuperada por Debord, chamando-lhe a esta diferença, o espetáculo. Barros e a Po.Ex e provavelmente a Fluxus, perceberam o que outros, excecionalmente dotados para o processo especulativo, nunca perceberam. A experiência, em Barros, toma o objeto em forma de valor de uso, através da apresentação metafórica deste e recusando o seu valor de troca. Essa produção poética verdadeiramente provocante, que nos incomoda e que nos obriga à reflexão, não é benquisto pelas hordas político-parlamentares que continuam a derramar aos borbotões a sua ideia de vidinha. A deriva é exatamente o corolário artístico de António Barros e explicado pelos situacionistas. É uma política notívaga que reage em círculos concêntricos atravessando uma quadrícula urbana repressiva e que se encontra no local onde nos sentimos identificados, livres, usando os objetos certeiros que apontam aos estômagos. Portanto, objeto-poema e deriva contra o quotidiano do tédio é o que se adquire observando e absorvendo cada poema-objeto. Como afirma Asger Jorn «A arte compõe-se, toda ela, de signos que, ao caracterizarem certas qualidades de um objeto, evocam a imagem deste». Justamente. António Barros transforma o valor de uso de um objeto na poética possível: retirando-o da cadeia de produção e propondo-lhe o signo.
António Luís Catarino
Coimbra 21 de abril de 2019
Foto: White Cube Blog
segunda-feira, novembro 01, 2021
«Viagens», de Olga Tokarczuk
Para uma prémio nobel, Olga Tokarczuk, até escreve bem. O que eu vejo e li neste livro foi que ela aderiu e optou completamente por uma escolha pensada na técnica dos fragmentos. Pouco interessa se terá conhecido ou não essa teoria em Pascal Quignard, em Claudio Magris no seu «Danúbio» ou, até em Kapuscinski, mas não deixa de ser de algum modo flagrante a semelhança da sua escrita com a de Magris.
Não tenho a certeza que a coisa tenha saído bem: os fragmentos, para o serem, têm necessariamente de ter um fio condutor que una os cacos. Essa cola, esse cimento, é, em «Viagens» o corpo humano e a sua forma, levando-nos à descoberta quer do seu funcionamento através dos gânglios, veias, nervos, artérias, ossos, músculos, neurónios, tudo o que se pode imaginar que está cá dentro e a obsessão humana em mostrá-los com soluções químicas e líquidos tão excepcionais como misteriosos e a tanatopraxia, palavra nunca referida em «Viagens», mas sempre presente nas múltiplas variáveis de embalsamamento conhecidas, desde séculos atrás. Pelo meio, e aqui é que a técnica literária falha, coloca-nos em viagem, num diário estranho, envoltos em pormenores superficiais e histórias de desaparecimentos inexplicáveis. A opção da escritora polaca talvez tenha sido essa e aí nada a fazer. Quem pode, manda. Mas os fragmentos ficam de algum modo soltos em demasia, sem ligação entre si.
De qualquer modo, há momentos bons de escrita, apostos no pensamento de um grande geógrafo holandês do século XVII, amputado de uma perna, e que nos leva directamente à teoria dos fragmentos sejam eles literários ou físicos: «(...) Será porque estamos condenados a ser um todo? Porque toda a mutilação e esquartejamento não passam de uma ilusão que ocorre ao nível da superfície, mas que, no fundo, mantém o todo intacto e imutável? Os mais pequenos fragmentos não pertencem ao todo?»
E sobre a Razão, o mesmo Philip, escreve: «Insistia que o tipo de razão superior não é o raciocínio lógico, mas o intuitivo. Aceder ao conhecimento através da intuição conduz-nos imediatamente à necessidade determinista da existência de todas as coisas. Tudo o que é necessário não pode ser diferente do que é. Quando nos consciencializarmos disso, sentiremos um grande alívio e experimentaremos uma sensação de purificação. Não iremos mais preocupar-nos com a perda dos nossos bens, com a passagem do tempo, com o envelhecimento e a morte. Desta forma, poderemos alcançar o controlo sobre os nossos afectos, bem como a paz de espírito.» E mais adiante: «Precisamos tão-só de esquecer aquela vontade primitiva de julgar as coisas em termos de boas ou más, da mesma maneira que um homem civilizado tem de se esquecer dos seus instintos primitivos - sede de vingança, ganância, desejo de posse. Deus, ou seja, a natureza não é boa nem má; é o intelecto, usado incorrectamente, que nos mancha com os afectos. Acreditava que todo o nosso conhecimento da natureza é, no fundo, um conhecimento de Deus. É este conhecimento que nos liberta da tristeza , do desespero, do ódio e do medo, que são realmente o nosso inferno.»
