Hoje será preciso alguma dose de coragem para ler um livro cuja capa tenha o nome de Auschwitz, tal a imensa bibliografia (?) com este nome gerada pelo comércio livreiro a que não escapa sequer o baratinho e promocional «Pack Auschwitz». Ler Primo Levi devia ser um exercício obrigatório a quem se lance a adquirir a mercadoria abjecta do filão «holocausto». Não que seja um escritor de primeira linha, longe disso, mas é de uma grande objectividade e não rodeia questões, como se as houvesse!, perante o horror programado dos nazis. Este «Auschwitz, cidade tranquila» vale não só pelo seu título sardónico; conta-nos histórias e pequenos contos do tristemente célebre Lager alemão. Lembremo-nos que Levi foi encarcerado pela Gestapo em 1943 na Itália donde era natural e não por ser judeu. Era resistente ao fascismo e só mais tarde, depois de apurada a sua ascendência judaica, é que terá seguido para o campo da morte. Só que era igualmente um químico de renome e talvez tenha sido essa a razão de ter sobrevivido, embora não haja certeza absoluta desse facto. Muitos outros químicos que pertenciam ao «Komando» químico do campo soçobraram de frio, de fome ou na marcha forçada aquando da queda do campo devido ao avanço russo. Essa marcha forçada de prisioneiros escravos até Birkenau é dos momentos mais horríveis de que há memória na história da II Guerra Mundial. Só um quarto, como nos diz Levi, lá chegou. O autor encontrava-se entre os sobreviventes. Isto foi em Janeiro de 1945. A libertação total do campo pelos soviéticos e a morte de Hitler foi em Maio.
Fixei, contudo, um pequeno conto de Levi que sintetiza bem a mentalidade de um jovem casal nazi alemão, em 1943. Ele químico, ela não sei, o autor não diz. O jovem Mertens teme os bombardeamentos aliados e prefere uma zona mais tranquila já que quer construir família e ganhar algum dinheiro. Os amigos berlinenses tentam demovê-lo; que não, a vida no campo rural é um rame-rame, há os aldeãos, terão de habituar-se a ritmos diferentes, eles que são citadinos. No entanto, Mertens está decidido e pede a transferência para a fábrica química de Buna-Werke na Polónia, agora Alemanha: ganha-se bem, não há bombardeamentos, a guerra decorre lá longe e terá oportunidades para subir mais depressa. Mertens e a agora mulher instalam-se na cidadezinha com o nome polaco de Oswiecim, em que muitas casas bonitas se encontravam vazias e à espera de ocupação. Nem isso o fez perguntar porquê. Na fábrica onde subiu rapidamente a Oberingenieur, tinha como trabalhadores uns tipos esqueléticos, medrosos, de olhar baixo, tremendo de frio e fome, que vestiam uns pijamas azuis às riscas. O nosso Mertens nada perguntou. Um deles era Primo Levi e trocou com ele duas ou três frases. Numa ocasião, pediu que lhe dessem sapatos mais quentes e um casaco. Depois vieram os russos e Mertens nunca mais foi visto até aos anos 60, em que o acaso de uma troca de correspondência entre fábricas químicas devido a um erro de uma encomenda, Levi se cruza com Mertens. Era ele. A troca de cartas é demolidora para qualquer um de nós, em que ainda reste alguma sensibilidade: à pergunta lógica de Levi sobre o que ele pensava do seu papel no genocídio, respondia que não, nunca deu por isso no campo de morte, nunca viu morrer ninguém, que seria punido se tal viesse a ser comentado, então sabia ou não?, não!, falava-se mas nada de provas. Dedicou-se ao trabalho e nada mais, e que se lembrava dos sapatos e do casaco, sim, enfatizando claramente o facto, como um lampejo de arrependimento. Como bom alemão, obediente e escrupuloso, burocrata, nada sabia, nada viu, nada comentava. O nome da cidadezinha polaca que agora era alemã tomou o nome de Auschwitz, em vez de Oswiecim. Mas ele não sabia de nada, claro. Morreu pouco depois desta troca de correspondência.