«Bach» provoca-nos em direcção à música. Cada capítulo tem uma referência clara a um trecho do músico. Cantatas ou sonatas, acho dificílimo que a curiosidade nos deixe só com as palavras perante os convites, explícitos ou implícitos, que nos são dirigidos para escutar ou seguir de maneiras diversas as propostas de Pedro Eiras.
O livro inicia-se com uma carta de ''Anna Magdalena Bach'' a Frederik da Prússia que, sem perder a sua dignidade, pede que lhe seja dada, e às suas filhas do segundo casamento do músico, a vida que merecem. Não se poderá entender esta epístola sem ler atentamente o segundo capítulo ''Esther Meynell'' onde Pedro Eiras se confronta com a pesquisa (quase frustrante) que o levou a Bach; aí, lê-se: «Tentei, uma vez: alguns fragmentos, breves trechos para explicar como ouvia a música de Bach. Desisti; lembro-me de escrever uma carta a um amigo, a contar o impasse, a impossibilidade. Alguns anos passaram. Tentei novamente: um caderno crescia, entre leituras, experiências. Mas para onde, para que Bach - histórico, pessoal, real ou imaginário -, como dizer a música? Novo impasse. Descobria dolorosamente as fronteiras da linguagem; que nem sempre ela serve; que é preciso não pedir o impossível. E ninguém pode escrever um texto cujo tempo ainda não chegou. Mas nunca se sabe quando esse tempo chega. Escreve-se na ignorância, na escuridão.» (pág.31). É precisamente nesta confissão que o leitor terá de estar preparado para a beleza experimental de «Bach», de Pedro Eiras. Tudo, neste livro notável, tem um sentido; até no seguimento da procura de um silêncio de John Cage ou do ruído libertador da rua em ''Jean-Marie Straub e Danièle Huillet'' no Maio de 68 francês. Ou pretender, no capítulo referente a Leibniz, ouvir «o som infinitesimal de um floco de neve.»
A epistolografia é retomada em ''Gustav Leonhardt'' e nota-se a tentativa de causar uma ruptura com o romantismo com que alguns quiseram ligar Bach: «Não sei se concorda comigo Nikolaus, mas sinto que hoje se pensa um Bach devedor de Haydn e Mozart, de Mendelssohn e Brahms, um Bach que precisasse de ser corrigido à luz dos compositores seguintes. Por mim, não leio Bach à luz dos classicismos e romantismos posteriores, mas como o auge de uma tradição anterior: Frescobaldi, Pachelbel, Reincken, Buxtehude. (...) Os pianos são feitos para cantar, e a música de Bach exige um instrumento capaz de falar. Não importa uma longa melodia colorida, mas a articulação clara dos motivos. Como se o cravo pudesse apresentar o pensamento.» (pág.52) E essa separação do romântico continua em ''Glenn Gould». Uma construção de um tríptico verdadeiramente inquietante é realizada com Llansol, quando Pedro Eiras coloca em diálogo a poeta, Pessoa e Bach, repartindo com Llansol a dificuldade em escrever sobre um músico e a partir de Lisboaleipzig (Leipzig a cidade de Bach).
Há momentos de uma grande exigência para o leitor deste livro, como quando se depara com «Ich Habe Genug...» que traduzido significa «tenho o suficiente». Se é afirmado que a música de Bach é um quinto evangelho e se se apresentam os salmos atribuídos a David como salvíficos e de cantos de louvor (também de ira e de fúria) tentando escutar a música dos confins dos tempos através da panóplia de instrumentos e versos, ficamos com a proposta provocadora de seis páginas em branco, somente com a anotação musical da cantata BWV 82. Ficamos a perceber porquê se a ouvirmos com atenção. No final, elas serão preenchidas.
Os capítulos mais belos do livro, ''Martin Luther'' liga-se estranhamente com o último: ''2002''. Essa ligação é avassaladora se conseguirmos sentir, através, da leitura que nos dá Pedro Eiras a respiração suave que emana de um amor de uma filha para com um pai. Fazer isto em literatura não é para qualquer um. Pedro Eiras conseguiu-o plenamente.
António Luís Catarino