Pela segunda vez, no espaço de duas semanas apenas, vejo-me a ler mais um livro titulado de «Betão»! Não sei se é mau ou bom sinal, mas tanto me importa. O primeiro «Betão», de Anselm Jappe, como é evidente para quem o conhece, nada tem a ver com este de Thomas Bernhard. Este último, situa-se numa espécie de tragicomédia, onde se instala a procrastinação, a doença, a depressão, os terrores do mundo pequeno que envolvem a personagem, Rudolfo, um escritor que se prepara há dez anos para escrever a primeira frase de um romance sobre Mendelsshon. Odiando a irmã com quem por vezes vive, não consegue, contudo, deixar de estar com ela, mas, quando está. espera ansiosamente que se vá embora. As duas situações impedem-no de criar ou começar o tal romance, que não é um romance, nem um conto, ou um ensaio de música embora trate de música!
É provável que se veja aqui a influência de Kafka, mas eu lembrei-me várias vezes de Bartleby, de Melville, e daquele seu icónico «I prefer not to». Gostei de ler Thomas Bernhard mesmo um livro sem qualquer parágrafo. Daí o ter lido logo de seguida? Numa só noite? Pese embora (ironia minha aplicada ao betão, mesmo que a ironia tenha falhado pela necessidade de explicação) a torrente de pensamentos do autor, concorde-se com ele ou não (com a personagem, bem-entendido) sobre a raiva a Viena, cidade que eu gosto muito, ele não deixa de ser um excelente autor que tem uma visão muito particular sobre o Outro:
«Por um lado, sobrestimamos o outro, por outro, menosprezamo-lo e estamos sempre a sobrestimarmo-nos e a menosprezarmo-nos, e quando nos deveríamos sobrestimar, menosprezamo-nos, tal como nos deveríamos menosprezar quando nos sobrestimamos. E, de facto, sobrestimamos todo o tempo, principalmente o que projetamos fazer porque, na verdade, cada trabalho do espírito é, como qualquer outro trabalho, sobrevalorizado em exagero e não há no mundo nenhum trabalho do espírito a que este mundo sobrevalorizado não pudesse renunciar, tal como não há ninguém, nenhum espírito, a que não se devesse renunciar neste mundo; aliás, a tudo se deveria renunciar caso tivéssemos força e coragem para isso. (pág.29)»
Rudolfo, que está há dez anos para iniciar a primeira frase de um livro sobre Mendelsshon não gosta de lugares que não seja a sua casa na aldeia de Peiskham, na Áustria. Abre uma exceção para Sintra e Palma. Quando diz que vai por quatro meses, ao terceiro dia já se encontra na sua casa aquecida (não muito) e no seu escritório em pânico com uma possível chegada da irmã e dos seus convidados, todos ricos, negociantes e filantrópicos. Como neste estado não consegue escrever assim, vai pensando «As pessoas que dizem constantemente que estão prontas para todos os sacrifícios e que constantemente sacrificam tudo, em última análise até as suas próprias vidas, etc, esses santos que, para se sacrificarem e por espírito de sacrifício, se empurram uns aos outros como os porcos diante da selha, existem em todos os países e continentes, podem ter todos os nomes possíveis e imagináveis, podem-se chamar Albert Schweitzer ou Madre Teresa, essas pessoas repugnam-me profundamente. (pág.39)».
Por vezes, penso que um homem como Bernhard que teve uma infância difícil, tratado como ilegítimo, traumatizado pela morte precoce da mãe, vivendo com os avós que, com dificuldade, lhe deram uma educação musical e cultural sólida, pela estadia traumatizante num colégio nacional-socialista que rejeitou e a tuberculose séria que o acompanhou desde 1944, moldaram-lhe a maneira de ser e de escrever. É óbvio. Tal como é evidente a sua relação com a Áustria a quem nunca perdoou a sua aventura nazi e que continuava com um antisemitismo larvar. Por causa disso proibiu que muitas das suas peças tivessem palco em território austríaco! Contudo, premiado e reconhecido ao contrário de uma Nobel, nem citada na wikypedia junto com outros, Elfriede Jielinek! Que estranho país que trata assim os seus escritores. Morreu em 1989.
Editora Minotauro. Tradução de Maria Olema Malheiro. Edição original de 1982, ed, portuguesa 2019. Foto da Campo das Letras.