Aparte estes trechos de algum bom sentido literário deparamo-nos com algumas vulgaridades como a busca do significado estafado e tão académico da palavra grega «kairos», a ilegibilidade e falta de enquadramento literário dos mapas apresentados e uma diatribe, algo absurda, contra os «guias turísticos» que deram cabo do planeta. Olhe, Olga, não foram só eles...
António Luís Catarino
quinta-feira, outubro 14, 2021
A desgraça de uma série na RTP2: Trotsky!
segunda-feira, outubro 11, 2021
Penúltimo Outono (3)
Estava cada vez pior. A vida, eu e a carestia. Marcelo apresentava um ricto estranho de desdém na televisão e eu também. Não tinha a boca ao lado, como ele, mas empenhava-me num sobrolho carregado e um esgar fatídico, daqueles que dão tudo para um único objectivo: ao contrário dele, a queda do fascismo. Este facilitava-nos a vida porque não dialogava com ninguém e a guerra continuava nas três frentes da porra africana em que o D. Henrique nos meteu 500 anos antes. Agora morríamos como tordos e perfilava-se a coragem derradeira pela pátria: a fuga para a frente, ou seja, literalmente e depressa para os Pirinéus! Claro que havia histórias horripilantes de gajos enregelados nos Picos da Europa e coisa e tal, alguns presos pela Guardia Civil, entregues à pide e lavados para Penamacor como desertores acompanhados de castigos terríveis em que os obrigavam a subir colinas com pipas de água às costas. Aliás, meio-cheios porque o balanço da carga forçava-os até ao limite da resistência humana. A porrada da pide naqueles tempos já não metia medo a ninguém. Agora era fugir porque já tinha 17 anos e em Novembro daria o meu nome na Junta de Freguesia da Sé Nova e o DRM chamava-me como ginjas. Vais para a tropa, que aqui é que se faz um homem, caraças. Ou queres ser maricas? Não me lembro o que respondia a estas invectivas filosóficas de alto coturno, mas não, não queria ser maricas, mas ser homem ao ponto de levar um tiro na testa, ou ficar ceguinho, ou sem uma perna, talvez o maricas fosse uma opção a considerar, já que os não queriam no exército, a bem dizer. Já na marinha e segundo um poema que eu tinha lido de Cesariny este axioma não era tão provável de ser demonstrado! (...)
segunda-feira, outubro 04, 2021
Penúltimo Outono (2)
Estava determinado. Não sei bem em quê, mas estava determinado. Na Clepsidra encontrava-me com os meus companheiros de luta, os imprescindíveis de que falava Brecht. Tínhamos tarefas no andar de cima que subíamos seriíssimos para ir para o policopiador e abrir o stencil azul, mais a tinta preta necessária e as resmas de papel branco, por vezes azul. Assinávamos como Cpael, acrónimo difícil de verbalizar, mas éramos já conhecidos pela malta do liceu. E provavelmente de outros liceus, porque alguns companheiros menos auspiciosos dos futuros radiosos pediam-nos para irmos lá nós que já estávamos mais «queimados» do que eles, virgens sedutoras da mole liceal por esclarecer gajo por gajo. Para isso estavam lá eles. Cheirou-nos a cobardia, mas as coisas são o que são e a mente humana já nos estava dissecada pelas leituras de Tolstoi, Dostoievsky, Roger Vailland, Aragon, Cholokov e o grande Gorki! Nada de novo, portanto. Tínhamos era de ter cuidado com as unhas. O negro da tinta do stencil entranhado nas unhas podia deitar tudo a perder e a pide sabia abrir-nos as mãos. Havia uma escala: unhas pretas significavam elaboração de stencil e comunicados, coisa não tão grave; já as pontas dos dedos, unhas e palma das mãos pretas era mais grave e significava sem dúvida pichagens nas paredes. (...)
