quinta-feira, janeiro 19, 2023

«Vida a Crédito - arte contemporânea e capitalismo financeiro», Tomás Maia

 

Este é um dos livros mais estimulantes sobre a filosofia da arte contemporânea que foram editados em Portugal nos últimos anos. Tomás Maia, professor das Belas-Artes de Lisboa, consegue aqui uma síntese notável sobre a ligação da chamada «arte contemporânea» com o capitalismo financeiro. Livro algo denso, mas inevitável na utilização de uma linguagem complexa se o objetivo era o rigor de análise que é empreendido pelo autor. Conseguiu-o plenamente. A obra está dividida em quatro capítulos, sendo o primeiro e o último dedicados propriamente à «arte» ou ao que é considerado arte, hoje. Os capítulos dois e três dedicam-se ao valor das mercadorias e o papel do sujeito como produtor e detentor da força de trabalho, utilizando o papel do uso e da troca marxiana, superando inclusive as teorias de Marx com a referência a Debord, Jappe, Kurz entre outros e não deixando de notar a influência de Hegel, Feurbach ou mesmo Kant que precederam Marx. Mas é Adorno (iniciador do conceito de «indústrias culturais») e Walter Benjamim que no capítulo I são motivo de análise mais pormenorizada de Tomás Maia. Ultrapassando em parte a velha questão do «fim da arte» foca-se essencialmente na tentativa de responder ao subtítulo da obra: há ou não uma relação entre a arte e o capitalismo financeiro? A resposta é claramente um «sim». E os exemplos são vários que concretiza sobre esta relação íntima principalmente no capítulo IV.

Fazer uma síntese de uma síntese para uma ficha de leitura é sempre um exercício difícil mas, vejamos: Marx, em «O Capital» já adjetiva a mercadoria como fétiche, embora Anselm Jappe e, antes dele, Kurz do Grupo Krisis, tenha aprofundado o fetichismo da mercadoria como sendo o valor real do capitalismo. Assim a fórmula M-D-M, (mercadoria - dinheiro - mercadoria) seria a base do valor de troca dessas mesmas mercadorias que, aniquilando o seu valor de uso, torna-se mais-valia ou lucro para o detentor dos meios de produção. O capital financeiro que exige lucro infinito transforma-o mais tarde na fórmula D-M-D' que não só traduz a acumulação de dinheiro como o multiplica, tornando a mercadoria um mero instrumento que se esgota em si próprio. Assim, Tomás Maia descreve que o capitalismo financeiro tem agora um objetivo claro: o de tornar a mercadoria obsoleta ou inútil, baseando a sua ação num crédito infinito, ou seja, uma crença que o abraça numa religião cuja base se encontra no cristianismo, incluindo a transubstanciação do dinheiro. Deus, que exige de nós a dívida do perdão e do arrependimento, transforma-se em capital. Melhor: em capital acumulado indefinidamente, volátil, também ele imortal, em dívida permanente para qualquer crente/consumidor, portanto devedor eterno (a «Vida a Crédito»). Portanto, perante a vida a crédito e crescente acumulação que só terminará com a morte do capitalismo (senão mesmo do planeta se não o pararmos) a fórmula será D-D'. É aqui que a chamada arte contemporânea se revê.

Se na tradição da arte ocidental a arte obedece à sequência O-S-O' em que O é o primeiro objeto, S o sujeito-artista e O' o segundo objeto, no plano da «arte» contemporânea se até meados do século XX ainda poderíamos, segundo Maia, identificar o sujeito e a obra (mercadoria) nessa fórmula, hoje encontramos o S-S' não sendo necessária qualquer obra que sustente enormes transações o que determina uma verdadeira contrafação no plano da arte.

Este tipo de «arte» já denunciada por Boris Groys, Ferrari, Berger e outros que Maia cita, mesmo sem concordar totalmente com o primeiro, é acompanhada por um discurso sofisticado, falho de qualquer lógica filosófica, apresentado por curadores (é aqui que ele se afasta de Groys que reconhece o curador como o artista de hoje que nada «explica», não escreve, apresenta instalações onde parodia ou «ironiza» a sociedade, sem mais comprometimentos), folhas de sala salpicadas de palavras que nada dizem (a «falsa doxa» com um discurso aparentemente filosófico mas seu inimigo, que Sousa Dias já desconstruiu em obras editadas e referido igualmente por Maia), museus privados e públicos, fundações que se multiplicam, leiloeiras, marcas de luxo, críticos de arte, colecionadores, administradores de empresas, colaboradores e assistentes proletarizados por «artistas» de obras monumentais de volumetrias estapafúrdias (não sei bem porquê mas lembrei-me de Joana Vasconcelos!), guias e intérpretes mal pagos mas que tentam «interpretar» o artista, etc...etc...

Hoje, a arte contemporânea vale mais que a Bolsa de Valores a nível mundial e Tomás Maia não só dá números, como explica que a tendência é a de aumentar, embora os colecionadores mais ingénuos (digo eu) exijam cada vez mais um mercado regulador do valor das «obras» que aparecem no mercado com cotações absurdas que ninguém sabe de onde aparecem. Aqui não há CMVM's que lhes valha... Basta dizer que em 17 anos o valor do mercado da arte aumento 1400% tendo uma taxa de retorno atual de 7,6% (chega a 12/15% para obras acima dos 100 mil dólares) quando as taxas de juro eram quase negativas! As fórmulas apresentadas anteriormente já deixaram pois de ter sentido pela ausência da própria obra. Só o sujeito-«artista», narcisista portanto, é que vale pelo seu marketing próprio ou na sua posição num ranking mundial. Hoje vende-se por milhões de dólares obras «imateriais», i.e. que não existem de todo. Não resisto a um exemplo que Tomás Maia nos dá: «(...) o The Fine Art Group - um notório fundo privado de investimento em arte - comprou uma obra que ainda não existia. Mais: quando a revendeu com um lucro de 40%, [permaneceu] inexistente a mesma obra (...) e não sendo revelado o nome do «artista» (pág.216)». A arte NTF (non-fungible token) é igualmente significativa da especulação e tende a aumentar; um simples ficheiro jpeg, que reproduziu banalmente milhares de posts, foi vendido como sendo a terceira «obra» mais cara de sempre em leilão, por um «artista» ainda vivo. Não se disse quem era. Mas perante a desmaterialização da arte ou a inexistência da obra, vende o sujeito-artista á simples fórmula marxiana (não marxista que Maia felizmente não utiliza) de S-S'! O artista vende o artista! A obra (mercadoria) já não é necessária.

Concluo tendo em conta o que Tomás Maia refere na página 156 e que me parece importante trazê-la aqui, tentando com isto aclarar um pouco melhor o título do livro, embora saiba de antemão que só o lendo todo e fazendo as necessárias conexões entre os capítulos se consegue ter a visão completa da obra e do pensamento do autor:
«(...) Em toda a parte, desde que há capitalismo, a humanidade submeteu-se ao trabalho a crédito; e, desde que a finança capitalista impera globalmente, a humanidade submeteu-se à vida a crédito. O crédito - doravante co-extensivo à totalidade da vida humana, e doravante decisivo para a reprodução do capital - é então a figura depurada da expropriação do tempo (do devedor) e da apropriação do tempo (pelo credor): a forma final de ucronia, ela própria pensada como finalidade da metafísica (parousia ou fim do Tempo). No capitalismo e, mais particularmente, insisto, no capitalismo financeiro, culmina a metafísica ocidental enquanto ucronia.»

Editora - Sistema Solar/ Documenta
Abril de 2022