quarta-feira, dezembro 08, 2021

A Sociedade contra o Estado, de Pierre Clastres

 

A 1ª edição da Afrontamento de «A Sociedade contra o Estado», de Pierre Clastres, andou na minha mão logo que saiu em 1979. A edição em França foi em 1974 sendo a tradução portuguesa de Bernardo Frey com revisão de Miguel Serras Pereira. Esta nova edição da Antígona tem a tradução de Manuel de Freitas e não estou apto a ajuizar se é melhor ou pior, até porque já não disponho da primeira. Mas parece-me fiel ao autor que morreu demasiado cedo, vivendo e conhecendo bem comunidades primitivas dos tupi-guarani, dos ianomani, dos nómadas do Chaco argentino ou dos ameríndios do norte. É portanto um observador privilegiado, crítico e rigoroso destes povos.

Livro notável este que releio com o gosto igual à primeira vez que abri as suas páginas há dezenas de anos. Nessa ocasião, acreditava num Estado do Bem, por assim dizer, a utopia de jovens onde cabia toda a felicidade da Terra. Hoje, sendo eu mais aberto a soluções sociais libertárias e radicalmente comuns, quer pela crise ambiental e capitalista, quer pela especulação do sistema económico e político actual, e não só do seu sub-sistema capitalista como querem alguns que, envergonhadamente, o querem salvar, leio este livro com outros olhos. Vejo-o literalmente como uma saída social baseada na economia de «subsistência» e na recusa de excedentes, recusando igualmente o poder político sendo ele despótico ou afirmando-se na sua falsa negativa. É uma lição que nos dão as comunidades índias e que devemos seguir com muita atenção com as edições verdadeiramente alternativas de uma antropologia livre de preconceitos etnocênticos.

Pierre Clastres não nos mostra sociedades primitivas baseadas no bom selvagem de Rousseau, ou num eventual paraíso perdido, cujo desaparecimento é a causa da infelicidade actual e dos séculos que a antecederam. Prefere analisar as sociedades selvagens (em Clastres o termo «selvagens» nada tem de pejorativo) como comunidades sem poder coercivo, não isentas de política existente em conselhos, com uma economia de subsistência rica e abundante, sejam as comunidades nómadas ou sedentárias, baseadas na recolecção e recusando o excedente que obrigasse a mais horas de trabalho; estas comunidades bem estruturadas e com uma unidade espiritual forte, recusa a chefia a todo o custo, isto é, havendo um chefe nominal, ele não representa mais do que a representação da comunidade, abafando conflitos latentes, organizando a guerra e a defesa, mas que a todo o momento pode ser substituído se os seus interesses ultrapassarem os da comunidade, geralmente não muito grande em termos demográficos. 

Ou seja, Pierre Clastres apresenta-nos um ponto de vista crítico relativamente à antropologia etnocêntrica, à sociedade capitalista baseada no trabalho alienante, à História que pretende absolver os crimes perpetrados pelos colonizadores (diminuindo por exemplo os números astronómicos do massacre dos ameríndios, falseando uma densidade populacional impossível de existir no século XV, e que se traduzem pelo desaparecimento de dezenas, se não centenas, de milhões de indivíduos e da destruição massiva de grande parte da sua cultura), mas igualmente às próprias sociedades primitivas dividindo-as naquelas que aceitaram o Estado transformado em poder coercivo, como os Incas e os Astecas, e os que o desprezavam como os Tupi, os Guarani, os Ianomani ou os Apaches. Também se afasta, por anacrónica, das teses benévolas e até certo ponto ingénuas, dos trabalhos de Morgan, Engels e até de Lévi-Strauss. Aproxima-se mais de um Shallins ou de uma nova antropologia. Mas Pierre Clastres é só ele e isso tem de ser sublinhado. Não sendo um seguidor acrítico criou um método de estudo entretanto seguido por muitos.

O livro não é evidentemente só isto. Mas deixo-vos um pequeno trecho da «Sociedade contra o Estado» de Pierre Clastres: «...as sociedades primitivas não são o embrião retardatário das sociedades ulteriores, dos corpos sociais com desenvolvimento «normal» interrompido por qualquer doença bizarra, elas não se encontram no ponto de partida de uma lógica histórica que conduz directamente ao termo previamente escrito, mas conhecido apenas a posteriori, o nosso próprio sistema social. (Se a história fosse esta lógica, como poderiam existir ainda sociedades primitivas?) Tudo isto se traduz, no plano da vida económica, pela recusa das sociedades primitivas em deixarem que o trabalho e a produção as devorem, pela decisão de limitar as provisões às necessidades sociopolíticas, pela impossibilidade intrínseca da concorrência - de que serviria, numa sociedade primitiva, ser rico entre pobres? -, numa palavra,pela proibição, não formulada mas dita, da desigualdade.

»O que faz a economia, numa sociedade primitiva, não ser política? Isso deve-se, de modo evidente, ao facto de a economia não funcionar aí de maneira autónoma. Pode-se dizer que, nesse sentido as sociedades primitivas são sociedades sem economia por recusa da economia. Devemos então determinar também como ausente o ser do político nessas sociedades? Teremos de admitir que, visto tratar-se de sociedades «sem lei nem rei» [como afirmavam os primeiros europeus], o campo do político está ausente delas? E não recairíamos nós assim no trilho clássico de um etnocentrismo para o qual a falta caracteriza, a todos os níveis, as sociedades diferentes?»

Tentando responder a uma questão extremamente complexa na análise das sociedades primitivas sem Estado, nada impede que a falta dele e da economia excedentária, possa igualmente impedir a existência de política, como forma de auto-organização ou de controlo dos chefes e dos xamãs. 

Edição da Antígona, 2018.

António Luís Catarino