domingo, outubro 03, 2021
Sobre o autor (eu mesmo) de «Abjectos Surreais»
Sobre o
autor: vive agora
em Coimbra, retornado há somente quatro anos. Tendo nascido na Sé Nova, na
Arregaça, onze anos depois do fim dos campos de concentração e cuja proximidade
cronológica com o extermínio em massa nazi o deixa, ainda, perplexo. Nessa altura,
os carros eram quase todos pretos, os caixotes de lixo eram de alumínio e
tinham o nome familiar de «Jacós». Aprendeu a ler, a escrever e não tanto a
contar. Nunca esteve muito tempo no mesmo lugar, acreditando ser um nómada algo
frustrado. Foi sedentário no Porto durante quase vinte anos, não abandonando
igualmente a frustração inerente a essa condição. Fundou e desligou a luz da
Deriva Editores após quinze anos e muitos livros editados. Expôs, em 2018,
também no Liquidâmbar, «Anjos do Desespero» desenhos onde pontificavam os
mensageiros da destruição e do amor entre poetas luminosos, filósofos obscuros
e terroristas dos anos de chumbo.
Consegue alguma paz de espírito desenhando e escrevendo; contudo, uma
inquietação fininha acalenta-lhe esperanças, provavelmente vãs, de que venha a
ser um pessimista cínico, coisa que não consegue por mais que tente. Hoje, com
«Abjectos Surreais» tenta levantar a poeira nas estradas da subversão, do
desejo e da plenitude reparando, tarde demais, que as estradas e as ruas foram,
entretanto, cobertas com alcatrão.
Contacto para aquisição de quadros: abjectossurreais@gmail.com
A base da apresentação que antes de tudo seria um anúncio, mas nem tanto assim foi
Não
se deve misturar surrealismo com academismo. Se o fizerem, o efeito imediato da
cicuta é o menos mau se comparado com a lástima que será a infusão de arsénico
num qualquer chá. O surrealismo foi um meu companheiro de longos anos passados
em cafés, em bares, em sítios improváveis, tomados com estricnina, fumado a
eito e partilhado verso a verso, imagem a imagem em janelas e vitrines chuvosas
ou em verões escaldantes debaixo de figueiras e carvalhos ou, se não atreitos
ao bucolismo (nada tinha de), em esplanadas ventosas com os pés ao alto para
não nos enterrarmos em alcatrão quente. Esse enterro veio mais tarde, já não em
pez, mas em lama algo lodosa.
Aí, nesses lugares probabilíssimos onde vivi com desespero feliz aninhava-me nas margens de rios dourados das fontes de Bagdade, alimentados por chuvas ácidas azuis de Berlim, por espremidas laranjas Vietname, onde peixes-voadores vinham sorver o oxigénio líquido dos hospitais, os salmões subiam pelas nossas coxas e nas paredes das galerias de arte, os cavalos loucos e ciosos galgavam as margens das estepes entre cães desamparados e gatos de olhos rutilantes de ódio cismático. Assim era o surrealismo sentido por mim. Em busca de derivas cadentes e incandescentes de desejo, esquadrinhava as lentes das cidades nocturnas fugindo ao dia que me dilacerava, adorando o sol e a morte que emanava. Os dias passavam-se na cadência de uma camioneta lenta, de um comboio de apeadeiros vazios e de boleias inúteis. As folhas contavam-se pelos livros que guardava e em algumas sentia com prazer estupendo os caracteres de tipos rugosos.
Lido
Helder e Cesariny, Pacheco e Oom, encontrava-os e encontrava-me em sigilo e
cumplicidade. Surrealistas? Alguns nem tanto. Atravessavam-lhes o abjeccionismo.
Surrealistas que não desejavam sê-lo. Abjeccionistas que não pretendiam a
abjecção pela abjecção. Neo-realistas arrependidos, outros arreigados às
comunidades. Os rótulos literários passaram-se para a reforma agrária e para os
apartamentos citadinos. As armas eram reclamadas pelo Mário-Henrique Leiria.
