quinta-feira, dezembro 23, 2021

Os Salmos. Uma visão de Timothy Radcliffe


Sempre tive uma verdadeira adesão emocional aos Salmos. Razão pela qual me obrigo não só a ouvi-los presencialmente ou, na falta, a ouvi-los em cd. Para ser mais sincero: a música dita religiosa provoca-me sensações estranhas, quer de enlevo, quer de inquietação. Seja como for, detenho-me a ler tudo o que me chega às mãos sobre salmos. O que acontece, por vezes, é que não valerá a pena comprar livros ou publicações sobre este tema; ou porque são muito académicos e ninguém compreende nada ou porque são demasiado teológicos e nada ganhamos. Não ouvimos salmos para saber teologia. Muitas ocasiões encontramos descrições e considerações importantíssimas onde menos esperamos. Aconteceu isso lendo Timothy Radcliffe em «Arte de Viver em Deus» já aqui referido.

O autor é defensor de um verdadeiro renascimento do que chama «imaginação cristã» como forma contracultural de lutar contra a banalidade do quotidiano. O ruído está em todo o lado: nos correios electrónicos, na rua, nos cafés, nos parques, nas praias, nas faculdades. A televisão e o computador obrigam-nos a horas de trabalho com que paradoxalmente nos libertamos com mais horas jogando e vendo filmes...no computador! Vejamos este trecho:

«O modo tradicional como os cristãos resistiram ao impulso gravitacional da banalidade foi reservar momentos de cada dia para recitar ou cantar poesia. Durante dois milénios, a Igreja manteve viva a sua imaginação contracultural, mediante cantos e poemas, em especial aqueles poemas indomáveis por vezes beligerantes e, amiúde, belos, os Salmos. Eles arrancam-nos do modo banal e utilitário de ver as nossas vidas. Os membros das ordens religiosas reúnem-se várias vezes por dia para cantar cânticos que nos sacodem do senso comum da nossa sociedade. Milhões de leigos rezam o breviário connosco ou sozinhos. O canto dos Salmos foi vital para os nossos antepassados, quando a nossa fé era ainda mais contracultural. (...) Embora os Salmos estejam repletos de cólera e desespero, terminam sempre, excepto um, com uma nota de esperança e louvor. Expressam raiva de uma forma muito real. Quando sofremos, talvez estejamos enfurecidos com Deus. (...) As palavras do Salmo exprimem essa raiva, abraça-a para que não fiquemos isolados, porque as palavras são partilhadas por cristãos e judeus, em todo o mundo e ao longo dos tempos. Não estamos sós na nossa fúria.»