Foto: Gazeta das Caldas
Paul Celan
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Sei há muito o peso da rotina. Ando encafuado no tráfego e nem a rádio sintonizada numa cassete meticulosa me salva, ando sem esperança a passar os dias, a enchê-los de um pouco, vá lá, de conforto possível, ando, isso mesmo, num andar por andar até que se formem calos na base dos pés e a dor se torne insuportável, ando, isso mesmo, a certificar-me de que os parques públicos respeitem as regras necessárias para que os filhos possam continuar a sorrir e que os rios ainda têm água onde um dia possamos mergulhar. Agora diz-me, que a vida é menos vida do que esta? Uma rotina consciente de si. Por isso, para o próximo Natal peço um ramo de tulipas a desfazer-me as paredes do corpo. Deixa os escorpiões sossegarem no deserto. Mete as tulipas a dançar ao som de um leão em coma. Sem pressa, por favor. Sem pressa. Com o andar vagaroso dos aborígenes.
Henrique Manuel Bento Fialho, «Suicidas», Deriva Editores, 2013, ''Paul Celan'', pág. 81