Nunca as usou, porque preocupado com o cão, presumo. Pouco me importaram estas tentativas
de branqueamento capital ou de personagem. Continuava a lê-los como último
recurso para uma vida que se queria vivida rápida e ferozmente, sem
compromissos. Abandonei Deus? É possível, enquanto descobria outros enviados
pelo surrealismo da casa, ainda assim próximo do cânone bretoniano, o tal papa
laico. Sagir ou a deusa-mãe, Ísis e Osíris e a Metaciência de António Maria Lisboa,
Milarepa de Lapa, Varuna de Manuel de Castro, Eros de Dacosta ou os deuses
animistas de Seixas. Ter-lhes-iam sido fiéis estes deuses, estranhamente
subsumidos nos seus pensamentos, nas palavras que diziam não serem sequer
necessárias para ser Poeta? Seria mesmo verosímil a sua busca pelas forças do
Caos em luta milenar contra os céus de mel e prazeres infinitos? A chamada dos deuses
fez-se em vida destas personagens terrenas com Baal em luta contra Enkil,
Varuna observando e incitando a desordem para convocar os deuses da ordem e do
bem. Ter-se-ão dado conta da luta interior convocada por eles? O perigo
iminente que os rondava?
Mais do que construírem as palavras e as imagens sob a batuta ortodoxa da metodologia automatista criaram a possibilidade de edificarem a República de Crianças, aquela que constitui o verdadeiro palco da crueldade, do amor, da verdade e dos jogos de guerra permanentes. Uma entidade indígena que não foi preservada pelos arqueólogos literários do costume, envoltos em cartografias manhosas, criadores de pequenas correntes de ar de que falava Helder, mas sim pela escolha límpida e cúmplice da auto-dissolução, pela vontade plenamente livre dos seus protagonistas.
Todos tiveram vidas trágicas, no sentido mais profundo da tragédia grega. Uma fusão de Diónisos com Afrodite e Eros, os deuses imoladores que menos mentiam e mais sentiam. E a maior parte deles pagaram com a existência em limite constante o desejo violento de uma outra vida. Esta terra não era para eles; demasiado mesquinha, feita de pides e informadores, magalas e marialvas, mulheres escravas e que gostavam de o ser, povo medroso, supersticioso e ritualista que fugia do comunismo e da democracia. Que idolatrava a pobreza e a castidade. Que poderia o poeta ser muito mais do que morrer abjectando tudo e todos? António Maria Lisboa, Manuel de Castro, Manuel de Lima, Pedro Oom, Mário-Henrique Leiria, António José Forte não morreram demasiado cedo. Pura e simplesmente não desapareceram porque não lhes deu para se prostrarem de deferência perante os vivos. Tentaram Paris e Londres, exigiam liberdade que cá não tinham e alguns acabaram a pedir sandes em Montparnasse para não morrer de fome, outros em minas de carvão na Checoslováquia, em navios de cruzeiro ou mercantes, outros adoeceram, enlouqueceram, empregaram-se e remeteram-se ao silêncio ou, pior, saíram de si próprios e não voltaram mais.
Acabado o Prec, a fase mais poética e insurrecional de que o povo português foi capaz (em muito esforço) nos meados do século XX, lá para 77, o surrealismo tornou-se-me mais distante. A provocação e a destruição de uma ordem fascista e abjecta deixou de existir e o sangue parou de correr na saudosa África. Disse o que queria dizer: abjecta. E, já muito antes, dei conta da dicotomia surrealismo/abjeccionismo tão caro aos debates áridos das academias que dizem desprezar trocadilhos nas palavras. Hoje o academismo «estuda», pomposo, o surrealismo rebaixando-o a «movimento» a «grupo» que os próprios rejeitaram.
Portanto, desde 1949, e para quem conhece a história surrealista, deparamos já com dissoluções e combates intestinos. A coisa assim foi até declararem, pela honestidade e frontalidade brutais que lhes são reconhecidas, que não haveria nenhum grupo surrealista, mas sim um conjunto de surrealistas que embora de iniciativas individuais os ligavam um fio de revolta e subversão, iniciado por manifestos comuns na década de 40 e 50.
Seja
como for, devo-lhes a vida. Devo-lhes a palavra, a textura, a cor e o som. Apontaram-me
as armas mais perigosas: as da subversão pelo amor e pela destruição. Não
levantei os braços em rendição. Dispararam. Hoje, acertámos contas. Estamos pagos.
Coimbra, 19 de Setembro de 2021