O livro da Antígona, editado há pouco mais de um mês, apresenta-se como «conversas inéditas com surrealistas portugueses», realizadas por Eduarda Feio e Maria Aurélia Marcelino. Estas «entrevistas» tiveram lugar no ano de 1978 e as autoras eram alunas da ESBAL não conformadas com o ensino conservador que aí então se vivia e que era fruto do salazarismo e, simultaneamente, em profunda convulsão e transformação. Intui-se ao longo do livro que essas mudanças na ESBAL não foram tão profundas quanto necessitavam, mas isso levar-nos-ia a outra conversa.
Os surrealistas nomeados são cinco: Henrique Risques Pereira, Mário-Henrique Leiria, Mário Cesariny (que recusou o encontro), Cruzeiro Seixas, Fernando Alves dos Santos (que não foi encontrado) e Pedro Oom cuja entrevista decorreu numa «conversa com um surrealista morto», ou seja, tendo um carácter esotérico e mediúnico.
Henrique Risques Pereira foi o mais contido, tendo já dado exemplos dessa contenção em outras publicações. Pouco diz e o que diz não esclarece, nem clarifica. A conversa com Cruzeiro Seixas é um resumo, visto que as autoras não a gravaram, tendo somente tomado notas que as editaram sem tratamento posterior. Já com Fernando Alves dos Santos limitam-se a dar-nos provas que estiveram no seu encalço a partir de informações dadas por Henrique Risques Pereira ou Cruzeiro Seixas, sem que o tivessem encontrado no Algarve segundo era a sua convicção. A «conversa» com Pedro Oom limita-se a um sessão quase de mesa pé de galo, em que tentam reconstruir impressões surrealistas ao poeta que morreu de comoção após o 25 de Abril de 1974. Pessoalmente, acho a experiência demasiado pueril.
A coisa muda de figura com Mário-Henrique Leiria que é de uma loquacidade invulgar para quem sempre se escusou a dar entrevistas públicas. Solta-se completamente com as autoras. Só por isso vale a pena ter o livro em mãos. Reparem no que ele afirma:
«Isto de dizer pintura surrealista, ou literatura surrealista, não há, pá. Há gajos surrealistas que fazem pintura, que escrevem, e de vez em quando extravasam tudo o que têm de extravasar, e catrapuz, deitam cá para fora, sai na pintura, sai na literatura, sai no que eles fazem, sai nos actos de vida até, o chamado processo do acto falhado. Nós tínhamos muito esse processo. O acto falhado. Sai cá para fora. É uma revolta. Quanto a mim, é uma posição de revolta perante a sociedade que nos rodeia. Agora surrealismo, surrealismo, é muito difícil dizer o que é o surrealismo. Para mim, não sou capaz.» (pág.33)
E mais à frente:
«Vivência poética? Sempre a tenho feito...ainda hoje. Poeta, quer dizer, dentro de uma forma de viver poeticamente.(...)» (pág. 51)
Um caso sério este Mário-Henrique Leiria. Um livro a ter.
António Luís Catarino