terça-feira, janeiro 10, 2023

«Como se o Mundo Existisse», de Ana Teresa Pereira

Acompanho esta autora desde que iniciou o seu processo de escrita nos anos 80. O registo literário não mudou muito, por isso posso dizer sem me enganar (demais) que é das escritoras mais coerentes e mais sólidas no estilo que mantém. Felizmente. Há um verdadeiro mistério na sua escrita e que Jorge Silva Melo, nos lembra em texto colocado na contracapa deste «Como se o Mundo Existisse». Diz ele: «Que neblina é esta que nunca levanta nas histórias sem fim de Ana Teresa Pereira, que abismos (de paixão?)? E, no entanto, são nítidos os contornos, nada se esfuma, vemos tudo, as cores vibrantes dos vestidos, as jarras, corredores, portas, escadas, portões, jardins, labirintos. Que espelhos são estes, sempre lá, mas se abrem portas, nos camarins, nos quartos alugados, nos hotéis? Que teatros são estes onde se ensaia? Que homens são estes, estátuas monstros? Leio sem parar estas histórias misteriosas (são contos? apontamentos?), são uma janela sempre. Aqui, com Ana Teresa Pereira, ler é ver, voltar a ver, voltar a ler.»

Por mim, bastavam estas palavras tão certeiras, tão nítidas de Jorge Silva Melo para parar por aqui deixando-vos a descrição de «Como o Mundo Existisse» pela mão de um dos maiores autores e encenadores contemporâneos entretanto falecido. Contudo, julgo que esta neblina surge também de Londres e envolve as personagens de Ana Teresa Pereira com uma mestria como poucos o sabem fazer. Esse nevoeiro é tanto urbano como rural e as personagens são claramente (porque a autora não tenta esconder-nos) de Conan Doyle, das irmãs Brontë, de Enid Blyton ou de John Dickon Carr (alguns policiais dele estão na nova coleção Vampiro, disponíveis). Ana Teresa Pereira fala-nos destes autores (cita muitos mais) e das suas personagens com um carinho indiscutível e que convidam já a conhecer esses mistérios que envolvem as personagens que tiveram vida em atores de Hollyood ou em séries da BBC e que conhecemos bem. Tem uma ligação tão íntima com o cinema e com os livros policiais que dificilmente não acabamos a sua leitura para saltar para uma estante próxima e devorar os policiais ou ir aos dvd dos filmes de Hitchcock escondidos em qualquer caixote na garagem, visto que agora vê-se cinema por streaming no espaço exíguo de um ecrã de TV, coisa que deve ser quase impossível ver Ana Teresa Pereira a fazê-lo. Leiam este trecho da autora: «John Franklin Bardin escreveu que não há diferença entre um romance policial e um romance ''sério'' (o que deveria ser evidente, mas em 2021 ainda não é). Há bons livros e maus livros. Um bom livro é o que nos faz experimentar um mundo novo. Devil Take é uma experiência muitíssimo perturbadora. Como observou Patricia Highsmith, todos nós, nalguma altura da vida, conhecemos estes sentimentos, mas damos um passo atrás e não nos atrevemos a pensar no que teria acontecido se não o fizéssemos; os que conseguirem ler este romance não o esquecerão tão cedo. (...) pág.113» Essa perturbação é inegável nos livros de Ana Teresa Pereira. Nuns, mais, noutros menos certamente, mas só quem conhece profundamente toda a trama de obras de uma grande carga psicológica pode escrever assim.

E deixo-vos com este belíssimo trecho de «Como se o Mundo Existisse»: 
«Sento-me na mesa, fazendo cair o cinzeiro, e começo a abanar as pernas para trás e para a frente. Meu amor, é a redenção que procuras, que palavra vazia, a redenção através de um anjo que foste descobrir não sei onde? Ele olha para mim e não sei o que vê. A rapariga com o feio casaco comprido, o rosto inexpressivo, os olhos baixos e traiçoeiros. Ou a mulher de calças pretas e camisa branca, o cabelo preso na nuca, que parece um rapazinho com o rosto de um anjo de Botticelli. ''Fiery the Angels rose, and as they rose...'', o poema de Blake que uma de nós aprendeu quando estava a estudar; a tempestade chegou e os anjos ergueram-se à sua rente. (pág.59)». São estes anjos, omnipresentes nos livros de Ana Teresa Pereira que nos levam a territórios de não-lugares, às terríveis obsessões das personagens que provavelmente constroem o maravilhoso dos seus livros.

Relógio D'Água
Junho de 2021