domingo, novembro 14, 2021

«O Mito da Razão», de Georges Lapierre

Num momento em que a Conferência de Glasgow se transformou numa palhaçada trágica, chegando-se a propor não fazer mais nenhuma tal a dimensão do seu fracasso, surge-nos, pelas edições «Flauta de Luz» (sim, a da revista homónima) este importantíssimo trabalho de Georges Lapierre sobre o mito da razão. Aliás, ele afirma que o título deveria ser «O Mito do aparecimento da Razão». Deve referir-se igualmente a excelência da tradução de Ana Marques cujo trabalho não foi nada fácil visto que, sendo a linguagem ocidental uma forma de poder, de troca mercantil e de domínio, não se compagina muito bem com povos indígenas cuja linguagem é total, una de sentido e tem o gérmen perigoso da reciprocidade e da dádiva. 

Um exemplo dessa dificuldade de tradução vem logo com uma frase da comandanta (assim mesmo, comandanta) zapatista Ana María que no Encontro mundial zapatista de 1996 e em língua tojolabal brindou os presentes algo confusos com esta frase «Atrás estamos vocês»! É evidente que não tem tradução para nós ocidentais; aqui, nesta pequena frase de Ana María encontramos toda a subtilidade de um pensamento único, indígena. Aquele pensamento da unidade que não reconhece a natureza ou cultura porque o homem e a mulher são partes dessa realidade juntamente com o outro. É uma outra cosmogonia, uma mundividência que produz um modo de pensamento realmente recíproco.

O autor está empenhado na luta zapatista que conhece como poucos. Mas desenganem-se os militantes do logro da integração indígena, cujo pensamento nada tem a ver com a razão (aqui talvez com R maísculo tipo Kant ou Descartes) ocidental. Esta última terá nascido na Grécia Clássica e terá trazido consigo a escravatura, o dinheiro, a troca de mercadorias, a desigualdade de género e o afastamento político dos estrangeiros (os barbaroi), que predomina até hoje. Não é necessário partir a cabeça para saber que a Grécia e Roma foram sempre tidas como exemplos a seguir por todos os tiranos e «democratas», como se não houvesse outras alternativas. A escola e a empresa sabem reproduzir, juntamente com o viscoso «bom senso» a ideia base da razão filosófica ocidental que separou o indivíduo da natureza e da cultura. Para haver ligação entre este elementos, ténue que fosse, seria sempre preciso uma «religio», um mediador que tomou várias formas, principalmente o protestantismo do século XVI até hoje e que legitimou o lucro.

Uma das questões mais interessantes do livro de Lapierre é saber por que razão houve uma «paragem» ou «estagnação» do pensamento entre o período do Paleolítico Superior e do Neolítico até ao Crescente Fértil do Próximo Oriente quando a agricultura tomou a forma de acumulação excedentária mercantil. Desde Lévi-Strauss, passando por Vidal-Naquet, e com eles quase todos os académicos, fogem a esta questão. Dezenas de milhar de anos cujo pensamento estagnou na humanidade? Ora, a resposta de Lapierre é consentânea com a de John Zerzan em «Futuro Primitivo», editado pela Deriva. As comunidades humanas primitivas não viam vantagem nenhuma em transformar o seu modo de pensamento e igualmente de «produção» para se entregar à escravidão. Ou seja, da recolecção e da agricultura dita de subsistência para a troca de produtos transformados em valor. Porque o fariam? Não fosse a nova vaga de antropólogos onde se encontra Lapierre, e este na senda de um Pierre Clastres e de um Marshall Shalins («Idade da Pedra, idade da abundância») ainda hoje estaríamos a navegar pelas águas dos arautos da civilização e da razão.

Um livro a ler com a urgência. Urgência essa que não têm de modo algum aqueles que vêem com um sorriso nos lábios a Terra a deteriorar-se sem que levantem um dedo ou que recusem a revolta. Pior, que menosprezem e que denigrem os que lutam. As ditas elites que nos comandam já sabem onde podem colocar as bolhas de oxigénio em redor das suas casas e bairros, pagos por aqueles que sufocam com o ar que já respiram.

Em Glasgow, o tristíssimo documento que conseguiram publicar, mostra bem a indigência intelectual dos seus assinantes; mas é igualmente arrogante ao pretender «preservar a cultura indígena»!! Quando é exactamente o contrário de que se trata. Só nos salvaremos se os compreendermos em todo o seu pensamento racional tão subtil, como intrincado na totalidade da relação humana.

António Luís Catarino