Uma das mais lúcidas análises sobre o capitalismo em estado de confinamento. Aliás, Anselm Jappe, que prefacia esta edição portuguesa da Antígona, já nos tinha habituado à crítica do valor (ou da tradicional ''mais-valia'' marxista) e do modo de produção como base de toda a crítica que quer realmente transformar o mundo. Daí, este livro não ser condescendente com as esquerdas altermundistas e altercapitalistas que não se acantonam na luta contra o fétiche das mercadorias, do trabalho e da vida quotidiana transformada em sobrevivência cada vez mais impossível de atingir nesta fase do capitalismo. Quando massas imensas da população mundial são tornadas supérfluas e aquelas que ainda não o são vêem a sua condição cada vez mais depauperada, só podemos esperar o pior nesta fase do capitalismo, ele próprio sobrevivente das bolhas especulativas que vai criando de crise em crise.
Os autores de «Capitalismo de Quarentena» partem de um pressuposto logo no Capítulo I »Crise e Crítica»: «A pandemia de covid-19 é o acelerador, mas não a causa, do agravamento da situação de crise global da sociedade capitalista mundial. Este novo acesso de crise económica global, ligado à pandemia, não aparece no céu sereno de um capitalismo em boa forma. É preciso, portanto, tentar compreender o vínculo entre a situação actual e o esgotamento estrutural do capitalismo, iniciado nos anos 1960, e que foi elucidado pela teoria crítica do valor. O conjunto do processo de crise fundamental, que abarca a crise da forma-sujeito moderna e as suas ideologias de exclusão (racismo, anti-semitismo, anticiganismo, populismo produtivo neo-nacionalista, darwinismo social, etc.), deve ser o ponto de partida da análise e da reflexão sobre a crise do coronavírus e das intervenções estatais correlatas.» (pág.17)
Após, em capítulos seguintes identificar, com dados concretos, a dicotomia Estado-Economia como sendo fortemente complementares e não inimigos ou de alguma forma incompatíveis, os autores desmontam a teoria da primazia do Estado sobre a Economia que a pandemia provocou. Nada mais falso, visto que o Estado visou fortemente o evitar da derrocada económica com o aumento vertiginoso e estratosférico das dívidas públicas soberanas. Onde se vê isso? Na verdadeira nacionalização, pelo Estado, dos lucros das empresas e dos salários dos seus trabalhadores, não permitindo as falências e o desemprego explosivo. Só que isto tem um fim, um limite que Marx e Debord previram com uma actualidade que nos faz admirar ainda hoje. O mundo invertido que nos falava Guy Debord, nos finais dos anos 60, vêmo-lo hoje quando neoliberais são neo-nacionalistas, ou quando a extrema-direita luta contra o estado de excepção, proclamando a liberdade! Pior é quando a esquerda quer atingir um outro mundo possível, sem pôr em causa o valor, a mercadoria e a produção, propondo um «decrescimento» em moldes de produção capitalista. Mais verde, menos produção, menos crescimento nada vale se o sistema de lucro não for realmente travado e destruído.
Mas o confinamento trouxe com ele um fenómeno já em desenvolvimento desde os anos 70. O da quarta revolução industrial electrónica com adesão clara do espectáculo. O ecrã como alfa e ómega de uma nova «distopia» já em curso. Agora, é o teletrabalho que surge como a separação última do ser humano enquanto ser social, com as consequências que podemos adivinhar na saúde, na educação, no trabalho, na habitação (a casa como local de trabalho), na estrutura do núcleo familiar, na condição da mulher, na hostilização do estrangeiro e do não-vacinado ou do doente e dos velhos.
Os autores e Anselm Jappe em particular não encontram razões para estarem optimistas: «Os fanáticos do crescimento económico deverão conseguir mobilizar parte da população a seu favor, e o espírito do curto prazo ainda pode ter longa duração.» (pág.120) Com propostas políticas cada vez mais delirantes e perigosas a serem aceites pela população.
António Luís Catarino